Terça-feira, 31.05.11

“Cozinha o cérebro”

OMS anuncia que celular pode aumentar risco de câncer

 

A radiação de telefones celulares pode causar câncer, anunciou a OMS (Organização Mundial de Saúde) nesta terça-feira. A agência lista o uso do telefone móvel como "possivelmente cancerígeno", mesma categoria do chumbo, escapamento de motor de carro e clorofórmio.

 

A informação foi publicada no site CNN Health. Antes do anúncio de hoje, a OMS havia garantido aos consumidores que a radiação não tinha sido relacionada a nenhum efeito nocivo à saúde. Uma equipe de 31 cientistas de 14 países, incluindo Estados Unidos, tomou a decisão depois de analisar estudos revisados por especialistas sobre a segurança de telefones celulares.

 

A equipe encontrou provas suficientes para classificar a exposição pessoal como "possivelmente cancerígena para os seres humanos." Isto significa que não existem estudos suficientes a longo prazo para concluir se a radiação dos telefones celulares é segura, mas há dados suficientes que mostram uma possível conexão, e que os consumidores devem ser alertados. O tipo de radiação que sai de um telefone celular é chamado de não-ionizante. Não é como um raio-X, mas mais como um forno de micro-ondas de baixa potência. "O que a radiação do micro-ondas faz, em termos mais simples, é semelhante ao que acontece aos alimentos no micro-ondas: cozinha o cérebro", disse Keith Black ao site da CNN, neurologista do Centro Médico Cedars-Sinai, em Los Angeles.

 

 

 

A OMS classifica os fatores do ambiente em quatro grupos: cancerígenos -- ou causadores de câncer -- para o homem; possivelmente cancerígeno para os seres humanos; não classificados quanto ao risco de câncer para o homem; e provavelmente não cancerígeno para os seres humanos. O tabaco e o amianto estão na categoria "cancerígeno para os seres humanos".

 

Chumbo, escapamento do carro e clorofórmio estão listados como "possivelmente cancerígeno para os seres humanos". O anúncio foi feito do escritório da OMS em Lyon, na França, após o número crescente de pedidos de cautela sobre o risco potencial da radiação do celular. A Agência Europeia do Ambiente pediu mais estudos, dizendo que os telefones celulares podem ser tão nocivos para a saúde pública quanto o tabagismo, o amianto e a gasolina.

 

O líder de um instituto de pesquisa do câncer da Universidade de Pittsburgh enviou um memorando a todos os funcionários, pedindo a diminuição do uso do celular por causa de um possível risco de câncer. A indústria de telefonia celular afirma que não há provas conclusivas de que a radiação dos aparelhos cause impacto sobre a saúde dos usuários. O anúncio de hoje pode ser um divisor de águas para as normas de segurança. Os governos costumam usar a lista da Organização Mundial de classificação de risco cancerígeno como orientação para as recomendações de regulamentação ou ações.

 

Publicado pelo Universo Online

publicado por ardotempo às 19:33 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Segunda-feira, 30.05.11

Sobre bons livros e a Jornada

 

(A importância da Jornada Literária de Passo Fundo)

 

 

 

O antídoto contra a violência e o caos

 

O Brasil, infelizmente, está colocado entre os países de comportamento mais violento e corrompido no mundo civilizado. Isso pode ser facilmente constatado nas estatísticas do trânsito urbano e rodoviário, no cenário policial desproporcional dos assaltos nas cidades, na impressionante violência doméstica contra mulheres e crianças, na aspereza dos relacionamentos no cotidiano das pessoas.

 

Pode-se responsabilizar os disparates da iníqua distribuição de renda e os apelos ao consumo feérico, estimulado pelas campanhas publicitárias e ao comportamento sugerido pela mídia em geral. Existe um mundo imantado de vaidades, hedonismos, de consumo e de riqueza instantânea a atrair e fascinar milhares de pessoas.

 

Como alcançar ou compreender e aceitar o inalcançável?

 

Ler e escrever pode ajudar a integrar mais pessoas. Mas não a leitura superficial de qualquer coisa escrita, legendas, textos precários, preconceituosos, superstições e frivolidades. Praticar e estimular esportes em geral pode até ajudar a reduzir as tensões e abrir portas a reconhecimentos aqui e ali. Mas não é o suficiente porque o pão ainda é escasso e o circo mostra-se cada vez mais como estopim ardente para a violência estrepitosa, em comportamento incontrolável de barbárie por massas enfurecidas.

 

Uma saída efetiva vem sendo oferecida há anos pela Jornada Literária de Passo Fundo. Estimular o aprendizado metódico do conhecimento, pela leitura crítica e consciente da boa literatura e dos bons livros, de bons autores. Alcançando resultados concretos e mensuráveis.

 

Esta é uma saída construtiva que recupera um caminho já trilhado por grandes civilizações. A recuperação do espírito e da ética, a reconstrução dos reconhecimentos dos espaços antagônicos do bem e do mal, a avaliação dos espaços tangíveis dos direitos individuais e o respeito ao outro e à dignidade de todos, como princípios.

 

Essa tem sido a contribuição cultural efetiva das Jornadas Literárias de Passo Fundo. O antídoto contra a violência e o caos.

 

 

 

 


publicado por ardotempo às 04:20 | Comentar | Adicionar
Domingo, 29.05.11

Quem protege a nossa língua?

Verdade e preconceito

 

Ferrreira Gullar

 

Tenho comentado aqui o fato de que, para alguns linguistas, nunca há erro no uso do idioma: tanto faz dizer "problema" como "pobrema" que está certo. Confesso que, na minha modesta condição de escritor e jornalista, surpreendo-me, eu que, ao suspeitar que poderia me tornar poeta, passei dois anos só lendo gramáticas. E sabem por quê? Porque acreditava que escritor não pode escrever errado.

 

E agora descubro que ninguém escreve errado nunca, pois todo modo de escrever e falar é correto! Perdi meu tempo? Mas alguma coisa em mim se nega a concordar com os linguistas: se em todo campo do conhecimento e da ação humana se cometem erros, por que só no uso da língua não? É difícil de engolir. Essa questão veio de novo à baila com a notícia de um livro, adotado pelo Ministério da Educação e distribuído às escolas, em que a autora ensina que dizer "os livro" está correto.

 

Estabeleceu-se uma discussão pública do assunto, ficando claro que, fora os linguistas, ninguém aceita que falar errado esteja certo. Mas não é tão simples assim. Falar não é o mesmo que escrever e, por isso, falando, muita vez cometemos erros que, ao escrever, não cometemos. E às vezes usamos expressões deliberadamente "erradas" ou para fazer graça ou por ironia. Mas, em tudo isso, está implícito que há um modo correto de dizer as coisas, pois a língua tem normas.

 

O leitor já deve ter ouvido falar em "entropia", uma lei da física que constata a tendência dos sistemas físicos para a desordem. E essa tendência parece presente em todos os sistemas, inclusive nos idiomas, que são também sistemas. Devemos observar que as línguas, como organismos vivos que são, mudam, transformam-se, como se pode verificar comparando textos escritos em épocas diferentes. Há ainda as variações do falar regional, que guarda inevitáveis peculiaridades e constituem riqueza do idioma.

 

Mas isso não é a mesma coisa que entropia. Já violar as normas gramaticais é, sim, caminhar para a desordem. Se isso é natural e inevitável, é também natural o esforço para manter a ordem linguística, que não foi inventada pelos gramáticos, mas apenas formulada e sistematizada por eles: nasceu naturalmente porque, sem ela, seria impossível as pessoas se entenderem.

 

Na minha condição de "especialista em ideias gerais" (Otto Lara Resende), verifico que, atualmente, não só na linguística, tende-se a admitir que tudo está certo e, se alguém discorda dessa generosa abertura, passa a ser tido como superado e preconceituoso. Agora mesmo, durante essa discussão em torno do tal livro, os defensores da tese linguística afirmaram que quem dela discordava era por preconceito. Um dos secretários do ministro da Educação declarou que aquele ministério não se julgava "dono da verdade" e que, por isso mesmo, não poderia impedir que o livro fosse comprado e distribuído às escolas.

 

Uma declaração surpreendente, já que ninguém estava pedindo ao ministro que afirmasse ou negasse a existência de Deus, e sim, tão somente, que decidisse sobre uma questão pertinente à sua função ministerial. Não é ele o ministro da Educação? Não é ele responsável pelo rumo que se imprima à educação pública no país? Se isso não é de sua competência, é de quem?

 

De fato, o que estava por trás daquela afirmação do secretário não era bem isso, e sim que a crítica ao livro em discussão não tinha nenhum fundamento: era mero preconceito. Ou seja, simples pretensão de quem se julga dono da verdade que, como se sabe, não existe... Esse relativismo, bastante conveniente quando se quer fugir à responsabilidade, tornou-se a maneira mais fácil de escapar à discussão dos problemas.

 

Certamente, não se trata de afirmar que as normas e princípios que regem o idioma ou a vida social estejam acima de qualquer crítica, mas, pelo contrário, devem ser questionados e discutidos. Considerar que todo e qualquer reparo a este ou aquele princípio é mero preconceito, isso sim, é pretender que há verdades intocáveis. Não li o tal livro, não quero julgá-lo a priori. Creio, porém, que quem fala errado vai à escola para aprender a falar certo, mas, se para o professor o errado está certo, não há o que aprender.

 

Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL

tags:
publicado por ardotempo às 12:38 | Comentar | Adicionar
Sábado, 28.05.11

O leitor que não pára de ler

Um adolescente extraordinário

 

Juan Cruz

 

Alberto Manguel tiene 62 años, pero no sólo por eso es un adolescente extraordinario. A su edad, y después de una experiencia que lo ha llevado a muchos países y a numerosos libros, e incluso a la cárcel argentina cuando era un muchacho díscolo frente al poder militar, aún se pone rojo como un tomate cuando la timidez lo vence.

