Domingo, 14.08.11

Um manto para Deus

Arthur Bispo e a arte contemporânea

 

Ferreira Gullar

 

Ele jamais pretendeu fazer carreira de artista nem revolucionar as linguagens artísticas consagradas.

 

A exposição de Arthur Bispo do Rosário na Caixa Cultural - Unidade Chile, no Rio, oferece a oportunidade de apreciarmos um número considerável de seus trabalhos realizados com fio e, também, de refletirmos sobre sua personalidade e sua obra. E isso se torna tanto mais oportuno quando alguns estudiosos dessa obra, ou apenas curadores, o associam ao que se convencionou chamar de arte contemporânea. Essa associação inapropriada dá margem a uma série de equívocos, tanto no que se refere a esse gênero de arte quanto ao que aquele artista criou.


Mas não é só isso. Um pequeno texto na entrada da exposição afirma que Arthur Bispo do Rosário se rebelou não apenas contra o tratamento psiquiátrico como também contra a terapia ocupacional. A referência à terapia ocupacional é surpreendente, primeiro porque, na Colônia Juliano Moreira, hospital psiquiátrico em que estava internado, não havia esse tipo de terapia, criado por Nise da Silveira no Centro Psiquiátrico Nacional. Tampouco era pretensão dela formar artistas, ali, mas apenas oferecer aos pacientes a possibilidade de se expressarem.

 

Aquela afirmação, porém, não é gratuita, uma vez que o texto procura apresentar Arthur Bispo do Rosário como um artista revolucionário, consciente da necessidade de romper com as formas artísticas existentes. Essa tese alia-se a outra, que pretende mostrá-lo como uma espécie de precursor da chamada arte contemporânea, uma vez que não se utiliza das linguagens artísticas consagradas, como a pintura, a escultura ou a gravura. Sua obra consiste em objetos recobertos por fio, além de mantos e estandartes bordados a mão. Trata-se, em ambos os casos, de teorias equivocadas.


Associar a obra desse artista à chamada arte contemporânea é ignorar a origem e a natureza de ambas as manifestações. Todo mundo sabe que o que se chama de arte conceitual ou contemporânea tem sua origem nos "ready-mades" de Marcel Duchamp e nos desdobramentos decorrentes da ruptura com as linguagens artísticas. Já Bispo do Rosário --que não tinha nenhum conhecimento daquelas experiências-- jamais pretendeu fazer carreira de artista nem muito menos revolucionar as linguagens artísticas consagradas. Sua obra é, na verdade, resultado de dois fatores que se juntaram: um talento artístico excepcional e uma visão mística, alimentada por seu desligamento da realidade objetiva, dita normal.

 

Sabe-se que Arthur Bispo do Rosário, nascido em Sergipe em 1911, mudou-se para o Rio em 1926, onde entrou para a Marinha, passando depois a trabalhar na Light. Em 1938, experimentou o primeiro delírio místico, que o levou a um mosteiro, donde o encaminharam a um hospital psiquiátrico. Depois de algum tempo alternando períodos de internação com atividades profissionais, passou a fazer miniaturas de navios, automóveis e bordados.

 

Em 1964, internado na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, teria ouvido a voz de Deus dizer-lhe que sua missão era salvar os objetos do mundo. Preso que estava numa solitária, por ter agredido outros internados, decidiu que a maneira de salvar os objetos seria recobri-los com fio. E passou a fazê-lo, desfiando o tecido de seu próprio uniforme para, com o fio assim obtido, envolvê-los. E prosseguiu nessa tarefa, que incluiria tudo o que lhe chegava às mãos, fossem facas, garfos, funis, algemas etc. Curioso é que, para salvá-los, decidiu ocultá-los, envolvendo-os com fio, e assim protegê-los do olhar humano.

 

Deve-se atentar para o fato de que não pretendia ser consagrado artista, como se deduz do que disse quando falaram em expor seus trabalhos: "Não faço essas coisas para as pessoas, mas para Deus". Não por acaso, sua obra-prima é um manto que bordou para com ele apresentar-se diante de Deus.

 

Certamente, isso não retira de seus trabalhos o valor estético e a criatividade que definem as obras de arte, mas, sem dúvida, torna inapropriado atribuir-lhe intenções vanguardistas. Aliás, a natureza artesanal do que realizou --que lhe exigiu não só talento como mestria e dedicação-- nada tem a ver com a arte contemporânea, que nasceu da negação do trabalho artesanal do artista, o que está evidente no nome "ready-made" --que significa "já feito".

