Segunda-feira, 20.06.11

Contra quem grita o mar?

O mundo como vontade e representação

 

António Lobo Antunes

 

Contra quem gritam os pavões? No Castelo de São Jorge gritavam contra a noite, no Campo de Santana gritavam contra a noite, em casa do meu avô gritavam contra a noite, e não eram gritos de pássaros, eram gritos de pessoas feridas na alma, cujo medo protestava ainda. Contra quem gritam os corvos no leste da Europa, contra quem gritam as gaivotas de Portugal? E os albatrozes? E as andorinhas-do-mar? Contra quem gritam, em silêncio, os móveis e os meninos de África correndo na picada? Contra a noite também, contra o absurdo violento da noite. As catatuas gritam contra si mesmas. Eu grito contra a minha alma pecadora. Por que razão me comove um bebé a chorar? Devo ter vertido muitas lágrimas, ainda verto algumas, invisíveis. Talvez nem eu dê por elas, às vezes. Talvez não queira dar por elas mas outro dia, ao olhar um homem que conheço, senti-as descerem-me sob a pele:

 

- O que se passa consigo?

 

e um trejeito da boca

 

- Não estou bem

 

um trejeito do corpo calado

 

- Não estou bem

 

e não posso tocar-lhe para que não se aperceba da minha tristeza.

 

Um soldado a quem uma anti-pessoal levou a perna:

 

- Não contem ao meu pai

 

e não conto ao teu pai, descansa, fica entre nós.

 

Em lugar da perna um coto que não pára de sangrar.

 

Contra quem grita o coto? Contra quem grita outro soldado, de joelhos ao pé dele?

 

- Matámos as galinhas todas

 

diziam os catangueses pelo rádio, matámos as galinhas todas. Galinhas significavam galinhas e mulheres.

 

Alferes José Luís Henriques, valente como as armas, José Luís Cristóvão Henriques, tu contavas isto a gritar. Como os pavões, os corvos, as gaivotas e as andorinhas-do-mar. Contra quem grita o mar? Dá-me todas as lágrimas do mar, pedia o chileno, irmãzinha dá-me todas as lágrimas do mar. As do Zé Francisco na morte da filha. As dos camponeses da Beira na morte de um bezerro. Contra quem grita o porco que todos os anos matavam no pátio do avô, com um alguidar por baixo? As pestanas transparentes sem descanso, as patas amarradas que se torciam, torciam. Amarram-se as patas de trás, amarram-se as patas da frente e a faca a rasgar o pescoço.

 

O Marciano para mim

 

- Não espreite menino

 

ele que acabava os passarinhos estrangulando-os com dois dedos, primeiro agitados, depois quietos. Contra quem não gritam os passarinhos, Marciano? O seu quarto cheirava a tabaco frio, a comida fria, a demasiada gente sendo ele um só. Foi-se embora, perdi-o.

 

O que não perdi eu, pessoas, casas, amigos? Zé, Ernesto, Eugénio, Acácio. Eugénio de Andrade de manta nos joelhos no seu sofá de Serrúbia, vinho fino e bolinhos. Poesia, poesia, como és simples e tu vens, como nasces da harmonia das formas que nunca tens: foi outro quem disse isto, chorando contra quem? Eu com o Zé no aeroporto e o Ernesto a partir de avião para a América, em busca de uma cura que ele sabia impossível. Arrastava-se do sofá à mesa de jantar, sem uma queixa. Quase não conversávamos. Para quê? E arranjava maneira de sorrir de vez em quando. Fizeram-te uma homenagem anos depois, estive lá. Até disse coisas de ti a um microfone.

 

Hoje almocei com as minhas três filhas e, de súbito, um arrepio de pavor por elas. Ontem jantei com os meus irmãos, e, de súbito, um arrepio de pavor por eles. Há tanta coisa que prefiro não saber. Um bêbado a cantar lá fora. Porque é que o vinho não fica bêbado dentro da garrafa, perguntava não sei quem. E a lembrança dos pavões de novo, dos gritos no Castelo. Os pobres comeram os pavões e os cisnes do Campo de Santana. No escuro, no meio dos passadores de droga e dos rapazes do esticão.

 

O que me tentou assaltar no Jardim D. Pedro V, a fitar-me de banda, ao longe, e eu a fazer-me parvo até que começou a vir e agora, de repente, as mulheres de aluguer que traziam um tijolo dos grandes na carteira: uma volta com a pega e o tijolo, contra as partes, a dobrar o esperto em dois. Nem necessitavam de correr, elas, afastavam-se devagarinho depois, imperiais. Mostravam-me o tijolo

 

- Dou-lhes com isto

 

ou antes

 

- Dou-lhes com isto

 

e trigo limpo, farinha Amparo de maneira que fui aprendendo os truques com os anos.