 

Esa es una facultad que se convierte en virtud cuando uno tiene 62 años. Y acaso es esa perpetuación de la adolescencia la que late debajo de este libro singular al que uno se enfrenta como si fuera a leer una conversación erudita y sale de él con la frescura de haber asistido a un divertidísimo recuento de las andanzas de un hombre al que uno imaginaba acechado por los libros, ajeno a la vida, un poco como Jorge Luis Borges, o como la mitología dice que fue el gran ciego de Buenos Aires.

 

El libro es Conversaciones con un amigo y es el conjunto de charlas, muy bien conducidas, que tuvo con Manguel el editor francés Claude Rouquet a lo largo de varias semanas. La edición de entrevistas es un arte, y conviene aprender de esta que emprendió Rouquet, pues en ningún momento se olvida uno de que es una conversación, porque en todo momento se sabe uno involucrado en ella, participando en una peripecia que el arte de la entrevista convierte en una buena experiencia propia. Aunque se habla de libros, sobre todo, se habla también de la vida, y de mucha vida, pues, como con Borges, que fue su amigo, y a quien leyó en un periodo singular de la vida, con Manguel hay un malentendido si uno cree que sólo está preocupado por lo que nace de la lectura, que por otra parte es su saludable obsesión perpetua.

 

Borges era un hombre risueño y bromista, no estaba todo el día rodeado de legajos; y a Manguel le pasa algo parecido: está rodeado de libros, esa es su geografía, pero hay mucho más en Manguel; la suya es una mirada distraída y minuciosa, mira como si escribiera, y se ríe o se enfada mirando, no es un ermitaño alojado en la torre húmeda de Montaigne. Este es, pues, un libro sobre la vida y se lee como si fuera una reflexión sobre el tiempo en función de los libros. Incluye el acontecer realmente singular de su padre diplomático, peronista y vagabundo, la expresión indignada del joven Manguel y la raíz de su pasión por la escritura, que es un ejercicio muy generoso en su caso, pues escribe de otros, obsesivamente escribe de otros, aunque también aborda la novela propia de la que la vida emerge.

 

Los libros son tan importantes que le sirven, incluso, para marcar su propio tiempo. Es muy emocionante leer esta confesión de Manguel que ya tiñe el recuerdo del libro: "No creo en el más allá, creo que me convertiré en un polvo que, espero, ayudará a que crezcan algunos zapallos. Lo que me importa es saber que todo esto va a terminar. El tiempo que pasa me permite medir lo que me queda por hacer". Cuando era adolescente se consideraba capaz de todo, de leerlo todo; ahora sabe que ya no es posible. "Me da lo mismo. Como cualquier lector, tuve la suerte de haber encontrado algunos textos interesantes". En el libro aparecen esos textos, desde policiales a la Divina Comedia, pasando por Kipling y Chesterton. Esta biblioteca, dice, es un autorretrato. Y el libro es un retrato en el que Manguel aparece como un adolescente extraordinario que no parará de leer.

 

 

 

Juan Cruz - Publicado em Babelia / El País

publicado por ardotempo às 18:48 | Comentar | Adicionar

Uma agulha, três fios

Fotografia

 

 

Alexandre Schlee Gomes - Sem título - Fotografia (Pelotas RS Brasil), 2011

publicado por ardotempo às 14:51 | Comentar | Adicionar

Insígnia infectada

Nossa cruz interdita

 

Mariana Ianelli

 


 

A suástica que hoje tem seus adeptos não é a mesma que Rudyard Kipling estampava na capa dos seus livros no começo do século 20. Já não representa um amuleto da sorte, representa a corrupção da inteligência que se incorporou a este símbolo desde a sua transformação num slogan nazista.

 

Estamos mais próximos de uma suástica tatuada no peito de um delinquente do que de uma suástica inscrita na cerâmica de um vaso antigo. O que por milênios foi um emblema de felicidade e harmonia em um século tornou-se uma insígnia do horror e do extermínio. Se nos coubesse dar um lugar para este símbolo, dificilmente pensaríamos numa catedral ou num templo budista. Mosaicos, esculturas, altares, portões de uma cidade e páginas de um livro santo já exibiram essa cruz como um signo de bom augúrio, proteção espiritual, equilíbrio. Hoje a suástica é a nossa cruz interdita. Não ousamos mais exibi-la, sob o risco de denúncia, de repúdio, de censura por falta de bom senso.

 

Como reabilitar uma cruz? É a pergunta que fica. Como desinfetá-la de uma representação hedionda, como pregá-la de novo no alto de uma fachada sem que isto seja a apologia de um crime, um insulto à memória de um povo, a extravagância infeliz de um polemista, como lembrar da pré-história de um símbolo e associá-lo antes a um santuário que a um campo de extermínio, como fazemos para girar essa cruz e, condizendo com o seu sentido, progredir.

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

publicado por ardotempo às 13:27 | Comentar | Adicionar

Onde é que eu tenho a alma?

Os caminhos do Senhor

 

António Lobo Antunes

 

Se eu soubesse dizer-te o que sinto. Se pudesse abrir o peito para tu veres lá dentro, cheio de postais ilustrados, com pombinhos e fitas cor de rosa, um gato a sair de uma bota velha, um menino, mascarado de palhaço, a chorar uma única lágrima, um bambi cromado sobre o naperon, duas rolas de loiça a juntarem os bicos, andorinhas como as que tenho na varanda da casa, envernizadas, tão lindas. Se calhar já não há nada disso, como não há armários de fórmica e mobília de quarto quinane, nem azulejos que dizem Cuidado Com O Cão ou Entra Amigo A Casa é Tua, nem Alziras, nem Lucindas, nem Custódias, como não há Vítores Manueis nem Edgares, o que o mundo mudou. O Almanaque da Sãozinha onde pára, sonetos de senhoras sensíveis nos jornais. Quando eu era pequeno deram-me um livro de poemas, com o título de Hóstia Florida, escrito por um cónego sensível, chamado Monsenhor Moreira das Neves, que me lembro de ver em casa de uma tia-avó minha, bebendo chás virtuosos, gordo, cheio de opiniões e bondade, muito dado às torradas. Foi a minha primeira grande influência literária e, na minha opinião, o título Hóstia Florida era um achado de génio. Lembro-me do Monsenhor Moreira das Neves declarar, enquanto a minha tia-avó me mostrava a obra com respeito

 

- Vende-se como pão

 

e de me surpreender a imagem, vinda de um espírito tão delicado e fino, a apanhar as migalhas da batina com o indicador molhado em cuspo, sob a fotografia emoldurada do doutor Salazar a apertar a mão ao senhor Cardeal Patriarca, unidos num sorriso afectuoso e digno porque se vivia numa época de respeito, avessa ao casamento civil e ao comunismo ateu, duas expressões que não percebia o que significavam mas que, a calcular pela opinião das pessoas responsáveis, eram coisas perigosas e desumanas, que podiam ser evitadas pela leitura da Vida Exemplar De São Luís Gonzaga, acompanhada da história de um outro menino francês que ofereceu a existência em troca da conversão do padrinho, o qual se persignou, ajoelhado, diante da urna e, a partir desse momento, se tornou exemplar e esmoler, outra expressão difícil, dedicado aos leprosos que no princípio do século, ou seja mil e novecentos, mil novecentos e tal, enxameavam Paris, vivendo nas grutas que rodeiam a torre Eiffel e descendo os Campos Elísios de gatas e aos guinchos, cobertos de percevejos e trapos.

 

Ao perguntar ao Monsenhor Moreira das Neves acerca das grutas que envolvem a torre respondeu, sempre a catar migalhas

 

- De certeza que há mas talvez não sejam assim tantas, para aí umas trinta

 

e aí temos o motivo de eu não gostar de Paris:

 

imagine-se um leproso atrás de nós a pedir esmola,

 

incapaz de apanhar migalhas porque não tem dedos e refugiando-se depois nas savanas dos Campos Elísios, onde o padrinho exemplar e esmoler lhe oferecia bavaroises e canards à l'orange, que são o equivalente de pão da véspera para nós, a fim de o aliviar das torturas da fome, acrescentado do folheto Preparação Para a Primeira Comunhão, destinado ao ensinamento salutar das almas transviadas.

 

 

 

O folheto Preparação Para a Primeira Comunhão ofereceu-mo o senhor Cónego, repleto de ordens úteis:

 

não comer nem beber depois da meia noite para não misturar Jesus com o rosbife, vestir a melhor roupa mas com mangas compridas dado que Deus odeia a carne ao léu, receber a hóstia sem lhe tocar com os dentes

 

(muita atenção a este ponto)

 

não a descolar do céu da boca com o mindinho, consentindo apenas que a saliva

 

(o termo cuspo não é da estima divina)

 

ajude Jesus a deslizar sem riscos até um estômago devidamente limpo

 

(estou a citar)

 

templo interior adequado à recepção da Graça.

 

Para onde é que a Graça ia depois a Preparação não falava, mas presumia-se que não se puxava o autoclismo, no dia seguinte, enviando-a para o Tejo através dos esgotos da Cruz Quebrada:

 

Jesus não era pessoa para trambulhar com o lixo e decerto que se elevava do estômago até à alma através de misteriosos tubos que possuímos cá dentro, destinados ao trajecto barriga-céu sem paragens intermediárias.

 

À questão

 

- Onde é que eu tenho a alma?

