Desastre Cultural

A França premiou a pilhagem da China
 
Elio Gaspari
 
O leilão de Yves Saint Laurent remunerou o colonialismo e os saqueadores do Palácio de Verão de Pequim
 
O “Leilão do Século”, no qual foi vendida em Paris a coleção de arte do costureiro francês Yves Saint Laurent, foi um sucesso de renda para a casa Christie's (US$ 484 milhões), mas será lembrado também como um desastre cultural.
 
 
Amparado pela Justiça, o viúvo de Saint Laurent passou adiante, por US$ 31 milhões, duas esculturas setecentistas roubadas no saque do Palácio de Verão de Pequim por tropas anglo-francesas, em 1860. Elas formavam um conjunto de 12 peças, das quais a China já recuperou três, ao preço de US$ 4 milhões.
 
As figuras do coelho e do rato vendidas em Paris tornaram-se símbolos de uma mentalidade colonial do século 19 reciclada pela arrogância pecuniária do século 21.
 
O incêndio do Palácio de Verão marca o pior momento da humilhação da China pelas potências europeias que invadiram o país, entre outras coisas, para preservar suas redes de tráfico de ópio. À época, a pilhagem foi denunciada pelo romancista francês Victor Hugo. Guardadas algumas diferenças, o saque do palácio assemelhou-se à vandalização do Museu Nacional de Bagdá em 2003.
 
O mundo das antiguidades está mais civilizado. O museu Metropolitan de Nova York já devolveu peças gregas escavadas no século 20 e contrabandeadas por mercadores. Boa parte das coleções roubadas pelos nazistas durante a Segunda Guerra foi resgatada.
Com as esculturas do Palácio de Verão, a França e a Christie's puseram o governo chinês numa boa briga. Desta vez Pequim não quis participar do leilão e avisou que procurará atrapalhar os negócios do leiloeiro.
 
A consistência das reclamações dos países pilhados sempre pode ser discutida. Por exemplo: os cavalos de bronze da Basílica de São Marcos devem ser devolvidos à Turquia? Neste caso, os turcos deveriam devolvê-los à Itália, onde enfeitavam o arco de Trajano. Finalmente, acabariam na Grécia, onde foram esculpidos. O busto da rainha egípcia Nefertiti que está em Berlim foi achado numa escavação legal e partilhada. (No século 19, o pachá Mehmet Ali queria usar os blocos das pirâmides em projetos de construção civil.)
 
As frisas de mármore do Parthenon de Atenas foram embarcadas para Londres com uma licença marota do Império Otomano. No caso das esculturas do Palácio de Verão nada de parecido aconteceu. As peças tinham seu valor reconhecido pela China e foram roubadas pela força das armas. Antes de chegar a Saint Laurent, elas passaram por pelo menos três donos. Por coincidência, o saque do palácio foi comandado pelo filho do lorde inglês que pilhou as frisas de Atenas.
 
Elio Gaspari - Publicado na Folha de São Paulo / UOL
publicado por ardotempo às 12:02 | Comentar | Adicionar