 

Ferreira Gullar - Publicado no UOL / Folha de São Paulo

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publicado por ardotempo às 20:05 | Comentar | Adicionar

As promessas para a Copa

Em Porto Alegre, três anos para fazer tudo...

 

Veja o vídeo Legado da Copa  

 

 

   

 

 

 

 

Muita coisa está prometida, assista o vídeo que mostra como tudo estará em 2014- dois estádios novos, um aeroporto ampliado e reformado, novas estradas duplicadas, novas avenidas, novos viadutos, corredores expressos para ônibus articulados de três corpos, uma nova ponte sobre o Rio Guaíba, um complexo turístico no cais do porto, novas moradias sociais erradicando favelas miseráveis, a limpeza ecológica de um grande rio, um novo mundo, uma nova estrutura viária e urbana - um conjunto de façanhas  a ser realizado em apenas três anos... Isso na cidade que em um ano não se conseguiu juntar e disponibilizar cerca de 3.390 euros para pagar uma taxa legal de transmissão de doação, ao próprio Governo (Tesouro Nacional) em tributação da Receita Federal, para receber sem custos 15 obras do maior artista brasileiro de todos os tempos para o seu melhor Museu público, o MARGS Museu de Arte do Rio Grande do Sul (generosamente doadas pelo artista em testamento), obras de arte magníficas num  valor estimado em cerca  de 435.000 euros.

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publicado por ardotempo às 15:52 | Comentar | Adicionar

Os mínimos obstáculos, intransponíveis

Legados de Ianelli

 

Paulo Amaral

 

Contemplar a obra de Arcangelo Ianelli equivale a passear pelos melhores caminhos da arte brasileira guiado por quem sempre ocupará privilegiado assento entre os grandes mestres da pintura e da escultura. Ianelli trilhou uma carreira visivelmente gradativa, construiu uma obra Suo tempore, sobretudo coerente e plasmada no profundo conhecimento das cores que soube distribuir sobre telas de rara plasticidade. É, em resumo, um artista digno de ser exposto nos maiores museus do mundo.

 

Estes, muitas vezes, apresentam espaços exíguos, o que os obriga a formar acervos limitados, e de forma geral dispõem de verbas minguadas, que os impedem de adquirir novas obras. Mas estas circunstâncias, considerando Arcangelo Ianelli, não justificam que se refutem obras-primas de artistas de sua densidade. Ainda neste ano, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), do qual Ianelli foi estreito colaborador durante sua vida, e de cujo Conselho participou intensamente, rejeitou 14 das 16 obras deixadas em testamento pelo artista, falecido em 2009. A alegação do MAM foi de que eram redundantes em relação a outras do mesmo Ianelli já existentes no acervo da entidade.

 

À polêmica, amplamente discutida pela imprensa do centro do país, estarrecidos com a decisão do MAM, juntaram-se vozes respeitáveis como as de Ferreira Gullar, Fábio Magalhães e Emanoel Araújo. Também ao MARGS, que não possui nenhum exemplar de sua obra, Ianelli legou 15 expressivos trabalhos, dentre os quais duas primorosas marinhas pintadas a óleo, datadas de 1958, quando o artista encontra o esplendor de sua preciosa fase figurativa. Estes quadros estão catalogados no livro IANELLI – Os Caminhos da Figuração, editado pela FAAP por ocasião de uma retrospectiva do artista, ocorrida no Museu da Arte Brasileira, da FAAP em 2004.

 

Outra tela doada ao MARGS (óleo nas dimensões 2,00mx2,50m), pertence à fase mais conhecida por Vibrações, na qual o artista coroa sua extensa carreira, esbanjando absoluto domínio da luz e dos efeitos de transparência. As demais obras são sete pastéis sobre papel, quatro gravuras e uma escultura, todas elas igualmente importantes. Trata-se, em poucas palavras, de uma seleção ampla e expressiva da trajetória de Ianelli, capaz de sozinha sustentar uma exposição gloriosa. Entretanto, estas doações, ofertadas há mais de um ano e meio, ainda não participam do acervo do MARGS pela falta de recursos da entidade para o pagamento de um imposto de transmissão de valor pouco inferior a R$ 8.000,00!