 

o senhor Cónego elucidava-me designando o tecto com o queixo, para além do tecto o vizinho de cima que batia na mulher, estremecendo o lustre e, para além do vizinho de cima, que trabalhava de contrabandista, ajudando as hóstias a ultrapassarem a fronteira do telhado, a alma à espera de Jesus numa impaciência gulosa, unindo-se num abraço casto

 

(Não penses em porcarias, miúdo

 

eu que não pensava em porcarias, me maravilhava só)

 

que nos colocava mais perto de uma eternidade de bem-aventuranças

 

(O que são bem-aventuranças? Tanta pergunta cansa-me)

 

cujo significado eu descobriria mais tarde

 

(Hás-de descobrir isso mais tarde)

 

quando a experiência da vida me ensinasse

 

(A experiência da vida há-de ensinar-te, garoto)

 

a distinguir subtilezas que a minha pouca idade me impedia de visionar

 

(Visionar quer dizer ver, pateta)

 

com a clareza que o Espírito Santo não deixa de conferir às pessoas honestas, 

 

característica que a avaliar pela generosidade das torradas da minha tia-avó e do seu espírito naturalmente bondoso

 

(naturalmente bondoso julgo que relacionado com a qualidade do chá Este chá é um primor, minha senhora)

 

eu herdaria certamente.

 

É possível que tenha herdado o espírito naturalmente bondoso

 

(item número dezanove do seu testamento: ao meu sobrinho-neto lego o meu espírito naturalmente bondoso)

 

dado que nem um tostão abichei com a sua morte. Os outros apropincuaram-se com o dinheiro e os tarecos, mas o espírito bondoso já cá canta, só que até hoje não me rendeu fosse o que fosse, a não ser chamares-me

 

- Parvo

 

a cada passo e eu, humilde, a escutar-te, pensando se soubesse dizer-te o que sinto, se pudesse abrir o peito para tu veres lá dentro, e os postais ilustrados, os pombinhos, os bambis, os naperons, as rolas, a tralha toda com que te afoguei ao princípio da crónica, tu, aproveitando uma pausa, a comunicares-me


Não esperes por mim para jantar

 

pondo, à pressa, mais perfume, visto que a buzina de um automóvel te chama da rua, e o Jorge é suficientemente impulsivo para nos entrar casa dentro.

 

António Lobo Antunes

tags:
publicado por ardotempo às 03:13 | Comentar | Adicionar

Ponto de fuga

Perspectiva

 

"Quando o sol da cultura está baixo, sobre a linha do horizonte, até  mesmo os anões projetam sombras enormes". Karl Kraus

 

publicado por ardotempo às 02:19 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 27.05.11

A dansa

Sophia de Mello Breyner Andresen
 

Eduardo Pitta

 

A publicação recente da 2ª edição de Obra Poética de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) merece alguns comentários.

 

Entre Novembro de 2003 e Outubro de 2004, a Editorial Caminho publicou, em catorze volumes, a edição definitiva desse vasto corpus poético. Tal empresa ficou a dever-se a Luis Manuel Gaspar, como sabe muita gente e Maria Andresen Sousa Tavares confirmou em carta publicada no Jornal de Letras de 17 de Setembro de 2003: «Por equívoco [...] é-me atribuída a coordenação, com Luis Manuel Gaspar, do levantamento, reunião e organização de inúmeros poemas e outros textos dispersos que foram sendo publicados durante décadas, por Sophia, em jornais, revistas, etc. [...] De facto, a Luis Gaspar deve-se todo o trabalho de busca de dispersos, inventariação de poemas abandonados de uma edição para outras, inventariação de variantes, assim como o respectivo acerto e aparato crítico. [...] O seu a seu dono.»

 

Esse minucioso trabalho inclui verbetes biobliográficos, opções de ortografia e demais aspectos de natureza editorial. À época, escrevendo sobre a edição conjunta dos catorze volumes, lamentei que não tivesse sido possível reunir em volume único toda a poesia de Sophia, a quem devemos a nitidez da dicção, paganismo visionário, ética radical, sentido trágico da existência, empenho nas causas sociais, convívio com as coisas e os seres. Finalmente, em Outubro de 2010, surge o esperado volume único de Obra Poética, organizado por Carlos Mendes de Sousa, que mantém sem alterações significativas a fixação de texto estabelecida por Luis Manuel Gaspar.

 

Neste volume são pela primeira vez divulgados 29 poemas dispersos (recolhidos por Gaspar), bem como um inédito de 1943.

 

Afirma Carlos Mendes de Sousa, na Nota de Edição (pp. 7-8), que as edições de 2003-04, «designadas definitivas, foram organizadas por Luis Manuel Gaspar.» Mas o cotejo dos catorze volumes permite verificar: Vols. 1-7, Edição de Luis Manuel Gaspar; Vols. 8-10 e 12, Edição de Maria Andresen Sousa Tavares e Luis Manuel Gaspar; Vols. 11, 13-14, idem, com a ressalva de que a fixação de texto (creditada a Gaspar nos volumes precedentes) passou a ser feita «segundo critérios acordados com» a filha da autora. Diz ainda Sousa que a presente edição «segue e actualiza os critérios de fixação de texto» (p. 7). Por ‘actualizar’ podemos considerar a opção tomada relativamente a determinadas idiossincrasias ortográficas de Sophia.

 

Exemplo óbvio será o do verbo dançar, que Sophia grafava com ‘s’: «Dansam as árvores puras sacudidas» (cf. Dia do Mar, 1947, e edição ‘definitiva’ de 2003). Em mais do que uma entrevista, Sophia reiterou esse seu modo de escrever: «A única palavra portuguesa cuja ortografia precisa de ser mudada é dança, que se deve escrever com ‘s’, como era antes, porque o ‘ç’ é uma letra sentada, uma letra pesada. Escrevo com ‘s’, mas há sempre o desastre de os tipógrafos ou as pessoas que me passam os textos à máquina acharem que é um erro e emendarem para ‘ç’...» (DN, 24-11-94.)

 

Isso mesmo é verificável na exposição Uma Vida de Poeta, recentemente organizada por Teresa Amado e Paula Morão na Biblioteca Nacional. Sousa discorda: «Não tendo a autora determinado que tal singularidade passasse a ser regra na sua obra, seria abusivo considerar que Sophia pretendeu instaurar um preceito de uso ortográfico próprio.» (p. 8) Assim desapareceu essa marca textual. Numa edição tão cara, compreende-se mal que a paginação seja pouco rigorosa no respeito da divisão estrófica dos versos. Dito de outro modo, salvo conhecedores profundos da obra de Sophia, a mudança de página não permite ver (a olho nu) onde termina uma estrofe e começa outra. Minudências? Decerto.

 

Sucede que em poesia a noção de espaço é intrínseca à leitura. Nesse particular, a edição 2003-04 tem uma fiabilidade acrescida. Nesta 2ª edição, dada à estampa já em 2011, saúde-se (entre outras) a correcção operada no poema Crepúsculo dos Deuses (p. 506; cf. Geografia, 1967), cuja estrofe final fora em Outubro de 2010 acoplada à anterior: «Ide dizer ao rei que o belo palácio jaz por terra quebrado / Phebo já não tem cabana nem loureiro profético nem fonte melodiosa / A água que fala calou-se». Fica o mais importante: uma obra ímpar.

 

Ne Varietur, in Ípsilon, 27-05-2011, p. 40. Cinco estrelas.

 

Eduardo Pitta - Publicado no blog Da Literatura

publicado por ardotempo às 20:46 | Comentar | Adicionar

Prêmio Portugal Telecom 2011

 

50 Indicados ao Prêmio Portugal Telecom 2011

 

 

 

Veja o vídeo:


http://videos.sapo.pt/4LYzMblj0hMhD6lnrRF5

publicado por ardotempo às 20:37 | Comentar | Adicionar
Quinta-feira, 26.05.11

Origem do Mundo - Instalação Cubo Rubik

 

Instalação Invader - Cubo mágico (Cubo Rubik)

 

 

 

 

Invader - L'Origine du monde / Releitura L'Origine du Monde - Gustave Courbet - (Pintura óleo sobre tela - 1866) -  Instalação com Cubos Rubik, colados sobre painel de madeira  (Paris) 2006

publicado por ardotempo às 19:00 | Comentar | Adicionar

Mal-entendido ou bem-entendido?

Recusa de obras de Ianelli pelo MAM provoca mal-estar

 

Gabriela Longman

 

O testamento do artista previa doação de 16 trabalhos à instituição (MAM São Paulo) 

 

O Conselho do MAM São Paulo votou agora por ficar apenas com duas, rejeitando outras 14 obras Conhecido pela luminosidade de seus quadros, o artista Arcangelo Ianelli morreu em 2009. No testamento, deixou obras para 16 museus e instituições diversas – Masp, MAC-USP, Museu Afro Brasil e FAAP foram alguns dos contemplados pela doação.

 

Com 15 obras do pintor em seu acervo atual, o MAM-SP considerou as obras recebidas como "redundantes", à exceção de duas: o óleo sobre tela "Barcos", de 1961, e uma escultura sem título, de 1974.

 

A decisão, tomada pelo curador Felipe Chaimovich e pelo conselho de arte do museu, foi considerada ofensiva pela família do pintor.

 

"Essa justificativa é absurda", disse à Folha Katia Ianelli, filha do artista. "O conjunto contém esculturas, pastéis, relevo sobre madeira, tudo o que eles não têm no acervo. Fico triste porque meu pai era muito ligado ao MAM. Participou de Conselhos e organizou leilões beneficientes ao Museu."

 

Segundo ela, a atitude contrasta com a de todos os outros museus, que celebraram a chegada das obras. "A Pinacoteca programou uma exposição como forma de agradecer a doação."

