Quinta-feira, 25.08.11

O ângulo da frase

As coisas mais simples

 

João Ventura

 

Dizem que o poeta tem seis sentidos: “os sentidos, com os seus traços lineares,/ são cinco como os quatro elementos mais/ o éter dos alquimistas. À volta deles anda o sexto/ que nasce da ideia do homem/ de que falta sempre qualquer coisa para atingir/ a perfeição”. O poeta habita uma casa na Mexilhoeira Grande. No quintal do poeta há uma figueira onde ele colhe, ao amanhecer, "os figos de S. João, os primeiros, que se colhem/ com um gesto só, ficando inteiros na mão". Na biblioteca do poeta há um livro de D. H. Lawrence onde este aconselha que se parta “um figo/ em quatro pedaços, para o comer, depois de deitar fora/ a casca”.

 

 

 


 

Mas o poeta que conhece “múltiplas formas de comer um figo” vai mais longe do que Lawrence e pensa também na figueira. Primeiro, os figos - mas poderia ser “a mulher da fotografia avançando até ao fim do molhe”, ou um homem encostado "à porta do palheiro", ou ainda, e sempre, a presença obsessiva do mar, do litoral, ou mesmo a visão das "ruas cheias de gente" de uma cidade qualquer - as coisas mais simples, portanto, como matéria impura que o poeta recolhe dos dias que passam.

 

Depois, “a árvore” que lhe “agarra a alma com os seus ramos ásperos” que o poeta afasta, "a mão transformada num prolongamento da figueira”. A mesma mão com que o poeta traça “o ângulo da frase”, que mostra as coisas mais simples, assim como o seu avesso, ou a sua transcendência, porque “o que é simples também pode ser o/ seu contrário”.

 

A mesma matéria impura que se estilhaça em “mil pedaços pelo chão” como um espelho quebrado da realidade que irrompe no poema, literal e figuradamente, inscrevendo um paradigma narrativo através do qual o prosaico invade o poético. Agora a mão do poeta afasta os ramos da figueira e atravessa a “fronteira de vida rasgada pelas coisas”. Dos mil pedaços em que o espelho partido reflecte as coisas mais simples, solta-se “um sopro metafísico” que empurra o poema ao encontro da sua substância mais profunda e o impede de ganhar “a ferrugem do tempo”. Na casa do poeta cresce o deslumbramento diante de coisas tão simples como os figos do quintal ou “a mulher da fotografia” - o quotidiano irrompendo furtivamente no poema para logo ser desfocado, transfigurado, através da alegoria, do devaneio.

 

O tronco da figueira/ [é agora um] corpo de mulher nua; […] e o figo que o poeta tem na mão [fá-lo] sentir os seus seios macios”; há também a intertextualidade que o poeta convoca desde a sua biblioteca numa busca da essencialidade poética – D. H. Lawrence, Shelley, os poetas gregos. Há um trabalho sobre a história; há navegações errantes, partidas e chegadas, regressos, há um “conceito de paisagem” e uma “imagem da cidade por entre as ruas cheias de gente”.

 

Na casa da Mexilhoeira Grande, Nuno Júdice escreve um livro "à luz do apocalipse,/ as primeiras linhas do ocaso": descrições, narrações, personagens, memórias, odes, uma carta. O livro chama-se As coisas mais simples e foi escrito com os cinco sentidos mais um, aquele que só os verdadeiros poetas têm. Na curva da noite, arrumo as páginas do livro que o poeta escreveu. “Limito-me a deixar tudo no seu lugar" - a figueira, a fotografia, a biblioteca do poeta - "como se nunca aqui tivesse entrado, e volto a sair,/ pela abertura redonda, para a grande praia do poema” onde tudo recomeça.

