Acordo ignora identidades culturais

João Pereira Coutinho
 
Acordo ortográfico? Não, obrigado. Sou contra. Visceralmente contra. Filosoficamente contra. Linguisticamente contra.
 
Começo por ser contra com a força das minhas entranhas: sou incapaz de aceitar que uma dúzia de sábios se considere dono de uma língua falada por milhões.
 
Ninguém é dono da língua. Ninguém a pode transformar por capricho. Por capricho, vírgula: por mentalidade concentracionária, em busca de uma unidade que, para além de impossível, seria sinistra.
 
A língua é produto de uma história; e não foi apenas Portugal e o Brasil que tiveram a sua história, apresentando variações fonéticas, lexicais ou sintácticas; a África, Macau, Timor e Goa, que os sábios do acordo ignoram nas suas maquinações racionalistas, também têm direito a usar e a abusar da língua.
 
Quem disse que o português do Brasil é superior, ou inferior, ao português falado e escrito em Luanda, Maputo ou Dili?
 
Meu princípio filosófico: a pluralidade é um valor que deve ser estudado e respeitado. Não me incomoda que os brasileiros escrevam "ator" e "ceticismo" sem usarem o "c" ou o "p" dos lusos. Quando leio tais palavras, sei a origem delas; sinto o sabor tropical em que foram forjadas.
 
Mas exijo respeito. Exijo que respeitem o "actor" português e o "cepticismo" luso com o "c" e o "p" que o Brasil elimina.
 
Os sábios discordam. E dizem que a ortografia é simples transcrição fonética, ou de "pronúncia". Se ninguém lê "actor", com acentuação no "c", por que motivo mantê-lo? Sim, por que motivo manter esse "c" arcaico que só atrapalha a unidade da língua?
 
Lamento. Eu gosto do "c" do "actor", do "p" de "cepticismo". Eles representam um património, uma história. Uma pegada etimológica que faz parte de uma identidade cultural. Mas o "c" e o "p" não são apenas antiguidades de uma ortografia; como relembrou recentemente o poeta português Vasco Graça Moura, esses "c" e "p" abrem a vogal que os antecede e fornecem informação para pronunciar correctamente as palavras. Acordo ortográfico? O gesto é prepotente e apedeuta. Aceitar essa aberração filosófica e linguística, impensável para ingleses (ou franceses), significa apenas que a irmandade entre Portugal e o Brasil continua a ser a irmandade do atraso.
 
 
João Pereira Coutinho
 
Publicado no Blog Verdes Trigos 
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publicado por ardotempo às 15:31 | Comentar | Adicionar