 

Chaimovich afirmou que a importância do pintor é inegável, mas que o Conselho mantém sua posição sobre a redundância e a rejeição das obras de Ianelli. "Vamos entrar em contato com a família e desfazer o mal-entendido."

 

Gabriela Longman - Publicado pela Folha de São Paulo / UOL

publicado por ardotempo às 18:14 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Arrogância de Museu

Conselho do MAM mantém rejeição a obras doadas por Ianelli

 

Claudio Leal

 

O conselho consultivo do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, numa reunião realizada esta semana, decidiu manter a rejeição a 14 obras doadas em testamento pelo pintor e escultor Arcangelo Ianelli. Entretanto, o curador Felipe Chaimovich e os conselheiros  Annateresa Fabris, Luisa Duarte e Lauro Cavalcanti, resolveram reabrir o diálogo com a família do artista, para incorporar as duas únicas obras consideradas não-redundantes no acervo. O museu reconheceu um equívoco sobre o imposto de transmissão, um dos argumentos para a recusa.

 

Segundo Chaimovich, além de ver redundância nos quadros e esculturas, não haveria recursos para bancar a incorporação. Contestado pelo advogado da família Ianelli, que lembrou a não-incidência do imposto sobre os museus estaduais, o MAM admitiu o erro, após uma consulta ao setor jurídico.

 

Na sexta-feira (20), Terra Magazine revelou que, em novembro de 2010, o MAM recusou as obras de Ianelli, um dos maiores e mais valorizados pintores brasileiros contemporâneos.

 

Ele deixou, em testamento, cerca de 170 obras representativas de sua trajetória para o acervo de 16 museus nacionais e estrangeiros. Após a divulgação da recusa, os filhos do pintor, Katia e Rubens Ianelli, receberam dezenas de mensagens de solidariedade de artistas plásticos e professores universitários. A família não voltou a ser contatada por Chaimovich.

 

Oficialmente considerada uma "política curatorial", a rejeição acendeu uma polêmica. O poeta e crítico de arte Ferreira Gullar se revelou "perplexidade". A presidente do MAM, Milu Villela, permanece em silêncio sobre o episódio.

 

Segundo a assessoria do MAM, quem se pronuncia sobre a política de acervo é o conselho consultivo e a curadoria.

 

Numa carta à família, em 24 de novembro de 2010, o curador não havia detalhado os argumentos. "O Conselho Consultivo de Artes do Museu de Arte Moderna, em sua última reunião, posicionou-se contrariamente à entrada dessas obras no acervo do museu. Assim sendo, entendemos por bem recusar as mesmas", informou. O MAM foi o único museu brasileiro e internacional a recusar as obras deixadas em testamento.

 

Claudio Leal

 

 

 

 

(NE ardotempo - Teimosia e arrogância -

 

 

Não há o que dizer frente a este absurdo no qual todos no MAM, diretoria, conselheiros e curador são culpados e cúmplices. Creio que a proposta de aceitação de duas obras e rejeição de outras catorze obras é envenenada, pois supõe a aceitação resignada da ideia ABSURDA e RIDÍCULA da "redundância".

 

 Que absurdo é esse de "redundância" com relação a artistas sérios, originais e paradigmáticos? Que fazem "plágio" de si mesmos? Que "repetem" ideias pictóricas?

 

Isso se aplica ("redundância?!?) a Mark Rotko, a Calder, a Max Bill, a Frank Stella, a Ianelli, a Volpi, a MORANDI, a Charoux, a Tomie, a Emanoel Araújo, a Miró, a Nikki de St. Phalle, a Mira Schendel, a Vieira da Silva, a Torres-Garcia, a Frida Khalo, a Roy Lichenstein, a Hockney, a Tapiés, a Francis Bacon?

 

O acadêmico arrogante, mal intencionado, leniente, preguiçoso, irresponsável e estúpido que engendrou essa tese espantosa deveria ser sumariamente demitido!)

tags: ,
publicado por ardotempo às 12:28 | Comentar | Adicionar
Terça-feira, 24.05.11

Paris-Tokio Rue Saint' Anne

Paris japonesa

 

 

Estação Pyramides - Linha 14 M - saindo do Metro automatique, metro a metro, toda a rua é japonesa, em seu leve decline, as esquinas limítrofes incluídas, tudo na Rue Saint' Anne possui a atmosfera e o gosto do Japão. Foto de Eric Tenin

publicado por ardotempo às 01:23 | Comentar | Adicionar
Segunda-feira, 23.05.11

Túnel - SAO

 

São Paulo

 

 

 

Giacomo Favretto - Fotografia - I Phone (São Paulo SP Brasil) , 2011

publicado por ardotempo às 15:20 | Comentar | Adicionar
Domingo, 22.05.11

Vaidades, terrorismo e insensatez

Saia justa

 

Ferreira Gullar

 

Após os atentados de 11 de Setembro de 2001, a eliminação de Osama bin Laden tornou-se uma questão de honra para o presidente dos Estados Unidos, fosse ele quem fosse. É evidente que a inusitada audácia do terrorista, ao alvejar pontos de alta significação simbólica do poder norte-americano, atingiu o orgulho e a segurança da nação, sem falar no massacre de milhares de inocentes.

 

Se se leva em conta que, depois disso, Bin Laden aparecia com certa frequência na televisão do país formulando novas ameaças, o resultado inevitável era, no povo, o pavor de que, a qualquer momento e em qualquer lugar, o terror o atingisse de novo e, no presidente, a necessidade de por fim àquilo, ou seja, devolver ao país, a qualquer preço, a tranquilidade e a autoestima. Consegui-lo era uma missão irrevogável e o tornaria o salvador da pátria. Bush, apesar de todo o empenho, não o conseguiu.

 

Obama, ao ser informado de que o esconderijo do inimigo número um da nação fora descoberto, não hesitou, diante da oportunidade que a história lhe oferecia. A informação de que Bin Laden fora localizado era uma possibilidade, mas não uma certeza. No entanto, qualquer que fosse o risco a correr, desistir estava fora de cogitação. Por isso, o passo seguinte foi assegurar o modo de chegar até a casa-fortaleza e cumprir a missão. Pensaram em simplesmente lançar um foguete sobre o esconderijo e destruí-lo. Isso não apenas mataria indiscriminadamente quem ali estivesse, como tornaria difícil comprovar que Osama bin Laden fora eliminado.

 

Venceu a proposta de invadir a casa. Isso posto, passou-se aos meios de que se valeriam e à discussão de um problema político: deviam realizar uma ação militar em território do Paquistão sem a permissão de seu governo? Obama diria, mais tarde, ao anunciar o fato, que obtivera a permissão do governo paquistanês, o que depois foi negado.

 

De qualquer modo, jamais revelaria o objetivo de tal missão, que não revelou nem para sua mulher. A possibilidade de vazamento de tão decisiva tarefa aconselhava total sigilo. Se tal possibilidade está presente em toda e qualquer circunstância, ninguém em sã consciência se arriscaria a confiar no governo paquistanês, infiltrado de aliados da Al Qaeda. Bastava o fato de que Bin Laden ali se instalara e vivia, sem ser incomodado, nas vizinhanças de um quartel do Exército e a poucos quilômetros da capital do país. Quem quer que tivesse por missão dar fim a Bin Laden jamais revelaria qualquer coisa às autoridades do Paquistão.

 

Assim fizeram os norte-americanos e atingiram seu objetivo. Foi, na verdade, um ajuste de contas, porque o terrorismo de Al Qaeda nunca significou uma possibilidade de mudança no equilíbrio de poder no mundo, uma vez que se trata muito mais de uma seita de fanáticos, movidos pelo propósito de impor à humanidade uma visão fundamentalista do islamismo. Sem base territorial, sem Exército, tudo o que pode fazer é tramar e executar atentados contra o "inimigo": os países capitalistas ocidentais e, especialmente, o mais poderoso deles, os Estados Unidos.

 

Falando à Globonews, o jornalista inglês Robert Fisk, que entrevistara Bin Laden três vezes, antes e depois do 11 de Setembro, nos deu uma imagem bastante verossímil dele: vaidoso, convencido da missão de impor ao mundo a vontade de Maomé, atribuía-se o feito de ter destruído a União Soviética e a certeza de que faria o mesmo com o império norte-americano.

 

Vivendo desligado do que se passava no mundo, não se dava conta da complexidade da realidade internacional, chegando a afirmar que em breve haveria uma revolta do povo americano que acabaria com o regime capitalista nos Estados Unidos. Para que isso acontecesse, bastaria consumar os atentados que planejava. Não se dava conta de que os golpes eventuais do terrorismo, por mais audaciosos que fossem, não teriam a capacidade de alterar a correlação de forças econômica, política e militar em escala mundial.

 

A conclusão inevitável a que se chega é que a morte de Bin Laden tem limitadas consequências práticas, como, aliás, o próprio terrorismo, particularmente agora, quando os povos árabes se levantam clamando por democracia.

 

Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo/UOL

tags:
publicado por ardotempo às 14:23 | Comentar | Adicionar

Hotel de Charme - Usina Cultural

Hôtel des Isles - Barneville-Carteret

 

 

 

O charmoso e encantador Hôtel des Isles, animado com seu Festival Gastronômico Brasileiro - Brasil-Gourmet 2011, com chefs estrelas como Carla Pernambuco, Fernanda Azevedo, Gustavo Pinto, Caco Zanchi; várias atrações culturais como a importante mostra de fotografias CAMISA BRASILEIRA de Gilberto Perin. Tudo se movimenta em harmonia na orquestração elegante, segura e competente de Flavia de Mello e de José de Mello, mestres em receber seus hóspedes e agitar a vida cultural da Normandia. Um extraordinário lugar para se estar na França.