 

Aposto que o rapaz do esticão demorou tempo a esquecer-me. Encontrei-o outra vez no mesmo Jardim D. Pedro V, à caça. Passou-me o olho e ganhou lume no cu.

 

- Não espreite, menino

 

pedia o Marciano

 

- Não espreite

 

eu, em tantas alturas, um porco a sangrar, um porco não muito grande, não muito gordo, a sangrar:

 

- Não contem ao meu pai

 

e, se quiserem contar, agora nem no cemitério o acham. Onde pára o seu silêncio, senhor? A mão dele a explicar

 

- Bem vês

 

que era um dos seus começos de discurso favoritos. Bem vejo o quê, senhor? Nem nuvens, é tarde, os pavões dormem no Castelo. Corvos de São Vicente a pintarem tudo de negro, andorinhas-do-mar rente à espuma. Sento-me na praia em que luzes de barcos de pesca, distantes, fixas. Como uma aldeia alentejana muito no fim da estrada, como Beja depois do crepúsculo. Ó Beja, terrível Beja, terra da minha desgraça. E, enquanto isto, os meninos de África continuam a correr na picada. Jamais vi alguém a brincar tão a sério. Olhos profundos, graves. Reflectindo o quê? Por favor metam aqui um final feliz.

 

António Lobo Antunes

 

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publicado por ardotempo às 21:01 | Comentar | Adicionar

Coquetel com griffe: Caipirinha do Bar Veloso

Museu do Futebol (SP) Camisa Brasileira - no Estádio do Pacaembu

 

Lançamento nacional: dia 1º de julho.

 

Fotografias dos bastidores de um futebol que ninguém vê Camisa Brasileira é um conjunto de imagens originais que o fotógrafo Gilberto Perin captou ao acompanhar, ao longo de vários meses, o vestiário de um clube de futebol em jogos oficiais da segunda divisão.

 

Os bastidores de um futebol que ninguém vê é o tema do livro que será lançado no Museu do Futebol, no Estádio do Pacaembu (Praça Charles Miller, s/nº fone 55 11 3664-3848), dia 1º de julho, sexta-feira, às 19 horas, com a presença do fotógrafo e do escritor Aldyr Garcia Schlee (também o criador da camisa “canarinho” da seleção brasileira). No auditório do Museu do Futebol ocorrerá uma conversa do fotógrafo e do escritor, com o público presente.

 

Esse projeto de Gilberto Perin é um ensaio com 110 fotografias captadas nos vestiários do futebol da segunda divisão do futebol gaúcho, acompanhando o Grêmio Esportivo Brasil (Pelotas-RS). As fotos revelam a alegria, dor, a religiosidade, o drama dos expulsos e machucados, apresentando imagens que hoje são inacessíveis para torcedores e a Imprensa.

 

Nesse livro não há imagens de craques renomados - diz o escritor Aldyr Garcia Schlee. “Aqui há o anonimato de jogadores de futebol do interior do Brasil que dependem do resultado de cada jogo para a própria sobrevivência.

 

Camisa Brasileira é um lançamento de edições ardotempo. No coquetel de lançamento haverá a inconfundível griffe da caipirinha do Bar Veloso.

 

 

 

 

 


publicado por ardotempo às 17:35 | Comentar | Adicionar

Sorteio no Blog Verdes Trigos

 

 

Lançamento: Livro CAMISA BRASILEIRA, edições ardotempo

 

Sorteio dia 2 de julho

 

 

 

Promoção: Serão sorteados dois exemplares de “CAMISA BRASILEIRA” em 2 de julho: um para os fãs de VerdesTrigos no facebook e um para os seguidores twitter do @VerdesTrigos que derem RT a seguinte frase:

 

“Sigo @VerdesTrigos, quero ganhar “CAMISA BRASILEIRA” (#sorteio), lançamento das edições @ardotempo(http://kingo.to/Gas)”

 

Promoção no Facebook: http://sorteie.me/facebook/compartilhar.php?id=2312

 

Livro de arte em grande formato (22 cm x 28 cm) Edição de luxo - Fotografias de Gilberto Perin – 110 imagens Textos de Aldyr Garcia Schlee e João Gilberto Noll edições ardotempo Fotografias (110 imagens a cores e preto&branco a quatro cores) e textos sobre os bastidores do futebol. Um olhar sobre o futebol que ninguém mais vê. O universo secreto dos trabalhadores do futebol.

 

Verdes Trigos

publicado por ardotempo às 17:25 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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