Leite Derramado
Chico Buarque
Eulálio Montenegro d’Assumpção está deitado na enfermaria de um «hospital infecto». O seu corpo frágil testemunha uma existência centenária que «se alongou além do suportável, como linha que se esgarça». Pobre e solitário, a única coisa que lhe sobra é a memória, mas esta tornou-se uma «vasta ferida», um «pandemônio», uma porta aberta por onde entra o passado, sem qualquer ordem cronológica, multiplicando-se em ínfimos detalhes («recordo cada fio de barba do meu avô, que só conheci de um retrato a óleo»), enquanto o presente se estreita, baralha e desfaz.
Mesmo na miséria, Eulálio mantém o aprumo e os tiques de superioridade social, aprendidos numa família em que se falava francês até para pedir o saleiro. À sua volta, só vê «gente desqualificada». O som do televisor está sempre alto demais e as baratas trepam pela parede. Entre a dor e a morfina, entre a vigília e os sonhos a preto-e-branco, ele tenta narrar a sua vida, fixá-la, transmiti-la nunca se sabe bem a quem (porque tanto se dirige às enfermeiras como à filha, tanto barafusta com os médicos como interpela a mãe morta há muitas décadas).
O romance é uma sucessão de monólogos fragmentários e contraditórios, nos quais certas histórias reaparecem insistentemente, mas sempre contadas de outra maneira, a partir de outro ângulo, com outra vibração. A verdade, se existe, é instável. Tudo pode ter sido assim – ou ao contrário. Na cabeça «meio embolada» de Eulálio, os tempos misturam-se, cruzam-se, coalescem. E os espaços também. Já não há palacete em Botafogo, chalé em Copacabana, apartamento na Tijuca, nem fazenda na «raiz da serra» (invadida pela favela), mas no «palavrório» do moribundo eles recuperam o antigo esplendor.
O protagonista de Leite Derramado é a charneira de uma longa linhagem de Eulálios, tradicionalmente próximos das elites e do poder. O tetravô português lutou contra as tropas de Napoleão; o trisavô desembarcou no Rio com a corte de D. João VI; o bisavô foi um barão negreiro; o avô um abolicionista que queria lucrar com o regresso dos escravos a África; e o pai um senador da Primeira República, pródigo nos negócios e nos vícios. A tibieza do narrador marca de certa forma o começo do declínio: depois dele, a filha casa-se com um imigrante italiano de segunda geração; o neto torna-se maoísta (morrendo nas prisões da Ditadura); e o tetraneto trafica drogas, fechando o ciclo da decadência dos Assumpção.
Quer pelo arco temporal abrangido, quer pelo imenso leque de personagens, pode dizer-se que Chico Buarque escreveu uma saga familiar – só que uma saga familiar de câmara: breve, compacta, reduzida ao essencial. Uma das principais virtudes de Leite Derramado é precisamente esse milagre de condensação e leveza, para o qual contribui uma escrita depuradíssima. Outro ponto forte é a articulação feliz entre as experiências individuais e as colectivas. Na história dos Eulálios são sempre legíveis – à transparência – alguns dos momentos capitais dos últimos 200 anos de História do Brasil.
O fulcro do livro, porém, está em Matilde, primeira mulher e único verdadeiro amor do protagonista. É essa figura feminina intangível (capaz de entrar no oceano «como se pulasse corda») que ilumina a solidão de Eulálio. Um dia, desaparece de casa, deixando para trás marido, filha bebé e um mistério (a razão da sua fuga) que reverbera em todas as páginas, como premonitório sinal do caos futuro.
No exercício narrativo quase perfeito que é Budapeste, de 2003, Chico Buarque parecia ter atingido o cume das suas capacidades literárias, mas neste Leite Derramado sobe ainda mais alto e assina um dos melhores romances em língua portuguesa da primeira década do século XXI.