 

publicado por ardotempo às 00:16 | Comentar | Adicionar
Sábado, 21.05.11

Liberte sua mente

 

Deixem nossa língua em paz

 

Cláudio Moreno

 

"Os estrangeirismos são os judeus da linguagem" - Theodor Adorno - Minima Moralia

 

 

 

Quando vocês, caros amigos, estiverem lendo esta coluna, tenho quase certeza - a julgar pelas declarações em off de assessores do Piratini — de que a malparida lei contra estrangeirismos já terá sido vetada pelo governador Tarso Genro, que não parece (escrevo na terça-feira) disposto a endossar este disparate legislativo.

 

Ora, mesmo que o dragão tenha morrido sob o peso de seus próprios defeitos, vou manter minha promessa e mostrar por que considero autoritário este projeto, esperando que isso sirva de vacina para nos imunizar, por muito tempo, contra aventuras semelhantes.

 

Em primeiro lugar, todo purismo tem cunho fascista. Quando falam numa língua pura (quem conhece a história de qualquer língua ocidental sabe que isso é uma alucinação), eu saco logo o meu revólver - ou o talão de cheques (tanto faz, pois ambos vieram do Inglês, revolver e check).

 

É assim que as coisas começam: apontar estrangeirismos, limpar, expurgar — tudo isso em nome de uma pureza linguística; depois, vem a limpeza étnica; depois, a ideológica.

 

Nós já vimos este filme. A ideia de banir os elementos estrangeiros da linguagem sempre foi muito popular em regimes totalitários, tanto da direita quanto da esquerda. Estados fortes tentam regular até a maneira de seus súditos se expressarem. Na Itália de Mussolini, a Academia desencadeou uma campanha "purificadora" do italiano, publicando listas periódicas dos vocábulos que deveriam ser banidos. A Espanha franquista assistiu a movimento idêntico. Na França dos anos 1990 (para minha decepção), surgiu a Lei Toubon, logo associada a Le Pen e à direita furiosa. Na Alemanha corre um movimento contra o que eles chamam exageradamente de Denglish (mistura de Deutsch com English), apoiada pelos velhos partidários do nacionalismo — e tanto o Irã de Ahmadinejad quanto a China do capitalismo sem sindicatos lançaram ofensivas semelhantes.

 

Em segundo lugar, ninguém tem o direito de se arvorar em juiz dos seus semelhantes. Muitas das pessoas com quem conversei, embora considerem natural que usemos vocábulos estrangeiros para suprir as lacunas do nosso léxico, condenam aqueles que os empregam por pura moda ou exibicionismo. "Mas senhor não acha ridículo usarem sale em vez de liquidação?", pergunta uma leitora, num tom que chega a sugerir que ela está perdendo a paciência comigo.

 

Acho, madame — assim como acho ridículo organizar uma festa caríssima para comemorar o aniversário do cachorro ou escolher a data da cesariana para que o nenê nasça dentro do "signo certo". Acho errado, ridículo e muito mais - mas os outros nada têm a ver com a minha opinião.

 

Falemos francamente: o alvo desta celeuma toda não é qualquer vocábulo vindo do exterior: os que vêm do Francês, do Espanhol, do Italiano, do Russo ou das línguas da Ásia não chamam atenção e não dão brotoeja. O que nos incomoda são os que vêm do Inglês. Falando ainda mais francamente, são os que representam a sufocante influência dos Estados Unidos nos mais ínfimos recônditos de nossa vida. Pois saiba, prezado leitor, que trocar um vocábulo inglês por seu equivalente nacional em nada vai reduzir o imperialismo cultural a que estamos submetidos. 

 

Chamar o Halloween de Festa das Bruxas (ou Bailanta do Bruxaredo, para quem prefere uma dicção mais gaudéria) não vai diminuir o mal-estar que sinto diante da adesão cada vez maior de nossas crianças a esta festa completamente exótica à nossa cultura, que nem ao menos tem a atenuante de incluir, entre suas figuras, o Saci, o Boitatá, o Curupira e a Mula-sem-Cabeça.

 

Por trás desta preocupação em banir os estrangeirismos encontramos o mesmo fundamento em que se baseiam os defensores do "politicamente correto": a ingênua crença de que podemos mudar a realidade se mudarmos a linguagem - quando a experiência e a ciência nos ensinam que o vento sopra exatamente em sentido contrário. O certo é "Liberte sua mente, que o resto vem atrás (inclusive a linguagem)", e não "Liberte sua linguagem, que a mente vem atrás" (não é por acaso que o lema daquela campanha anti-homofóbica dos EUA era "Free your mind and your ass will follow", e não o contrário, como alguns marotos sugeriram - e só não traduzo porque pode haver crianças na sala).

 

Em outras palavras, esta lei, se fosse aplicada, não cumpriria o objetivo que orientou sua concepção. Que o vocabulário da informática venha todo do Inglês não é o verdadeiro problema, mas sim que toda informática nos torne dependentes da tecnologia americana — e trocar mouse por ratón, como fazem os argentinos, não é motivo para orgulho nacional, se continuarmos a utilizar este dipositivo para navegar nas ondas do Windows, da Microsoft Corporation.

 

Cláudio Moreno - Publicado no jornal Zero Hora

publicado por ardotempo às 22:58 | Comentar | Adicionar

Carta-aquarela

 

A sombra

 

 

 

Desenho Carta - Aquarela sobre papel de gravura 100% algodão - 2011

publicado por ardotempo às 16:51 | Comentar | Adicionar

Existem mundos

 

Um mundo de nomes

 

Mariana Ianelli

 

Não chegam notícias de Ghardaia. Não sabemos como é a vida em Sandoa. Deve existir um céu estrelado em Marbat, uma mulher deslumbrante em Kandalaksha, uma alma de poeta em Jayapura. Pode ser que ainda hoje nas ilhas Banks as pessoas tenham cada uma sua canção particular como carta de recomendação para o além-túmulo. Alguma delicadeza há de existir em Nanquim, algum prazer em Puerto Deseado, alguma fresca de fim de tarde em Buenaventura, coisas pequenas mas extraordinárias que façam jus à beleza desses nomes.

 

O que sabemos de cidadezinhas, ilhas e aldeias que de repente ocupam o noticiário do mundo é outra coisa. Sabemos de Leogane, Porto Príncipe e Carrefour porque ali a terra tremeu e esgarçou a chaga da miséria à vista de todos. Lembramos de Beslan porque esse nome evoca um massacre e cento e oitenta e seis velas acesas, uma para cada criança. Chegam notícias da ilha de Honshu depois de ter passado por ali um tsunami. Sabemos de Strasshof desde que uma menina desapareceu a caminho da escola e ressurgiu, fugida de um cativeiro, mais de oito anos depois. Dogo Nahawa muito possivelmente continuaria sendo uma aldeia escondida no mapa se centenas de agricultores não tivessem sido retalhados a golpes de facão. Nem tão cedo ouviríamos falar de Abbottabah se na madrugada de uma segunda-feira não tivessem descido ali vinte soldados com suas metralhadoras.

 

Quando esses nomes musicais e antes desconhecidos tornam-se o assunto do dia não é por seus jardins de cerejeira, sua pacatez, suas canções ao ritmo da colheita, suas terras morenas e brancas. São nomes que se fazem pronunciar por alguma exorbitância à altura do mundo. Não porque falem daquelas coisas pequenas mas extraordinárias que segredam que não existe um mundo. Existem mundos.

 

 


 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

publicado por ardotempo às 07:05 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 20.05.11

João Gilberto Noll no quarto do poeta

Uma Noite com Pessoa

 

“Ontem, dia 19 de Maio de 2011, o escritor brasileiro João Gilberto Noll inaugurou o ciclo “Uma Noite com Pessoa” na Casa Fernando Pessoa, tornando-se o primeiro escritor a dormir no quarto onde Pessoa viveu durante os últimos quinze anos da sua vida. A proposta da Casa Fernando Pessoa consiste em convidar escritores a dormirem no quarto de Fernando Pessoa, escrevendo depois sobre essa noite, para um livro a publicar durante o próximo ano. Os escritores Luísa Costa Gomes e Valter Hugo Mãe serão os próximos hóspedes.”

 


 

Publicado no blog Bibliotecário de Babel

publicado por ardotempo às 22:52 | Comentar | Adicionar

Um insulto à Arte

 

 

MAM-SP rejeita doação de 16 obras do pintor Arcangelo Ianelli

 

Claudio Leal

 

 

 

 

O Conselho Consultivo do MAM (Museu de Arte Moderna) de São Paulo rejeitou a doação de 16 obras do pintor e escultor Arcangelo Ianelli (1922-2009), um dos mais importantes e valorizados artistas plásticos brasileiros.

 

Ianelli doou, em testamento, cerca de 170 obras representativas de sua trajetória para o acervo de 13 museus nacionais e cinco estrangeiros. O museu paulista foi o único a rejeitar a oferta e surpreendeu os filhos do pintor, Katia e Rubens.

 

"Tinha redundância em relação ao que a gente já tem do Ianelli", argumenta o curador do MAM, Felipe Chaimovich, em conversa com Terra Magazine. Apenas duas das 16 peças foram consideradas como não-redundantes pelo conselho formado por Annateresa Fabris, Luisa Duarte e Lauro Cavalcanti. A recusa também se fundamenta na ausência de recursos para pagar o imposto de transmissão das obras. "Não tinha nada previsto em termos do nosso plano anual", acrescenta Chaimovich.

 

Na carta enviada à família, em 24 de novembro de 2010, o curador não mencionou as justificativas. "O Conselho Consultivo de Artes do Museu de Arte Moderna, em sua última reunião, posicionou-se contrariamente à entrada dessas obras no acervo do museu. Assim sendo, entendemos por bem recusar as mesmas", informa, secamente, o documento.

