Mural Construtivo - Uma ideia construtivista
José Gurvich
José Gurvich - Mural Construtivo em Baixo Relevo - Mural construtivista em baixo relevo sobre concreto (Montevideo Uruguai), 1963
José Gurvich
José Gurvich - Mural Construtivo em Baixo Relevo - Mural construtivista em baixo relevo sobre concreto (Montevideo Uruguai), 1963
À sua maneira
Decir adiós puede lograrse apenas con una breve nota dejada sobre la mesa o con una llamada telefónica con la que nos despedimos definitivamente. En los preparativos para marcharse del país, el fin de una relación amorosa o de la vida misma, hay gente que pretende dejar amarrados los más pequeños detalles, trazados esos límites que obligarán a quienes se quedan a seguir su rumbo. Unos se van tirando la puerta y otros reclaman antes de la partida el gran homenaje que creen merecer.
Los hay que distribuyen equitativamente sus bienes y también seres con tanto poder que cambian la constitución de un país para que nadie deshaga su obra cuando ellos ya no estén. Los preparativos para el VI congreso del Partido Comunista Cubano y sus sesiones en el Palacio de las Convenciones han sido como un gran réquiem público para Fidel Castro.
El escenario de su despedida, el ceremonial minucioso reclamado por él y realizado –sin escatimar recursos– por su hermano menor. Ya en los excesos organizativos del desfile militar, efectuado el 16 de abril, se percibía una intención de “gastárselas todas” en un homenaje final a alguien que no pudo asistir a la tribuna. Resultaba evidente que al anunciar los nombres de quienes asumirían los máximos cargos del PCC, ya no sería leído el del hombre que decidió el rumbo de esta nación por casi cincuenta años. No obstante, él se sentó en la mesa principal del evento para validar con su presencia la transferencia de mando a Raúl Castro. Estar allí fue como acudir – en vida – a la lectura de su propio testamento.
Llegó entonces la ovación cerrada, las lágrimas de alguna que otra delegada al cónclave partidista y las frases de compromiso eterno con el anciano de barba casi blanca. A través de la pantalla del televisor, algunos sentimos aquello como el crujir de las flores secas o el sonido de las paletadas de tierra. Queda por ver si el General Presidente podrá sostener el pesado legado que ha recibido, o si bajo la mirada supervisora de su Gran Hermano preferirá no contradecirlo con reformas medulares. Falta comprobar cuán auténtica es esta despedida de Fidel Castro de la vida política y si su sustituto optará por seguir defraudándonos o por negarlo a él.
Yoani Sánchez - Publicado em Generación Y
8h46
Enquanto espera pela hora da reunião, sentado numa cadeira Barcelona, Jonathan K. imagina a mão de Mies van der Rohe a desenhar com minúcia, há precisamente 74 anos, aquele prodígio de design. Tocando muito ao de leve no couro negro, pensa: "Isto sim é uma cadeira, não apenas um assento para corpos demasiado humanos."
A reunião, marcada para as oito e meia, vai começar mais tarde. O CEO comeu qualquer coisa esquisita ontem à noite (certamente um dos malditos hors d'oeuvre com que as galerias de Manhattan envenenam os seus clientes) e será substituído por um dos quadros superiores da empresa, infelizmente ainda a caminho, algures no trânsito caótico de Upper East Side. O encontro só começará por volta das nove horas, diz-lhe a secretária, sorridente. "OK", responde Jonathan, "eu espero". Um café? "Sim, obrigado, mas sem açúcar."
Na parede de tons claros, uma imitação tosca de Salvador Dali. Elefantes de patas gigantescas caminhando por entre os arranha-céus, uma mulher nua feita de gavetas, o silêncio espectral do deserto insinuando-se atrás da cidade de vidro. O quadro é horrível. Jonathan K. sente uma veia a pulsar no pescoço. "O que raio estou eu a fazer aqui?" Atrás de uma porta transparente, a secretária fala ao telefone e faz-lhe um sinal. Não se esqueceu do café. Continua a sorrir muito.
Jonathan revê mentalmente a sua vida nos últimos quatro meses. A queda na piscina do hotel de Miami. O som da cabeça a bater numa aresta de cimento. O túnel de luz (igualzinho ao do quadro de Hieronymus Bosch). A sala dos cuidados intensivos, vista do tecto, fora do corpo. As duas semanas em coma. O acordar violento, como quem regressa ao princípio de tudo. A demorada reaprendizagem dos gestos. A epifania daquela manhã de sábado em que decidiu, com a convicção dos profetas, emendar os muitos erros da sua existência.
