Sábado, 07.05.11

Ternos Pombos

Crepúsculos

 

António Lobo Antunes

 

Noite. No prédio em frente um rapaz diante de um computador, as outras janelas às escuras. Árvores sem folhas ainda, algumas pessoas na esplanada em baixo. Interrompi o livro para escrever isto. Não bem escrever, a caneta anda sozinha. Quais palavras vai ela desenhar neste papel agora? E o livro à espera que eu volte.

 

O que fará a minha mãe neste momento? Deve estar na cadeira do costume, à espera de nada. Que coisas pode esperar ainda? Diz que se lembra da sua vida, ressuscita episódios defuntos, conversa com a parentela dos retratos. Quanto mais infelizes são as pessoas mais medo têm da morte. Mas não serão quase todas mais ou menos infelizes, com uns momentos de alegria aqui e ali?

 

Como é que está? Vou indo não entendo muito bem o que é ir indo, às vezes sublinhado pelo traço vermelho de um suspiro que, quase sempre, antecede o ir indo. Primeiro sublinha-se e depois é que se põe a frase. E há sempre doenças, maçadas, desgraças a contar, que se escutam com gravidade e pena. Entre os tais momentos de alegria existe um que me surpreende especialmente. Costuma chegar com uma satisfação disfarçada Sabes quem está muito mal? e sente-se o prazer de dar notícias dessas, quer dizer qualquer coisa não inteiramente desagradável mora em comunicações desse tipo, antecedidas de uma pausa expressiva e das sobrancelhas circunflexas, embora se repare na luzinha a espreitar por baixo. O Sabes quem está muito mal? continua em regra com Quando me contaram fiquei todo arrepiado ou Quero ver se arranjo tempo para a ver ou Custa-me imenso mas tenho de lá ir ou Ainda há um mês almocei com ela, estava óptima, cheia de planos, e agora, de repente, isto. Não valemos um chavo mas agarram-se ao chavo, trémulos de cagaço Devia fazer exames, eu no pânico de confessar ao doutor Quando respiro parece que tenho vidros moídos aqui com a certeza de que Devem ser nervos tranquilizando-os.

 

O rapaz do computador no prédio em frente levanta-se, desaparece, regressa a subir o fecho da braguilha. Que motivo leva boa parte dos homens a voltarem da casa de banho subindo o fecho da braguilha? Nos urinóis dos aeroportos, por exemplo, a maioria regressa a aperfeiçoar-se nas calças, de saco a tiracolo. Até param para ajustar melhor as saliências, e os primeiros passos são de perna aberta, com um Merda interior porque um pingo na fazenda. Sacode bem insistia a minha avó Sacode bem, menino e não era preciso sacudir se a pila fungasse. O rapaz no computador desceu o estore e perdi-o. Suponho que está a matar monstros num desses jogos utilíssimos que farão dele, em crescendo, Secretário de Estado ou administrador de empresas, duas classes que me fascinam. Os monstros desintegram-se em explosõezinhas amarelas.

 

O meu pai era só médico, o pobre, nunca lhe ouvi a palavra crise. Também nunca lhe ouvi Sabes quem está muito mal? conforme nunca ouvi a nenhuma alma Sabes quem está muito bem? e porque carga de água nunca se diz Sabes quem está muito bem?

 

Árvores sem folhas ainda, algumas pessoas na esplanada em baixo, a fumarem. O homem que ficou tan-tan da guerra em Angola passa por eles aos gritos. De vez em quando dá um soco num caixote do lixo e volta para trás a insultar fantasmas. A minha mãe lá continua decerto, na cadeira, convocando defuntos. A minha avó Vocês matam a vossa mãe com as suas condecorações e os seus santinhos. As condecorações, num armário com portas de vidro, pertenciam ao meu bisavô. Eu gostava especialmente da Torre e Espada, e ela deixava-me abrir o armário e enfeitar-me de medalhas até me tornar uma árvore de Natal heróica.