 

 

"Houve rejeição ao artista", diz família

 

 

Depois de ser informada sobre os fundamentos do veto, Katia Ianelli consultou o advogado da família e soube que os museus estaduais estão isentos do imposto de transmissão, o que favoreceu a Pinacoteca de São Paulo e o MASP. Ela contesta, mais energicamente, a tese da "redundância".

 

"A nossa primeira preocupação é ter, por impresso, todas as obras que cada museu possui. Na primeira carta da proposta de doação, eu fazia referência a esse cuidado: nós iríamos contemplar os museus com fases que eles não tivessem, com trabalhos inéditos", relata Katia.

 

A filha do pintor enumera as novidades para o acervo: "O MAM não tem nenhuma escultura do meu pai. Estavam propostas duas esculturas e mais uma escultura em madeira. Não tem nenhum pastel. Estavam propostos vários pastéis. Nenhuma transição e nenhuma arte figurativa. Eles não tinham nada dessas fases e dessas técnicas, como escultura de mármore, relevo pintado, que foi o último segmento da obra do artista, com 30 exemplares - e um deles estava indo para o MAM. Tudo que foi proposto era inédito. Se nada disso era contribuição, acho que eles não queriam mesmo a contribuição do artista, e não das obras".

 

A presidente do MAM e uma das principais acionistas do Itaú, Milú Villela, não retornou ao telefonema da reportagem. Em 20 de dezembro de 2010, ela recebeu uma carta dos filhos de Ianelli, na qual se lastima a recusa e se ressalta "a trajetória do artista nessa entidade", bem como a "história profissional, reconhecidamente destacada no panorama da arte moderna do Brasil". Arcangelo Ianelli integrou o conselho do MAM e ajudou a criar a biblioteca Paulo Mendes de Almeida. Por considerá-lo um dos seus museus favoritos, ele estimulava outros artistas a doarem suas obras para fortalecer o acervo.

 

 

"A gente entende que um museu deve saber o que é relevante. Parece que o MAM ficou sem memória e esquece um artista importante, que teve seu momento na arte brasileira", critica o artista plástico Rubens Ianelli. "Existe uma memória seletiva e um ponto de vista pessoal. Não é uma visão mais abrangente, mais aberta, sem tendências. É preciso ter essa história", reforça o filho.

 

O exemplo do MAM não foi seguido por outras instituições, que reagiram com entusiasmo ao testamento de Ianelli: o Museu Afro Brasil, a FAAP e o MASP, em São Paulo; o Museu Inimá de Paula, em Belo Horizonte; o Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba; e o MAC (Museu de Arte Contemporânea) de Niterói (RJ). Museus da Argentina, do Chile e da Colômbia serão contemplados. "Emanoel Araújo, diretor do Afro Brasil, vibrou com a notícia e foi o primeiro a incorporar as obras, em março de 2010", conta Katia.

 

O MAM do Rio de Janeiro ainda não se posicionou sobre a oferta.

 

Ferreira Gullar: "Estou perplexo"

 

O poeta e crítico de arte Ferreira Gullar, 80 anos, revela "perplexidade" com a decisão do museu. "A princípio, me parece um pouco estranho. Sem examinar, sem conhecer as razões, é difícil que uma instituição se negue a aceitar uma doação de um artista da importância do Ianelli. É, de fato, surpreendente. Eu era amigo do Ianelli, admirava a obra, sem dúvida eu lamento isso. É uma coisa estranha... Só digo a você que estou perplexo, perplexo, não estou entendendo nada".

 

Ao ser informado sobre as justificativas do museu, Ferreira Gullar reforça a estranheza. "Nenhuma instituição se nega a aceitar as obras de um artista da importância do Ianelli, porque isso enriquece o acervo. É estranho. O museu deve ter lá suas razões, mas, olhando assim de longe, eu confesso que estou surpreendido".

 

Com sentimento idêntico, o museólogo e ex-curador do Masp, Fábio Magalhães, destaca a importância artística de Ianelli. "Seguramente, seu papel histórico está crescendo com o tempo. Ele é um artista que ultrapassou as fronteiras do Brasil, passou as fronteiras internacionais. É indiscutível. Há depoimentos críticos sobre isso. Eu me surpreendo. Estou criando o Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba (SP) e solicitei à família que doasse algumas obras, porque ainda não existia quando ele fez o testamento. Temos interesse em receber as obras de Ianelli", enfatiza.

 

Magalhães avalia que os museus podem se equivocar nas suas escolhas. Fundado em 1931, o Whitney Museum of American Art foi criado a partir de uma coleção de arte americana rejeitada pelo MoMA (The Museum of Modern Art), de Nova Iorque. "Depois, ele voltou atrás e hoje tem uma coleção americana enorme. Os museus também se equivocam e, muitas vezes, isso fica claro num pequeno período de tempo. É humano, as pessoas se equivocam", afirma o crítico. "Sei que a Katia Ianelli é muito atenciosa nessas coisas. Não acredito que ela não tenha visto cuidadosamente as obras existentes no museu para fazer uma doação criteriosa na cobertura de eventuais lacunas. A única coisa que posso ficar é surpreso".

 

O diplomata Gilberto Chateaubriand, dono de uma das maiores coleções privadas de arte brasileira, cedida em comodato ao MAM do Rio de Janeiro, prefere não opinar sobre o assunto, por não ter acompanhado de perto. Ele apenas relata que os museus internacionais costumam acolher essas doações, "desde que tenham disponibilidade física e interesse cultural". "Mas é o Ianelli, meu Deus!!!", diz.

 

 

 

 

O testamento

 

"A gente não sabia da existência do testamento", relembra Rubens Ianelli. "Ele já tinha uma lista. A doação era um consenso aqui em casa". Em conversas com os filhos, o pintor manifestava a vontade de doar as obras mais representativas para alguns museus brasileiros e internacionais, num esforço de permanência artística. O trabalho de catalogação, com o rastreamento de quadros e esculturas, já dura oito anos.

 

Após a morte de Ianelli, Katia iniciou a seleção, amparando-se nas indicações do pai. Rubens cuidou do encaminhamento das obras para os museus. Cada instituição recebeu uma pasta com a ficha catalográfica.
 
 

Em março de 2011, o MON de Curitiba realizou a primeira mostra dos 16 quadros doados por Ianelli (contava com apenas três obras dele no acervo). E exemplares da fase figurativa agora se encontram na Pinacoteca de São Paulo. A partir dos anos 60, Ianelli se dedicou ao abstracionismo informal e chegou, na década 70, à abstração geométrica, com retângulos e quadrados interpenetrados. No mercado, suas obras têm valorização crescente. Em agosto de 2009, num leilão realizado no centro de convenções B'Nai B'Rith, em São Paulo, os lances iniciais de dois de seus quadros foram R$ 200 mil e R$ 150 mil.

 

"Com o MAM, ele tinha uma relação diferente, porque participou desde o seu começo, criou a biblioteca que não existia e fez a sua primeira retrospectiva lá", recorda-se Rubens. O destino das 16 obras rejeitadas depende da Justiça e ainda não está definido. Um gesto raro de doação segue suspenso no ar, sem moldura e sem paredes. 

 

 

 

 

Claudio Leal

 

 

publicado por ardotempo às 14:20 | Comentar | Adicionar
Quinta-feira, 19.05.11

A língua é um instrumento de libertação

Que língua a escola deve ensinar?

 

Cláudio Moreno

 

Um grupo de estudantes de Letras veio me visitar: faziam um trabalho para a faculdade e queriam a minha opinião sobre o papel do professor de Português “neste novo milênio, frente às novas teorias linguísticas e aos novos meios eletrônicos de comunicação”. Não pude deixar de sorrir diante de tanta novidade numa frase só; olhei-os com simpatia — todos vão ser meus colegas, em breve — e respondi que o nosso papel continua a ser o mesmo de sempre: transmitir ao aluno a língua da nossa cultura e ensiná-lo a se expressar em prosa articulada. Talvez tenham ficado espantados com a resposta, mas eu não estranhei a pergunta deles.

 

Sei que o avanço da Linguística, com tudo o que nos trouxe de bom, provocou também essa curiosa insegurança da escola quanto aos objetivos do ensino do nosso idioma. No entanto, faço questão de repetir que esses objetivos não mudaram e não devem mudar, por mais que os argumentos em sentido contrário pareçam engenhosos. Um linguista, por exemplo, convidava seus leitores a imaginar um documentário de TV em que o narrador informasse que a canção de acasalamento da baleia azul continha vários erros grosseiros, ou que os gritos dos chimpanzés da Malásia vinham degenerando progressivamente. Seria absurdo? Ora, se não podemos falar em erros da baleia azul, perguntava ele, triunfante, como podemos falar em erros na fala humana? Como pode a escola tentar impingir uma variedade do idioma, tachando as demais de inadequadas? — e por aí ia a valsa.

 

A este tipo de raciocínio engraçadinho, que obteve grande sucesso nos anos 70, contraponho uma verdade que todos nós conhecemos: os linguistas sabem que nosso idioma é muito mais amplo do que a língua escrita culta que é ensinada na escola — mas a escola sabe, mais que os linguistas, que essa é a língua que ela deve ensinar. O que a escola faz, e tem a obrigação de fazer — porque só ela pode fazê-lo de maneira progressiva e sistemática — é ensinar o futuro cidadão a se utilizar dessa forma tão especial de língua que é a língua escrita culta, cujas potencialidades espantosas aparecem na obra de nossos grandes autores.

