Um dia, a beleza
Cidade séria
Paulo José Miranda
Demorei muito a chegar à idade que tenho. Demorei 41 anos e mais alguma coisa. Vivo em São Paulo e agrada-me muito viver aqui.
São Paulo é um cidade séria. Como quase todas as prostitutas, está disponível o tempo todo e longe de ser perfeita. A qualquer hora lhe peço o jornal, uma revista, um livro, uma cerveja, um sandwich, uma costela de boi ou que me aconchegue de amor, e nunca vi sombra de má vontade na mão que me estende.
E isto tudo num raio de cinquenta metros da porta de onde moro. Não vivo em Manhattan, nem em Beyoglu, não, vivo junto à Paulista. A morte acontece muito por aqui, é verdade, mas a morte acontece muito a quem anda na vida. São Paulo é profunda como os mistérios de Nietzsche. São Paulo está quase sempre a começar de novo. Arrasa tudo e dá de novo. São Paulo não preserva deuses antigos, constrói novos edifícios.
Tem muita poluição, dizem, e que isso prejudica a saúde como uma bomba ou uma guerra civil. A poluição mata em massa. Pode ser, não digo que não seja assim. Mas, ainda que possa não ter razão nenhuma, prefiro sentir no ar um inimigo do que não saber onde ir. Prefiro lutar contra o ar, lembrando o Dom Quixote delirando por terras de Castilha, do que morrer dia a dia de tédio, de cada vez que sair de mim e for até à rua. Em São Paulo, uma avenida vai até nunca mais.
Nunca vamos a nunca mais, isso também é verdade, mas a possibilidade de poder ir, ali, concreta diante dos olhos e dos passos, é uma sensação de futuro, uma sensação muito melhor do que passear no ar puro de uma montanha. A grandiosidade de um autor que, para além da excelência da sua escrita também escreveu muito, como Heidegger, por exemplo, não reside numa pretensa necessidade ou obrigatoriedade de nos fazer ler tudo, mas no facto concreto de sabermos que há muito mais do mesmo para ler. Este “muito mais” conforta-nos, ainda que não passemos da próxima esquina.
Mas confrontamo-nos constantemente com a miséria, dizem-me, só para me contrariar.
Melhor assim, respondo, lembra-nos duas coisas que não devemos esquecer ao longo da vida: humildade e convicção. Humildade para reconhecer naquele que está caído na rua o seu próprio corpo, o seu próprio rosto coberto; e convicção em não deixar que isso atrapalhe o que temos de fazer. São Paulo é profunda, filosófica, cresce alargando a noção de humanidade.
Em que cidade, logo pela manhã, me confrontaria eu com as perguntas que deve ter corroído Karl Marx, quando da sua tese de doutoramento acerca dos jardins de Epicuro, até aos Pirinéus da sua preocupação: será possível conciliar o prazer com a ética? Será possível ser justo e esteta? Será possível ter necessidades básicas e praticar a justiça? Será possível o deslumbramento e a igualdade?
Todo o mundo sabe que, em São Paulo, a realidade tem um caso com a verdade. E em mais nenhuma outra cidade do mundo isto acontece. Em mais nenhum outro lugar a realidade seduziu a verdade. Os paulistas, quando desencantados com a sua cidade, tão nietzschiana, sempre em construção, dizem: quando estiver pronta, São Paulo será bonita. E ter a beleza no futuro, caminhar na direcção de ser bela não é já uma das ideias contemporâneas mais belas da humanidade? São Paulo é séria como só uma puta séria consegue sê-lo, e eu demorei 41 anos para aqui chegar. Mas em que cidade faria mais sentido esta expressão da língua portuguesa: “mais vale tarde do que nunca”? Em São Paulo, tem sempre um lugar pra se chegar.
Paulo José Miranda