Terça-feira, 13.09.11

Melo era uma festa

O dia em que o Papa foi a Melo

 

Iuri Müller

 

Foi uma pena, porque Melo era uma festa, antes da chegada do Papa. A gente notava nas caras das pessoas – nos gestos, nas atitudes – uma alegria sem necessidade de explicação, alguma coisa muito rica e muito viva que alguém chamaria equivocadamente de orgulho municipal ou de vaidade ufana, mas que era muito mais ou muito menos do que isso: era o júbilo dos deserdados, o regozijo dos esquecidos despertados repentinamente para um momento de confiança, para uma possibilidade de certeza.

 

Aldyr Garcia Schlee, Melo era uma festa

 

No dia oito de maio de 1988, um domingo de tempo feio, neblina e vento frio, a Negra Martiana, que não tinha nada, viu entrar pelo buraco do fogão duas galinhas e um galo, acontecimento estranho para quem vivia em um casebre, perto de terrenos baldios e de um arroio e muito longe de qualquer galinheiro. No dia oito de maio de 1988, o Papa João Paulo II esteve em Melo, na cidade do interior uruguaio onde vivia a Negra Martiana, mas ela não se lembra de ter pedido qualquer coisa ao Santo Padre. Ainda mais depois que os seus enteados percorreram meia cidade com bandeirolas e faixas brancas nos bolsos, todas elas com mensagens de boas-vindas ao Papa, e voltaram para casa sem ter vendido absolutamente nada. Mas ali estavam as duas galinhas e o galo, justamente na cozinha de quem não tinha nada, e logo no dia em que o Papa foi a Melo – dessa história, que pode ter acontecido em qualquer canto da capital do departamento de Cerro Largo, o escritor Aldyr Garcia Schlee fez um conto e o chamou, mesmo perguntando no rodapé da página se não seria muito, de “Milagre”.

 

Aldyr, nascido em 1934 na cidade de Jaguarão, na fronteira com o Uruguai, não esteve em Melo naquele dia; o Papa, sim. A ausência não impediu que três anos após a visita papal o escritor se fizesse presente, quase que magicamente, em todos os lados da cidadezinha que se preparou até como não podia para receber João Paulo II – em 1991, Schlee publicou “El día en que el Papa fue a Melo” nas Ediciones de La Banda Oriental. Oito anos mais tarde, o livro formado por dez contos cujo pano de fundo é sempre a presença – ou a enorme ausência – do Papa no interior uruguaio aparece no Brasil publicado pela editora Mercado Aberto com o título “O dia em que o Papa foi a Melo”.

 

O Milagre” que viveu a Negra Martiana, portanto, é só um dos causos de um dia que, por curioso ou trágico, não deve nunca escapar da memória de quem esteve em Melo naquele domingo.

 

Tudo porque os uruguaios esperavam um público de ao menos cinquenta mil pessoas e a chegada de gigantescas caravanas de católicos brasileiros – e há quem diga que não mais do que oito mil pessoas, a maioria de Melo, de fato foram ver o Papa.

 

Entre os personagens de Aldyr, no conto “Espelho partido” está o avô que completava 98 anos no dia em que a cidade estava impactada pela chegada do maior visitante que já havia recebido – e que, apesar das centenas de parentes e conhecidos que se aglomeravam na “grande casa alta de dezoito peças”, prefere não sair da cama de onde contemplava há horas a rachadura de um velho espelho.

 

Talvez relembrasse, em meio ao cansaço dos últimos anos de vida, as conquistas de “uma pobre e obscura republiquinha” que há tempos havia “suprimido o ensino religioso nas escolas públicas e logo se pôde diminuir para oito horas a jornada diária de trabalho, implantar as jubilaciones, criar as pensões de velhice, garantir a assistência pública e laica aos enfermos e assegurar a gratuidade da educação nos três níveis”. E que secularizou “os juramentos oficiais, deixando de mencionar Deus e os santos evangelhos”; que garantiu “a total liberdade de culto, separando a igreja do Estado – embora não tenhamos conseguido a aprovação da semana renga, com um dia de descanso a cada seis, para acabar com o feriado de domingo por sua significação religiosa”. E lá fora estava o Papa, orando para uma multidão que não chegou.

 


 

É no conto “Melo era uma festa”, narrado por um jornalista credenciado no evento, que se encontra uma descrição do desastre que foi a preparação dos habitantes de Melo para o grandioso acontecimento; embora ficcional, o texto de Aldyr não destoa de outros relatos sobre aquele domingo que, apenas para uns poucos, ainda é lembrado com alegria: “a verdade é que nada deu certo no dia em que o Papa foi a Melo – pelo menos para a pobre gente que mais esperava de sua visita. Foi tudo tão rápido e inesperado como um milagre, mas um milagre às avessas: quando se viu, o que se queria que acontecesse, o que tinha que acontecer, o que era certo que ia acontecer, não aconteceu; e em seguida não dava mais para acontecer. O Papa veio se foi; e pronto!