 

Este caso, paradoxal por sua natureza, suscita uma reflexão sobre o descaso dos governos para com a Cultura em geral. Num Estado como o nosso, em que o orçamento destinado à área mal alcança meio por cento do geral, torna-se difícil chancelar a seriedade da gestão pública que não valoriza uma generosa doação de bens avaliados em torno de meio milhão de reais e que não é acolhida por ser indisponível irrisória cifra para o pagamento de uma simples taxa. O fato reproduz um pouco a história da administração pública do Brasil, onde é comum acontecer que se percam projetos e oportunidades por “decorrência de prazo”, isto é, um eufemismo para exprimir inépcia.


As obras de Ianelli foram indiscutivelmente aceitas pelo núcleo de acervo do MARGS, ao contrário do que se passou no MAM de São Paulo. Mas remanesce, fruto de uma política equivocada do governo em relação à história de um museu com mais de meio século de existência, uma pendência tão prosaica quanto inaceitável. Alguma solução poderia vir da Associação de Amigos do MARGS, suporte financeiro do museu, entidade que há alguns anos, através de um organizado trabalho junto a mecenatos, logrou adquirir um pequeno acervo em número de peças, mas rico em conteúdo, no qual pontificava uma estupenda tela de Guignard. Cabe à Associação de Amigos procurar recursos para cumprir metas do cotidiano - e ressaltemos que esta não é uma meta do cotidiano, mas uma ação que, a um custo simbólico, pode significar a aquisição da década para o acervo do maior e mais importante museu de arte do Rio Grande do Sul.

 

O risco que corre o MARGS em acabar não recebendo as obras de Ianelli é maior do que se possa imaginar, porquanto a família do artista aguarda o pagamento do imposto de transmissão para o efetivo encerramento do inventário. Até quando poderão os doadores, por interesse próprio ou por imposições legais, manter em aberto este processo ? A decorrer algum prazo retardatário além do admissível, estas obras poderiam ser oferecidas a outros museus nacionais e estrangeiros que as receberiam com festas de foguetório, como o fizeram o MASP, a Pinacoteca e o Museu da Arte Brasileira, todos de São Paulo.

 

Raramente ocorre a oportunidade de um artista do quilate de Arcangelo Ianelli legar grupos de obras a entidades, e menos ainda seus testamenteiros insistirem em levar tal missão ao cabo.

 

Estas considerações terminam por evocar outra, de caráter institucional.

 

Museus no mundo inteiro cobram ingressos para a visitação, muitas vezes estabelecendo diferentes classes de tarifas de acordo com a importância e o número de exposições exibidas. A França, onde os museus nacionais são congregados por uma só entidade, a Réunion des Musées Nationaux, isso é tratado assim na integralidade. No Reino Unido, excepcionalmente, há algumas políticas de gratuidade, mesmo em casas importantes como a Tate Britain. Mas a opção do Estado inglês em subsidiar estas visitas é compatível com a devida contrapartida financeira por ele alcançada aos museus que não cobram ingressos.

 

Aqui, diferentemente, o Estado não se interessa por dotar museus de verbas compatíveis com um funcionamento digno. Não é difícil compreender este tabu da não cobrança. Ele está preso a um antigo conceito de Estado paternalista em que prevalece a noção de que a arte é ainda-e-para-sempre incipiente, e que cobrar ingressos de um público específico significaria uma afronta a toda uma sociedade. Uma grande falácia. No caso da doação Ianelli, por exemplo, o imposto de transmissão já há muito tempo teria sido pago com recursos diretos de ingressos. A cobrança, mesmo que simbólica, e excetuados alguns casos como os de estudantes e idosos, por exemplo, valoriza os museus ao mesmo tempo em que move a economia da cultura: para os museus, mais acervo, mais publicações, melhores condições disponíveis ao usuário e, por consequência, maior visitação; para os artistas, maior reconhecimento de seu fazer; para os marchands, melhores vendas e mais compras aos que produzem arte.

 

É um ciclo saudável e compatível com a realidade de um país como o nosso, cujo governo se jacta de enfrentar crises econômicas com galhardia e incentiva o consumo a rodo. Que consumamos cultura, pois, e que possamos perceber o baixo custo para o enriquecimento da alma. Ars longa, vita brevis

 

Paulo Amaral - Publicado no jornal Zero Hora

publicado por ardotempo às 07:31 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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