 

 

 

João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades

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publicado por ardotempo às 18:07 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

A esposa de Oscar Wilde

 

"Encantados de saludarla, señora Wilde"

 

Manuel Rodríguez Rivero

 

 

 

 

 

Oscar Wilde nunca fue "un marido ideal" como tampoco lo era sir Robert Chiltern, protagonista de su célebre comedia, pero hubo un tiempo en que lo intentó seriamente. Incluso sus amigos se dieron cuenta. Por ejemplo, el joven Yeats, que, tras una visita a la casa de los Wilde, se refirió a la "perfecta armonía" del matrimonio, bajo la cual percibía, sin embargo, cierta "deliberada composición estética". 

 

Oscar y su mujer, Constance Mary Lloyd, ambos irlandeses, se casaron en 1884, se mudaron al entonces bohemio barrio de Chelsea y vivieron juntos hasta que estalló (1895) el escándalo que llevó al dramaturgo a un juicio ignominioso. En el entretanto hicieron dos hijos (Cyril y Vyvyan) y se convirtieron en la pareja más deslumbrante del Aesthetic Movement, la vanguardia intelectual y artística que agitó a la muy pacata sociedad tardo-victoriana. 


Como pareja se comportaban como su propio anuncio, mostrándose a menudo orgullosos y desafiantes. Él epataba con su talento y su ingenio y ella se mostraba como una mujer independiente que se enfrentaba a los tabúes de su tiempo; abogada de los derechos de las mujeres y partidaria de la libertad de Irlanda, defendió la "vestimenta racional", criticando el opresivo corsé y las inflamables crinolinas entonces utilizadas por las damas, al tiempo que lucía revolucionarios vestidos en los que la elegancia no estaba reñida con la libertad de movimientos.

 

Escribió artículos y cuentos para niños, intervino en tertulias y debates, y apoyó iniciativas empresariales de carácter feminista. Y contribuyó a convertir su casa de Tite Street en uno de los templos de la vanguardia artística londinense. La estupenda biografía Constance: The Tragic and Scandalous Life of Mrs Oscar Wilde, de Franny Moyle (John Murray, 20 libras; 10,99 en e-book) recorre la trayectoria vital de esta mujer, explorando tanto su actividad social como su papel como esposa y madre.

Descrita a menudo como una especie de víctima pasiva de su marido, que se habría casado con ella para acallar a los moralistas y aprovecharse de su dinero, Constance emerge en esta biografía como una mujer valiente y decidida que trató de ayudar a Wilde hasta el final. Tras el escándalo -y la negativa de Oscar a abandonar a Alfred Bosie Douglas- cambió de nombre y se exilió con sus dos hijos.

 

Murió (1898) a los 39 años en Génova, en cuyo cementerio está enterrada. Hasta los años sesenta del siglo pasado no se inscribió en su lápida que había sido la esposa de Oscar Wilde.

 

Manuel Rodríguez Rivero

publicado por ardotempo às 15:57 | Comentar | Adicionar

Os mortos nunca faltam

Uma crónica ou lá o que é

 

António Lobo Antunes

 

Em Almeirim, no almoço anual com os meus camaradas.

 

Ouvir falar de África o tempo inteiro. Tratam-me sempre tão bem! Às vezes tenho dificuldade em distinguir, nos homens de hoje, os rapazinhos de então. Depois um sorriso, um trejeito, qualquer coisa para além das feições e reconheço-os.

 

Trazem as mulheres, os filhos, mostram a fotografia dos netos. Há quem venha do estrangeiro, de propósito. Há quem ainda ponha a boina na cabeça. Quase todos continuam lá, pelo menos uma parte deles continua lá. Os mortos connosco. Falo pouco, como sempre, oiço-os. Vivi tudo aquilo que eles continuam a viver e que, para mim, é uma espécie de sonho.