 

Machado de Assis, Vieira, Eça de Queirós, Nelson Rodrigues, Gilberto Freyre, cada um à sua maneira, são ótimos exemplos. É nesta língua que se cria e organiza a maior parte de nosso pensamentos e sentimentos, seja escrevendo, seja falando (pode parecer paradoxal a inclusão da fala, mas não é; há muito se distingue a língua que o indivíduo fala antes do seu letramento e a língua que ele fala depois). Todas as demais variedades são respeitáveis como fenômeno cultural e antropológico, mas não é nelas que a escola deve concentrar seus esforços. Nosso aluno espera que ensinemos a ele a usar essa língua que constitui a modalidade do Português que todas as pessoas articuladas aceitam como a mais efetiva para expressar seu pensamento. Dizendo de um jeito mais rude: se houvesse forma melhor, ela estaria sendo usada.

 

Todas as sociedades reconhecem isso; o velho Bloomfield, um dos linguistas “duros” do estruturalismo americano, ressaltou que a comunidade, em várias tribos de nativos por ele estudadas, sabia apontar muito bem aqueles que falavam melhor do que os outros. Na sua sabedoria, o público maciçamente tem repelido as tentativas desastradas de fazer a escola aceitar como válida toda e qualquer forma de expressão. Quem não lembra a triste moda dos anos pós-Woodstock, em que defendíamos com entusiasmo a valorização da linguagem do vileiro como algo digno de ser preservado? Hoje sabemos que nada mais era do que uma alegre fantasia da classe média acadêmica, que terminava cristalizando uma categoria de excluídos, contra a vontade de seus pobres falantes.

 

Não é para isso que a gente estuda”, dizem eles — e chamá-los de conservadores é o mesmo que dizer, com arrogância, que nós é que sabemos o que é bom para a sua vida. Já vimos isso na política, em que alguns têm a petulância de dizer que o povo não soube escolher …

 

Agora, por que a prosa? Porque escrever prosa nos torna homens mais exatos, como percebeu Francis Bacon. Escrever é disciplinar o pensamento; o domínio da prosa impõe rigorosa disciplina à nossa mente. Ao escrever, vamos deixando uma trilha do nosso pensamento, permitindo que voltemos sobre nossos próprios passos para encontrar o ponto em que nos desviamos da rota certa e onde nos enganamos. Além disso, precisamos seguir uma série de convenções que permitam que as outras mentes acompanhem o caminho descrito pelo nosso raciocínio. Não vou exagerar, mas acredito que o pensamento articulado é impossível para uma pessoa que não consiga construir um texto coerente e também articulado — e não tenho certeza do que aqui é causa, o que é efeito.

 

Uma escola que não ensine o aluno a escrever com clareza e coerência está comprometendo algo muito mais profundo que aquilo que os antigos chamavam de uma “boa redação”. Muitos alegam que essas regras são mantidas apenas porque é assim se afirma o poder da elite, dividindo a população entre os que conseguem e os que não conseguem entendê-las. Em parte, é verdade: quem as domina consegue expressar-se melhor e argumentar melhor, o que resulta inevitavelmente em maior poder sobre os outros. Mas não são regras estabelecidas por capricho ou por acaso; nasceram da experiência acumulada em milhares de tentativas de expressar-se articuladamente no Português, ao longo dos últimos oito ou nove séculos, num esforço gigantesco que produziu esse magnífico instrumento de expressão e de argumentação.

 

Se essa língua é usada para dominar e submeter, pode, com muito mais razão, ser usada para libertar. Em nome da igualdade social, essa é a missão da escola; agora, como fazer isso, em escala universal e democrática, é uma questão que deve ser resolvida estrutural e politicamente pelos governos e pela sociedade, não pelos professores de Português.

 

Prof. Cláudio Moreno (Artigo publicado na revista Arquipélago, do IEL-RS, em 2005)

publicado por ardotempo às 19:26 | Comentar | Adicionar

Tumbas, pinheiros e o mar

 

Para nunca esquecer, a liberdade

 

 

 

 

Cemitério Americano da Normandia - Omaha Beach - Normandia - França

publicado por ardotempo às 01:36 | Comentar | Adicionar

O muro do músico

A fachada da Maison Noire, de Serge Gainsbourg

 

 

 

 

5 bis, rue de Verneuil - Saint-Germain-de-Près - Paris - França / O muro colorido, grafitado e faiscante da casa do compositor, poeta, músico e cantor Serge Gainsbourg, motivo de peregrinação constante de fãs de todo o mundo. Acenda o seu gauloise brune... 

publicado por ardotempo às 01:06 | Comentar | Adicionar

A rua do escritor

 

O nome da rua: Uma terra só

 

 

 

 

Uma magnifica homenagem ao livro premiado e à obra do escritor Aldyr Garcia Schlee.

 

A mensagem:

 

Caro Jornalista Luiz Carlos Vaz,

 

É com grande satisfação que informo que ocorreu nesta segunda-feira (16.05.2011), na Câmara dos Vereadores de Jaguarão, a aprovação do projeto que intitula a rua ao lado do Mercado Público de Jaguarão - Uma terra sóMerecida homenagem ao escritor Aldyr Garcia Schlee e sua obra.

 

Andréa Lima

Secretaria de Cultura e Turismo de Jaguarão

 

Enviado pelo Jornalista Vaz, de Luiz Carlos Vaz

 

 

publicado por ardotempo às 00:48 | Comentar | Adicionar

A casa do poeta

 

Oscar Wilde, 13 rue des Beaux Arts

 

 

 

 

A lembrança da placa de mámore, o número e cabeça de carneiro em prata

tags: ,
publicado por ardotempo às 00:35 | Comentar | Adicionar

A cidade tombada

Jaguarão: Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

 

Alan Dutra de Melo

 

Reveste-se de grande comemoração o anúncio realizado no último dia 03 de maio pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, sobre o tombamento do conjunto histórico e paisagístico do centro urbano da cidade de Jaguarão. É o maior tombamento em número de exemplares protegidos do Estado do Rio Grande do Sul, e este momento é a consagração de um trabalho iniciado na década de 1980, com pessoas da cidade que participaram do Projeto Jaguar em conjunto com professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas, dentre tantos é necessário destacar a contribuição da Professora Ana Lucia de Oliveira com as conclusões editadas no Programa de Revitalização Integrada de Jaguarão – PRIJ.

 

 

 Convém lembrar também dos primeiros bens tombados na cidade pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Estadual – IPHAE no começo da década de 1990, quando da proteção do Teatro Esperança, Mercado Público, Antigo Fórum e Ruínas da Enfermaria Militar. Mais recentemente o Plano Diretor Participativo da cidade incorporou ao plano uma legislação bastante responsiva com seu patrimônio tanto no eixo da proteção como no estimulo para a preservação através de incentivos fiscais, fruto também dos acúmulos do PRIJ e da compreensão coletiva do sentido da proteção patrimonial para o futuro da cidade.

 

Em Jaguarão contra o patrimônio só ouço falar da falta que fazem poucos exemplares perdidos no centro da cidade utilizados em maior parte para instalação de agências bancárias, assim a população é contra o desaparecimento de seus bens culturais.

 

Mais recentemente o aporte do IPHAN e do Poder Público Municipal tem projetado o patrimônio cultural como fator de desenvolvimento econômico e social, isto começando pela restauração da primeira etapa do Teatro Esperança, e ainda a contratação de projetos de restauros para o Mercado Público e Ruínas da Enfermaria Militar onde será erguido o Centro de Interpretação do Pampa, foram investimentos em obras realizados pelo Governo Federal e em projetos os realizados pela Municipalidade, com aportes próprios e parcerias com o Governo do Estado do Rio Grande do Sul e também da Universidade Federal do Pampa. Aliás, a cidade ocupa a primeira presidência da Associação das Cidades Históricas do RS.

 

 

 

Tal como em Ouro Preto, que de capital do Estado abandonada em Minas Gerais, e após a sua patrimonialização mudou a sua condição com o passar das décadas de investimentos até tornar-se referência cultural, e este hoje é um caminho que se aponta muito claramente para Jaguarão, pois a amálgama entre o turismo de compras existente na cidade vizinha de Río Branco no Uruguai, combinada com atrativos singulares no Brasil como o acervo do Museu Carlos Barbosa, aliados aos projetos contemporâneos projetos pelo Arquiteto Marcelo Ferraz, tanto no Centro de Interpretação como no Mercado e ainda com o aporte gerado pela Unipampa projetam a cidade para o desafio apontado na aula Magna do Curso de Turismo UFPel realizado no último dia 04 de maio no Teatro Guarany, proferida pelo Dr. Mario Beni quando sentenciou: “A Costa Doce tem muitos atrativos e um deles é o patrimônio cultural, mas a questão do patrimônio é que ele tem de ser resignificado”.

 

É neste caminho que Jaguarão avança resignificando seus bens e suas práticas e apostando muito especialmente no poder indutor do patrimônio para o turismo e a cultura, sobretudo quando se aposta e investe todo o seu potencial em novos usos.

 

Alan Dutra de Melo

Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural UNIPAMPA/Jaguarão - RS Brasil

 

Publicado no blog do Jornalista Vaz

publicado por ardotempo às 00:30 | Comentar | Adicionar
Quarta-feira, 18.05.11

Enrique Vila-Matas em São Paulo

HOJE - 18.05 -  Instituto Cervantes

 

Palestra de Enrique Vila-Matas, lançamento do livro “Dublinesca” e sessão de autógrafos

 

18 de maio de 2011 19:30 até 22:00

 

O Instituto Cervantes de São Paulo e a Editoria Cosac Naify, apresentam:

Conhecendo Vila-Matas. Lançamento Dublinesca

Apresentação do livro Dubilnesca

e sessão de autógrafos deste autor espanhol nascido em Barcelona.