 

Condecorações portuguesas, inglesas, uma chinesa até, complicadíssima, uma placa de oiro cheia de fios compridos. Às vezes pegava-me na mão à mesa e os seus dedos macios, mas as veias saídas faziam-me impressão. Era muito alta, de olhos azuis, imponente. Em contrapartida o meu avô pequeno, os irmãos dela chamavam-lhe O berloque da Margarida e lembro-me da minha mãe beijá-la quando deixou de respirar. Almoçava aos domingos em sua casa e comia como um alarve. Em adolescente, no que se refere a alarvidades, fui sempre uma competência. Poucas pessoas terão sido, como eu, um virtuoso da estupidez, um talento na asneira. Já esgalhava uns sonetos, bebidos nos poemas de pé quebrado que senhoras, tão prendadas quanto eu, publicavam no Almanaque Bertrand, em edições antes de eu ter nascido. Na base de cada folha havia um pensamento em itálico, com o nome do autor no fim, entre parênteses, pensamentos que eu achava prodígios de lucidez. Decorei vários e tornei-me cultíssimo.

 

Uma ocasião recitei um ao meu pai, que me perguntou se eu não era parvo. Não era: era erudito, condição que, de tão subida, o infeliz não enxergava. Aliás não se erguia além de porcarias rasteiras, Flaubert, Camões, vulgaridades assim, para quem maravilhas como Palram pega e papagaio e cacareja a galinha os ternos pombos arrulham geme a rola inocentinha eram inatingíveis. Nem pus pontuação, de tal modo tanto génio me arrebata. O meu pai detestava os ternos pombos, com o pretexto fútil que lhe sujavam o carro e as cagadelas, além de custarem a sair, manchavam a pintura. Na minha opinião era uma sorte que fossem os ternos pombos a enodoarem o carro. Imaginem só o que aconteceria se as braguilhas dos passageiros do aeroporto pendessem das árvores.

 

 

 

 

 

 

António Lobo Antunes

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publicado por ardotempo às 07:53 | Comentar | Adicionar

Um lugar que se habita

Dia do Silêncio

 

Mariana Ianelli

 

O que quer que justifique a data, é irresistível pensar que esse dia existe desde sempre, que apenas gradativamente foi perdendo espaço, sendo expulso, até resultar numa ilha remota da qual já não se tem notícia, um pedaço de terra aonde agora só se chega, quando se chega, para breves passeios turísticos.

 

Não é o lugar onde alguém fica ruminando uma estratégia, uma jogada de mestre, qualquer coisa bem pensada que vai crescendo, amadurecendo na sombra, não é isso. Nem é uma forma de protesto, um estado de alerta, uma prova declarada de desprezo ou uma divergência tão grande que nada vale a pena ser dito.Não é um minuto de silêncio pelas vítimas de uma chacina.

 

Existe a censura, a veladura, o regime do medo, mas também não é isso, esse túmulo de verdades escondidas onde o que fecha a boca é a impotência, a humilhação ou a cumplicidade num crime. Tudo isso existe dentro de limites bem conhecidos e forma só uma casca de silêncio. Por baixo e ao redor dessa casca continua o mesmo barulho, o mesmo trabalho de colmeia, um mundo de insatisfações, de intenções e de interesses confundidos.

 

O silêncio que ficou difícil, que foi aos poucos se afastando e se perdendo é outro. Não quer significar nada, não sente falta de nada. Não tem o que esconder nem o que reprimir. É quando tudo repousa por dentro. Um horizonte tranquilo, exato, completo. Nenhuma rajada de vento, nem mau pressentimento, nenhum desejo de estar em outra parte. É um chão de pedra com silêncio de pedra. A coisa mais simples. Uma paragem. Um lugar que se habita.

 

Lembrando Ernesto Sabato falecido na madrugada do dia 30/04, último sábado:

 

A dois meses de seu centenário, Sabato encetou viagem para outros séculos. Porque lhe parecia triste morrer, foi mais além: tornou-se o anfitrião de uma outra realidade. Penetrou na noite definitiva, como fazem aqueles que de um sonho não voltam mais. Agora podem esses dois grandes amigos, Borges e Sabato, retomar sua conversa e devanear sobre a vida como antes devaneavam sobre a eternidade.

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

publicado por ardotempo às 07:21 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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