A outra vida, a vida anterior, está envolta numa espécie de nevoeiro. Já quase não se lembra dos anos passados em África. O negócio das armas, o tráfico de influências, os muitos mortos que as suas decisões, os seus lucros, engendraram. A fortuna manchada de sangue vai sendo repartida por fundações, ONG's, empresas solidárias, causas filantrópicas. Foi também por isso que veio esta manhã até ao 53.º andar da Torre Norte do World Trade Center. "Serei algum dia capaz de salvar a minha alma?", pergunta-se.
A secretária sorridente traz-lhe o café. Jonathan K. bebe-o junto à janela. No Patek Philippe, os ponteiros marcam 8h46. Pelo seu rosto passa, súbita e absurda, a sombra de um avião.
© José Mário Silva - Efeito Borboleta e outras histórias, edições ardotempo, 2010
ISBN nº 978-85-62984-04-4
Números bons
Um livro sobre matemática, sua História, suas histórias e diversas curiosidades que tornam a matéria sedutora e permeada de pequenos encantamentos.
Um talento do autor, escritor e matemático Alex Bellos.
Sete livros de autores portugueses inscritos na 9ª edição do Prémio Portugal Telecom de Literatura
Entre os 380 livros inscritos na 9ª edição do Prémio Portugal Telecom de Literatura, sete obras são de autores portugueses, duas de autores angolanos, uma de autora moçambicana e 371 de autores brasileiros, todas publicadas no Brasil no ano de 2010. Até ao dia 15 de Maio serão escolhidos os primeiros 50 classificados. Desses serão escolhidos dez e, por fim, os três vencedores. Na edição do ano passado, o romance “Leite Derramado” de Chico Buarque foi o vencedor.
A lista dos livros escritos na 9ª edição daquele que é um dos prémios literários mais importantes no Brasil foi hoje divulgada e entre eles encontram-se obras dos angolanos José Eduardo Agualusa (“Milagrário Pessoal”) e Pedro Proença (“Comentários do Apocalipse”) e da moçambicana Tânia Tomé (“Agarra-me o sol por trás”). Os escritores portugueses que têm obras inscritas para serem seleccionadas pelo júri são: Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro (“Neo-Poemas-Pagãos”); João Tordo (“As três vidas”); José Mário Silva (“Efeito Borboleta e outras histórias”); Gonçalo M. Tavares (“Uma viagem à Índia”); Inês Pedrosa (“Os íntimos”); Maria do Sameiro Barroso (“Poemas da noite incompleta”) e Júlio Conrado (“A escrita a postos”).
Entre os inscritos brasileiros destacam-se obras de Adélia Prado (“A Duração do Dia”); João Gilberto Noll (“Anjo das Ondas”); Mariana Ianelli (“Treva Alvorada”); Fabrício Corsaletti (“Esquimó”); Carlos Heitor Cony (“Eu, aos Pedaços”); Paula Parisot (“Gonzos e Parafusos”); Luiz Schwarcz (“Linguagem de Sinais”); Marcelo Ferroni (“Método Prático da Guerrilha”); Aldyr Garcia Schlee (“Don Frutos”); Marina Colasanti (“Minha Guerra Alheia”); Lourenço Mutarelli (“Nada me Faltará”); Tony Bellotto (“No Buraco”); Christiane Tassis (“O melhor do Inferno”); João Paulo Cuenca (“O único final feliz para uma história de amor é um acidente”); Mário Prata (“Os Viúvos”); Carola Saavedra (“Paisagem com Dromedário”); Ronaldo Correia de Brito (“Retratos Imorais”); José Castello (“Ribamar”) e Cristovão Tezza (“Um erro emocional”).
Os curadores deste prémio literário brasileiro – Maria Esther Maciel, Regina Zilberman, Lourival Holanda, Selma Caetano – e os 306 membros do júri (indicados entre professores, críticos literários e escritores de todas as regiões do Brasil pela curadoria) vão também eleger até 15 de Maio o Júri Intermediário que irá depois analisar as 50 obras seleccionadas e escolher entre elas os 10 nomeados para a fase final que serão divulgados em Setembro. Por fim, o júri final – composto pelos quatro curadores e os seis profissionais eleitos pelo Júri Intermediário – irá eleger, em Novembro de 2011, os três livros vencedores.