 

Farrapos de lembranças, coisas que me dizem que fiz e mal recordo. Ao lembrarem-mas avivam-se um bocadinho, desbotam-se de novo. Publicaram um livro com as cartas que escrevi durante aquilo: não o li nunca. Não sou capaz. Não é que queira esquecer, é que foi outro que por lá andou. Foi outro e fui eu, que difícil explicar isto. Não escrevi nenhum livro sobre a guerra, limitei-me a intercalar episódios laterais nos primeiros textos publicados, para estruturar melhor os capítulos e, talvez também, para, em certo sentido, me libertar de episódios que me embaciavam a memória, libertando-me deles como de um vómito.

 

Uma vez liberto deles pensei. Agora posso começar e, então, comecei.

 

Tanto tempo até encontrar o meu tom, o meu modo, uma forma que não devesse nada a ninguém, e em que as vozes alheias não entrassem na minha. Em Almeirim longos abraços enternecidos, saudades, quem sou eu? Sei e não sei, fujo de mim, regresso, persigo-me desisto. Sou muitos. Deixei muitos pelo caminho e continuo a ser muitos. Um dia tudo isto pára. E metem um só no caixão. Fiz o que pude, com a força que tinha, e dói-me que imensos erros, patetices, asneiras. Sofri que me fartei.

 

Algumas alegrias no meio disto, claro, alguns momentos quase perfeitos na eterna guerra civil dos meus dias. É isso que me confunde mais: porquê esta violência interior, estes excessos, esta permanente, desesperada busca? Trocava-me por qualquer um, preferia ser um bicho. Lembro-me de uma senhora alentejana na consulta, com uma doença horrível, ao perguntar-lhe como se sentia. Só fezes, só fezes, bebendo até às fezes, o cálice da amargura.

 

Trazia-me miminhos, ovos, figos, prendas de nada que eram imenso.

 

Há semanas fui ao Porto assinar na Feira, e a ternura e a delicadeza dos leitores comoveu-me. Uma fila de gente que não acabava, pessoas com sacos cheios de livros. Mereço isto, a atenção, o carinho para com um sujeito que lhes dá palavras em páginas coladas no interior de uma capa? Tenho dúzias de defeitos de que me envergonho mas, ao escrever, sou inteiramente honesto. Valha-me isso. Greene dizia que um escritor é um fulano sentado a uma mesa, cercado de criaturas que não existem. Não acho assim: sou um fulano sentado a uma mesa recebendo frases que não entende de onde lhe vêm e se colocam mais ou menos por ordem, apesar dele.

 

A seguir vem o trabalho pesado das correcções sucessivas, cortes, ofício de costura, achar outro modo, horas numa vírgula. Uma sina difícil e esquisita, que me acompanha desde que o início, e me condiciona a vida.

 


 

Em Almeirim com a tropa, emboscadas, flagelações, minas, álbuns e álbuns de fotografias daquilo. Não tenho nenhuma, não quero ter nenhuma. Bastam-me as mangueiras de Marimba que me perseguirão para sempre, cheias de morcegos. Uma longa fila de mangueiras enormes, os crocodilos do rio Cambo, um leão que, no Leste, passou rente à viatura: demasiada tralha já, de que me tento livrar sacudindo o lombo da alma. Em parte sou capaz, em parte não sou. E as mangueiras persistem.

 

Até ao fim hão-de morar comigo? Almeirim uma terra bonita. Não me importava de morar lá, conhecer as pessoas. Não me importava de morar fosse onde fosse, como não me importo de morar aqui, é me indiferente o lugar, desde que haja esferográfica, papel, uma cadeira e uma mesa. O almoço dos camaradas num restaurante enorme, com um casamento ao lado. Acho que um casamento, não sei. Vinha-se cá fora fumar, com o sol a pisar-nos. Assinei um livro ao dono do restaurante, antes de me vir embora. Eles continuaram lá. Gente de quem eu gosto, com quem vivi muitos meses. Nem os mortos faltaram: estávamos todos, os mortos nunca faltam. São os primeiros a chegar e os últimos a deixarem-nos. E aqui estão eles comigo, apesar de eu sozinho.

 

António Lobo Antunes

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publicado por ardotempo às 15:33 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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