 

Quando recém o leitãozinho de estimação começava a pingar graxa no braseiro, quando os primeiros chouriços caseiros pegaram a dourar e a estalar, o homem já tinha ido embora e todo mundo se foi – se foi sem almoçar nem nada –, e ficou só a terra vermelha e pisoteada da esplanada coberta de lixo barato”.

 

Iuri Müller - Publicado em SUL 21

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publicado por ardotempo às 19:43 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Artistas são mais importantes que museus

O Caso  IANELLI

 

A polêmica em torno da recusa do MAM-SP em receber 14 obras em doação

 

Olívio Tavares de Araújo

 

 

 

Disse Goethe que a História deve ser reescrita a cada 20 anos, em virtude do progresso do espírito crítico da humanidade. Exceto pelo excesso de iluminismo da segunda metade da frase - típico da época e do pensamento de Goethe -, a ideia continua verdadeira. A história se reescreve todo o tempo, voluntariamente, por indivíduos e/ou grupos, e/ou acidentalmente, por fatos espontâneos.

 

Não é de outra natureza o problema surgido com os quadros deixados em testamento pelo pintor Arcangelo Ianelli (1922-2009), que se tornaram notícia em virtude de um quiproquó talvez inédito. Há alguns meses, o Museu de Arte Moderna de São Paulo recusou uma doação de 14. Na direção oposta, o Museu de Arte Brasileira da Faap abriu, há pouco, uma exposição-homenagem para apresentar publicamente a também doação que acolheu. Mas não é o caso de lavrar-se um simples protesto emocional pró-Ianelli e reclamar da "injustiça" cometida - já que alguma houve.

 

É o caso de refletir sobre um fenômeno importante, que poucas vezes temos a oportunidade de surpreender de maneira tão exemplar. Costuma-se pensar apenas na grande História, cujos golpes mudam o destino de países e povos, decidindo da vida e morte de milhões. Esquecem-se as sub-histórias específicas (a da arte é uma delas), e que todas se fazem no dia a dia, aqui e agora, de grandes atos e/ou miudezas que se imbricam, como o famoso nariz de Cleópatra: se fosse menor - ou maior -, não teriam sido outros os destinos do Império Romano e, provavelmente, de todo o Ocidente?

 

Nos últimos 30 anos, Ianelli se tornou um dos mais respeitados pintores do Brasil, mestre numa abstração de fundamento geométrico porém expressiva, que nunca se deixou limitar por regras e ortodoxias. Contemporâneo e parente estilístico de Tomie Ohtake, partilhava com ela idêntico prestígio e sucesso de mercado. Fez uma carreira cheia de prêmios e honrarias, estabeleceu bom trânsito internacional (o que acontece com poucos brasileiros) e suas obras estão em museus de Porto Alegre a Toronto, Cidade do México a Roma, Skopje a Kyoto. Não importam os argumentos usados, não nos iludamos.

 

Sabendo ou não do significado pleno de seu ato, o Museu de Arte Moderna não errou por inépcia, desinformação, má fé, deficiência de gosto. Talvez nem lhe caiba o termo erro. Como uma das instâncias que conformam e definem a história da arte (os museus, a crítica, os livros, a imprensa, o mercado), seu recado implícito foi que a atenção até agora reservada a Ianelli (e outros com perfil semelhante) chegou ao apogeu - e basta. Isto, na visão dos que atualmente controlam o museu, é evidente.

 

O espaço físico do acervo metaforiza, aqui, o espaço simbólico e o histórico, que se devem reservar de ora em diante para novos eleitos. Ao longo dos anos, à medida que forem sendo revelados, poderemos concordar ou discordar quanto a suas qualidades, mas eles virão, inflexivelmente. Acrescente-se que a autoridade de instância definidora conferida aos museus fará com que tendamos a concordar. Não deveria ser, por força, assim, porém as demais instâncias - exceto o mercado, todo-poderoso - carecem de vontade política, energia e instrumentos de ação. Junto com Ianelli, puniu-se também uma linguagem.