Na 8ª edição do Prémio, em Novembro do ano passado, “Leite Derramado” (Companhia das Letras), o quarto romance do compositor e escritor Chico Buarque foi o vencedor, seguido de “Outra Vida” (Alfaguara) o quarto romance do escritor Rodrigo Lacerda e de “Lar,” (Companhia das Letras) do escritor Armando Freitas Filho. A lista com os inscritos e o Júri Inicial está em http://www.premioportugaltelecom.com.br/
Publicado por Isabel Coutinho no blog Ciberescritas
O negócio dele é números
Escritor e jornalista britânico Alex Bellos lança livro sobre paixão pela matemática.
Depois de morar cinco anos no Rio de Janeiro como correspondente do jornal The Guardian no Brasil, o jornalista inglês Alex Bellos voltou a seu país natal e tentou, sem muito sucesso, como costuma acontecer com muitos jornalistas, lançar-se em uma vida de empreendedor: "Vendi camisetas de jogadores de futebol brasileiros, comecei um blog, acalentei o plano de importar frutas tropicais", escreve ele no prefácio de seu livro mais recente. No fim, Bellos protagonizou uma dupla volta ao passado.
Nos anos 1990, antes de ingressar no jornalismo, ele havia se formado em filosofia e matemática. Juntando essa formação à experiência de correspondente, e após uma temporada de pesquisas e estudos para retomar contato com a matemática da qual estivera distante nos últimos anos, Bellos, 41 anos, agora apresenta-se no livro Alex no País dos Números como um correspondente no mundo da Matemática.
Bellos estará na terça-feira (19/04), às 9h, em Porto Alegre, para um bate-papo no Salão de Atos da UFRGS (Avenida Paulo Gama, 110) com o professor Ruy Carlos Ostermann que inaugura a série de ações paralelas do Fronteiras do Pensamento 2011: o Fronteiras Educação – Diálogos com Professores.
O encontro é voltado para professores e estudantes de cursos de licenciatura, com entrada franca, e as inscrições podem ser feitas pelo e-mail convite@fronteirasdopensamento.com.br ou pelo telefone (51) 3012-2621 – a atividade é um complemento ao Fronteiras Educação – Diálogos com a Geração Z, voltado para estudantes. Na pauta da conversa, as estratégias para tornar o ensino da matemática mais eficiente, as formas de transmitir aos estudantes o fascínio pela magia lógica dos números e os motivos pelos quais uma ciência de bases tão consolidadas tem dificuldades históricas de ser transmitida nos bancos escolares.
Alex no País dos Números é um livro de divulgação científica que honra seu gênero – porque divulga mas não vulgariza.
Escrito com a prosa leve e ágil que Bellos desenvolveu em seus anos como jornalista, mas com a familiaridade natural com números que boa parte da profissão não tem, o livro é um passeio curioso pela onipresença da matemática como um sinal evidente da civilização. Bellos começa falando com um linguista francês, ex-aluno de Noam Chomsky, que passa meses por ano no Brasil estudando o idioma de uma tribo mundurucu, que desconhece números acima de cinco – na vida comunal dos indígenas, em que tudo é de todos e todas as crianças são responsabilidade coletiva, não faz sentido contar além dos dedos da mão nem mesmo os próprios filhos.
Bellos é também o autor de Futebol: O Brasil em Campo (Jorge Zahar, 2002), livro que o jornalista escreveu durante seu período de residência no Brasil, e que incluía viagens e grandes deslocamentos atrás dos aspectos mais pitorescos de o quanto a paixão pelo futebol estava entranhada na mentalidade brasileira. Alex no País dos Números vale-se de expediente semelhante. Ao longo dos 12 capítulos do livro – o primeiro é identificado com o número 0, conquista matemática dos indianos que o escritor define como "uma das maiores realizações intelectuais da história da humanidade" –, Bellos viaja não apenas pelo mundo físico (da Alemanha ao Japão, da Índia ao Estado americano de Oklahoma), mas pelas diversas províncias do universo matemático: as análises combinatórias, a aritmética, a álgebra, a geometria, a etnomatemática (o "estudo de como diferentes culturas abordam a matemática), a estatística.