 


 

 

Mais informações em www.enriquevilamatas.com

publicado por ardotempo às 15:42 | Comentar | Adicionar
Terça-feira, 17.05.11

A epifania amorosa

A paciência dos amantes

 

João Paulo Sousa

 

Para a interlocutora.

 

Por um desses acasos a que a humana vontade de conferir ordem ao mundo insiste em atribuir uma lógica ou uma razão, fui há pouco tempo confrontado com um verso de Shakespeare que começou por me parecer desconhecido e se revelou depois como pertencente a uma peça que eu já vira encenada. Se é certo que esta última circunstância não bastaria para que eu o tivesse memorizado, não se justificando, portanto, que me censurasse por não o ter identificado logo, a verdade é que a sua insistência em, por assim dizer, se colocar à minha frente me despertou um inusitado desejo de aprofundar o seu sentido, ainda por cima estimulado pela leitura que dele fizera quem, no decurso de uma conversa, o resgatara do meu esquecimento e o depusera diante de mim. O verso em questão, “Journeys end in lovers meeting” (que, numa tradução literal, equivale a algo como “A viagem acaba no encontro dos amantes”), número 41 da cena 3 do acto II de Noite de Reis (ou, para ser mais exacto, Twelfth Night, peça provavelmente escrita em 1601 ou 1602), é parte integrante da fala de um bobo, de uma dessas personagens a que o teatro conferiu a possibilidade de dizerem verdades incómodas com um desplante que raramente era conferido a outros intervenientes dos espectáculos, e é também uma antecipação do destino dos protagonistas, mas, como tantas frases em Shakespeare, guarda espaço para outras leituras; a da minha interlocutora – acreditando que faço jus às suas palavras – encarava a “viagem” do verso shakespeariano como o trajecto mental que antecipa o encontro erótico, como o percurso imaginário que cada um dos futuros amantes compõe até esse momento que, se a expressão não parecesse horrivelmente antiquada, poderíamos chamar a epifania amorosa.

 

Nesta leitura, a viagem terminaria aí porque também aí se fecharia a deriva imaginária, substituída pelo áspero combate com o real. Ao ouvir esta proposta de possessão do verso shakespeariano (interpretar um texto é apoderarmo-nos dele), perguntei-me se ela aguentaria submeter-se a um confronto com a literatura ao longo dos tempos, dada a frequente reiteração da ideia de que a arte não se faz com bons sentimentos e tendo em conta o facto de o amor ser habitualmente considerado um deles. Em suma, falará a literatura de amores imaginados – paralelamente configurados como viagens – que acabam por se consumar?

 

Experimentemos começar pelo início, não exactamente pelo primeiro livro da literatura ocidental, essa Ilíada tão sangrenta, mas pela sua quase gémea, pela Odisseia, pela viagem do mítico guerreiro Ulisses, que, forçado a combater em Tróia, demora no regresso a casa muito mais do que teria podido crer. Provavelmente escrita nos séculos VII ou VI antes da era cristã, a epopeia modelar de Homero (poeta de quem nada se sabe além do nome) distende-se por vinte e quatro cantos, para narrar em verso as lendárias peripécias que vão retendo o viajante e os seus companheiros no moroso retorno. Como é sobejamente sabido, Ulisses só irá reencontrar a mulher, Penélope, no final da obra, ou seja, no término de uma viagem pontuada por longas interrupções. Em todo o caso, se ele, retido na ilha da feiticeira Circe, chora diante do mar, atormentado pelo desejo de regressar aos braços da sua amada, também esta, por seu turno, pensa nele quando engana os pretendentes com o seu astucioso plano centrado na mortalha de Laertes: propunha-se escolher um homem para ocupar o lugar de Ulisses quando acabasse de tecer a mortalha, mas desfazia à noite o que fazia durante o dia. Assim desejado, o encontro dos amantes (trata-se de um reencontro, mas que, decorridos tantos anos, se configura mais como uma novidade) decorre numa noite que a deusa Atena prolonga, para que cada um conte ao outro as aventuras por que tinha passado: “Mas depois que Ulisses e Penélope satisfizeram o seu desejo / de amor, deleitaram-se com palavras, contando tudo um ao outro”.(1)

 

É também num plano que poderíamos considerar fantástico, se o termo não fosse inadequado para a época em questão, que Dante Alighieri  situou a sua viagem. Publicada entre 1304 e 1321, a Commedia (posteriormente conhecida como La Divina Commedia) é um poema alegórico, dividido em três partes e cem cantos, que descreve a viagem de um homem pelo Inferno, passando pelo Purgatório, até chegar ao Paraíso, onde será recebido pela sua adorada Beatriz. Este homem, que, aos 35 anos, se considera no meio do caminho da vida, diz ter empreendido esta viagem singular entre a noite de quinta-feira santa (7 de Abril) da Páscoa do ano de 1300 e a quarta-feira seguinte (13 de Abril). Escrevendo em língua vulgar, pondo de parte o latim, ele tem a preocupação de contar tudo o que viu. Ao longo das duas primeiras etapas, é guiado pelo poeta latino Virgílio, mas o percurso no Paraíso faz-se ao lado de Beatriz, assim elevada a uma condição única para a época, que consistia em colocar uma mulher sem biografia de realce, nem especial aptidão para a santidade, como guia, não só dele próprio, mas de todos os crentes. Mesmo considerando as muito particulares características da viagem empreendida por Dante, merece destaque o facto de o encontro do poeta com a amada se concretizar à entrada do lugar que se pretendia descrever como o mais belo de entre todos os que eram conhecidos ou era possível imaginar. É a recompensa por um trajecto cuja aspereza se vai progressivamente atenuando, como se a caminhada pelos círculos infernais correspondesse afinal à dolorosa via crucis dos amantes que se desejam à distância, sem talvez saberem que o desejo é recíproco. O encontro não poderia, assim, deixar de vir marcado pelo espanto, pela perplexidade: “Olha-me bem! Sou bem, sou bem Beatriz”. (2)

 

 

A viagem imaginária também pode, no entanto, encontrar-se ancorada num espaço mais prosaico, como o demonstrou a obra do russo Fiódor Dostoievski, nomeadamente através do romance Crime e Castigo (Prestupleniye I Nakazaniye, 1866). O protagonista desta narrativa publicada originalmente por capítulos num jornal russo é Raskólnikov, um jovem estudante que vive em São Petersburgo com crescentes dificuldades financeiras, o que acaba por levá-lo a cometer um duplo homicídio (de uma velha usurária e da sua irmã, cuja inesperada irrupção na cena do crime a torna na segunda vítima).

 

Mais tarde, o herói (ou anti-herói, dada a sua fragilidade e o seu desenraizamento) começará a sentir remorsos e a necessidade de se redimir, o que apenas se tornará possível por intermédio de outra personagem igualmente situada num plano inferior da escala social; será Sónia, uma jovem prostituta, que o convencerá a entregar-se à justiça, para que, uma vez lavada a culpa, possam viver os dois juntos. Irá depois acompanhá-lo até à Sibéria, quando ele para aí for levado, para os trabalhos forçados, visitando-o sempre e nunca deixando de o apoiar. É num desses momentos em que, pelo facto de todos se terem habituado a vê-la por perto, já ninguém, nem o próprio guarda, lhes presta muita atenção, num desses instantes em que todos parecem tê-los esquecido e eles estão completamente entregues a si mesmos, que, invisível à superfície, ocorre uma transformação, uma profunda e radical modificação das perspectivas de ambos sobre as suas vidas, semelhante talvez ao avistamento de terra por parte dos marinheiros de uma viagem de longo curso, os quais ficam assim a saber que o destino não lhes foi demasiado cruel e lhes reserva ainda um porto de abrigo, mesmo que provisório, mesmo que capaz apenas de durar um breve lapso de tempo: "Nem ele próprio sabia como aquilo aconteceu, mas de repente parecia que alguma coisa o agarrava e o lançava aos pés dela. Chorava e abraçava-lhe os joelhos. No primeiro instante, Sónia ficou horrivelmente assustada, e o seu rosto ficou lívido de morte. Saltou do lugar e, a tremer, olhou para ele. Mas logo, nesse mesmo instante, compreendeu tudo. Nos seus olhos brilhou uma infinita felicidade; compreendeu, e para ela não havia já dúvida, que ele a amava, que a amava infinitamente e que esse momento chegava por fim".(3)

 

Dostoievski sabia, no entanto, que não podia terminar desse modo o romance, mergulhando as personagens numa suposta felicidade que não resistiria ao confronto com a prosa da vida, criando uma ilusão beatífica a que a sua obra é alheia; sabia também que apenas o estado de expectativa induz uma alegria nunca contrariada, porque sempre adiada, e, em sintonia com a leitura do verso shakespeariano ensaiada pela minha interlocutora, optou por encerrar Crime e Castigo pondo Sónia e Raskólnikov a sonharem com o tempo que haveria de chegar depois da libertação (“Sete anos, apenas sete anos!”), com esse tempo onde o ser humano consegue albergar intocável a felicidade – porque nunca até aí pode viajar –, que é o sempre irrealizável futuro.

 

 

(1) Homero, Odisseia (trad. de Frederico Lourenço), Lisboa, Livros Cotovia, 2003, p. 376.

(2) Dante Alighieri, A Divina Comédia (trad. de Vasco Graça Moura), Venda Nova, Bertrand, 1996, p. 563.

(3) Fiódor Dostoievski, Crime e Castigo (trad. de António Pescada), Lisboa, Relógio D'Água, 2009, p. 458.


 

© João Paulo Sousa 

tags: ,
publicado por ardotempo às 15:23 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

Pesquisar

 

Maio 2011

D
S
T
Q
Q
S
S
1
2
3
4
5
6
7
8
9
15
25

Posts recentes

Arquivos

tags

Links