O corpo não importa, só a alma

A alma ou a vida
 
Ferreira Gullar
 
O Papa Bento 16, na viagem que fez recentemente à África, declarou que o uso de camisinha na relação sexual não resolve o problema da Aids, mas, pelo contrário, pode até agravá-lo. A solução estaria na abstinência sexual e na fidelidade matrimonial.
 
Essa declaração foi feita semanas depois que o arcebispo de Olinda e Recife excomungou os médicos responsáveis pelo aborto de gêmeos numa menina de nove anos, que fora estuprada e engravidada pelo padrasto. Os médicos tomaram aquela decisão, autorizados pela mãe da menina, após concluírem que seu corpo não tinha condições de levar adiante a gestação: havia risco de vida para ela e os fetos. Além disso, agiram dentro da lei brasileira que permite o aborto quando a gravidez decorre de estupro. Nada disso evitou que o arcebispo os condenasse, juntamente com a mãe da menina, às chamas eternas do Inferno.
 
Essa decisão do arcebispo pernambucano causou espanto e revolta em muita gente, que viu nela uma manifestação de atraso e intolerância. Não obstante, em um primeiro momento, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, bem como o Vaticano, apoiaram a decisão do arcebispo. Por que? Serão todos intolerantes e retrógrados?
 
A questão não é bem essa. Tanto o arcebispo quanto as entidades referidas não fizeram mais que obedecer a um dogma da Igreja Católica. O arcebispo alegou que o aborto é um pecado muito grave porque atenta contra a vida e um dos princípios da Igreja é o respeito à vida: "Não matarás". Foi mesmo por essa razão que ele excomungou os médicos e a mãe da menina? Não, não foi. É que o problema não é tão simples assim.
 
Já me referi, nesta coluna, a propósito da polêmica em torno das células embrionárias, à visão de Santo Agostinho acerca do pecado original que, segundo ele, só pode existir se, já no momento da fecundação, estiver ali a alma. Sim, porque o pecado é da alma, não do corpo. É essa visão que explica a atitude da Igreja quando, na Inquisição, mandou queimar vivos os pecadores, para salvar-lhes a alma. Noutras palavras, o que importa não é a vida do corpo mas a pureza da alma que, livre dele, iria talvez para o Paraíso ou o Purgatório.
 
Sei que estou me metendo em funduras e, se estiver equivocado, que me desculpem. Nada tenho contra a Igreja Católica, que desempenha inestimável papel na sociedade, dando amparo espiritual e material a milhões de pessoas. Mas isso não me impede de tentar compreender uma questão que interessa também a milhões de pessoas.
 
O arcebispo afirmou que excomungou os médicos porque eles eliminaram duas vidas humanas (as dos fetos), atentando assim contra um princípio básico da Igreja. Mas, se se trata, efetivamente, de respeitar a vida, porque não optar por salvar a da menina, posta em perigo por uma gestação anômala, inviável numa criança, cujo corpo não estava pronto para ela? Por que optar pela vida duvidosa de dois fetos que pouca possibilidade tinham de nascer?
 
A explicação não está em nenhum argumento razoável e, sim, no dogma. A mesma crença que faz a Igreja se opor ao uso científico das células embrionárias - porque no embrião está uma alma - coloca-a contra o aborto, em toda e qualquer circunstância. Trata-se de salvar a alma, não a vida. A alma que, a rigor, não se sabe se existe, e que, para os antigos gregos, "pneuma", ou seja, ar, sopro.
 
Essa mesma explicação nos ajuda a compreender por que o papa se opõe ao uso da camisinha nas relações sexuais, quando é evidente que esse uso evita a contaminação pelo vírus HIV, de consequências mortais. Que mal há em usar camisinha? Não pode haver, na Bíblia, nenhuma condenação explícita a seu uso, uma vez que ela é uma invenção do século 20.
 
Não obstante, essa condenação tem raízes nas Escrituras, na teoria do pecado original, dogma fundamental da Igreja. Esse pecado, praticado por Adão e Eva, foi tão grave que dividiu o mundo em duas "cidades": numa reinaria Deus e, na outra, Satã. Como, porém, sem a relação sexual, a humanidade se extinguiria, a Igreja teve que admiti-la, desde que dentro do matrimônio, por ela consagrado. Por isso mesmo, o sexo só pode ser praticado visando à procriação, não o prazer. Aliás, o prazer, que o ato sexual provoca nos que o praticam, mancha-lhes a alma. Ora, quem usa camisinha não está querendo procriar, mas apenas sentir prazer, o que a Igreja não permite, mesmo porque, quem assim age, incorre em grave pecado, entrega a alma ao Diabo. É, portanto, para salvar-lhe a alma que a Igreja proíbe a camisinha, embora sabendo que, com isso, o expõe ao vírus mortal da Aids. Ela quer salvar a alma (que é divina) não a vida (que é humana).
 
 
© Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL 
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publicado por ardotempo às 13:00 | Comentar | Adicionar