 

 

 

No Brasil, as duas matrizes abstracionistas, a geométrica e a lírica, bem distintas em seus propósitos estéticos, emergem ambas na década de 1950. Graças ao febril ativismo dos membros do movimento concretista, a primeira adquire um invejável e excludente prestígio, bafejado ainda pelo brilho intelectual dos poetas concretos. A certa altura Waldemar Cordeiro, o líder dos pintores, ortodoxo, radical e aguerrido, decide declarar que a abstração lírica é "hedonista" - querendo significar, entendo eu, que seria menos séria, menos profunda, fácil de agradar, decorativa. (Como se um quadro geométrico não pudesse servir tanto quanto qualquer outro para enfeitar ambientes.)

 

O busílis residia, realmente, na questão da expressividade. Para os concretistas e análogos, filiados ao polo da razão, a obra de arte era apenas "produto", no sentido industrial da palavra. Admiti-la como manifestação subjetiva do autor, contendo e despertando emoções, representava uma contaminação romântica decididamente inaceitável. Seguindo a regra brasileira, ao invés de se observar judiciosamente a realidade, erigiu-se em verdade a provocação de Cordeiro, pelo que desde então o abstracionismo lírico vem sendo desqualificado, às vezes com gentileza, às vezes sem. É possível que em alguns casos - por exemplo, em Antonio Bandeira, que o mercado, talvez por isso mesmo, escolheu como um de seus objetos do desejo, pagando milhões por suas telas -, haja efetivamente algum hedonismo: o prazer de uma arte sedutora, não encucada, que se frui sem qualquer dificuldade. No entanto, basta conhecer direito a gravura de Fayga Ostrower para se dar conta de que não contém o mais remoto traço de hedonismo, e sim a discussão talentosíssima e séria dos problemas da arte em seu momento. Sem falar de Iberê Camargo, cuja produção abstrata lírica da década de 1970 é intensa, vital, dramática, exigente, difícil, e de uma qualidade contundente.

 

Simetricamente, a obra do neoconcretista Hércules Barsotti, rigorosamente geométrica ao longo de toda sua trajetória, é bela sem rebuços, até agradável - sem com isso se tornar menos boa. Apesar de filho dos anos 50/60, Ianelli não foi um abstracionista lírico em sentido estrito; roçou de leve pelo tachismo (uma das subdivisões da matriz), mais de leve ainda pelo gestualismo (outra), para optar, afinal, por estruturas geométricas simples que apareciam ou subjaziam em seus trabalhos. Nada tinha de cerebral e buscava, sem a menor sombra de dúvida, uma beleza feita de harmonia, equilíbrio, apolínea, sem conflito (daí o substrato geométrico), lavrada na ordem do sensível, sutil mas evidente, capaz de estabelecer comunicação imediata. Daí o risco do "hedonismo", punido pela recusa do MAM. Se se tratasse de um geométrico estrito, acredito que as obras teriam sido aceitas. Como são eles, atualmente, os darlings do sistema das artes, não creio que o museu recusasse nenhum concretista nem neoconcretista, ou mesmo geométricos posteriores e epígonos, com os quais acreditaria estar enriquecendo, inclusive materialmente, sua coleção. Há 20 anos nem se cogitaria de recusar Ianelli. Reescrever a história não é negar os fatos. É alterar-lhes o peso relativo, vê-los de ângulos distintos, propor novas leituras, como aí acontece.

 

Felizmente, nem a memória nem a obra de Ianelli precisam de 14 trabalhos a mais aqui ou acolá. Mesmo porque a doação não era portentosa, incluindo oito bonitos mas nada essenciais pequenos estudos em papel. O golpe foi mais o choque, no início. De resto, Ianelli nunca tentou posar de gênio (o que fez Cordeiro, um pouco), e bastava-lhe cumprir com precisão seu bem delineado projeto, dentro da originalidade possível num país de terceiro mundo. É verdade que sua melhor produção se parece com a de um grande mestre estrangeiro, Mark Rothko. Mas, visivelmente, ele chega lá por seus próprios caminhos, não por imitação. E se a parecença bastasse para relegá-lo, dificilmente sobrariam no Brasil artistas não relegados. Até na vanguarda, exceto por Lygia Clark e, em menor grau, Hélio Oiticica, nossa originalidade permanece caudatária.

 

Além de que a exigência de originalidade à outrance é uma invenção do Romantismo. Bach e Mozart não se preocupavam em ser originais nem modernos, Cuidavam de codificar e aperfeiçoar a linguagem a que chegava a música em seu tempo. Não procuraram "o novo", mas sim fazer de novo e melhor, sempre melhor, até o limite da perfeição de cada um. Sem embargo de quantos quadros tenha em museus, é um mérito que não se poderá tirar, também, de Arcangelo Ianelli.

 

 

 

Olivio Tavares de Araújo - Publicado em O Estado de São Paulo

publicado por ardotempo às 12:22 | Comentar | Adicionar

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