Carlos André Moreira - Publicado em Zero Hora
Um escritor contra os hambúrgueres
Jonathan Safran Foer - Entrevista a Eduardo Lago (El País)
La publicación de Todo está iluminado (2002) y Tan cerca, tan fuerte (2005), señalaron la aparición en el panorama literario estadounidense de alguien que no estaba demasiado satisfecho con el estado de la cuestión en el ámbito de la narrativa. Los dos libros alcanzaron un éxito extraordinario entre el gran público (en el primer caso, gracias también a la adaptación cinematográfica del mismo título), pero la crítica, sus colegas de oficio y numerosos lectores se mostraron fuertemente divididos.
Para muchos, hay algo de falsedad y oportunismo en el tratamiento de los temas que aborda (las secuelas del Holocausto en Todo está iluminado, la herida abierta por el ataque contra las Torres Gemelas en Tan cerca, tan fuerte). La conversación con él despeja cualquier duda: Jonathan Safran Foer (Washington, 1977) es un hombre que cree firmemente en lo que hace. Transpira simpatía, inteligencia y autenticidad.
Con su tercer libro, Comer animales (2009), que acaba de publicar en España Seix Barral, volvió a descolocar a propios y ajenos, al hacer una descripción escalofriante de la suerte que corren los animales que acaban servidos en las mesas de nuestras casas y restaurantes. La entrevista tiene lugar en una pastelería de Park Slope, en Brooklyn, una mañana de sol espléndido. Allí, lejos de cualquier rastro cárnico, Safran Foer explica que desde niño le atormenta que los seres humanos comamos animales. "Y nunca he sabido resolverlo, prefería mirar hacia otro lado, pero cuando mi mujer se quedó embarazada me di cuenta de que tenía que afrontar el problema por mi hijo, lo cual me llevó a investigar el fondo ético del tema. Me pasé dos años leyendo y viajando por todo Estados Unidos, visitando furtivamente granjas de animales y mataderos. Cuando comemos carne nadie se plantea qué hay detrás de un acto así, qué ocurre antes de que lo que comemos llegue al plato".
-¿Cree que las industrias de carne someten a los animales a un sufrimiento innecesario?
-Si de lo que se trata es de vender hamburguesas a un dólar, tienen que actuar necesariamente como lo hacen. Tolstói decía que si no hubiera mataderos habría campos de batalla, pero yo no estoy de acuerdo. En cuanto a la cuestión del sufrimiento animal, es difícil saber a qué atenerse. Mucha gente piensa que preocuparse de algo así es una actitud sentimental. Si te importa el sufrimiento de los animales eres un tipo blando. Obviamente hay una inteligencia y una sensibilidad animales, aunque no sepamos cómo representárnosla. Para mí la cuestión no es tanto que se deje de comer carne radicalmente, sino que haya una conciencia pública de cómo opera la industria de carne y saber qué consecuencias tiene en innumerables ámbitos, desde la salud al medio ambiente. Hay que cambiar de manera dramática nuestros hábitos de consumo. Lo que hacemos es atroz.
Después de Comer animales, Safran Foer publicó en EE UU un libro verdaderamente inclasificable, A Tree of Codes, un libro-objeto que juega con vacíos físicos, con palabras y frases recortadas de las páginas. Se tiraron poquísimos ejemplares y está agotado. Su historia es muy curiosa: "Un día recibí un correo electrónico de una chica que acababa de lanzar una editorial diciéndome que no podía pagarme, pero que publicaría cualquier libro que se me ocurriera. Siempre había tenido en la cabeza la idea de coger un libro e ir eliminando frases para sacar a la luz un segundo libro oculto en el texto. El texto base es La calle de los cocodrilos, de Bruno Schulz, un libro genial. Arranqué frases y palabras una a una, como quien talla una madera. Es un objeto artístico, mitad libro, mitad escultura. En Internet cuesta una fortuna".
Casado con Nicole Krauss, una escritora de gran éxito, Safran Foer tiene su receta para convivir con alguien que hace lo mismo. "Nos vamos de casa temprano cada uno por su lado, nos pasamos todo el día escribiendo y cuando volvemos al final del día hablamos de todo menos de nuestros libros".
-¿Cree que la ficción está dando síntomas de asfixia?
-Actualmente se está rodando una película basada en Tan cerca, tan fuerte, mi segunda novela. El otro día me llamó el director para preguntarme si podía cambiar el guión, haciendo que un personaje entrara en Google, y entonces caí en la cuenta de que cuando escribí el libro, hace ocho años, Google no existía. Hoy es impensable vivir sin Google. La novela se ha quedado a años luz de esos cambios. Y no es cuestión solo de la revolución tecnológica. De todas las formas de expresión artística, la que menos ha evolucionado en los últimos siglos es la literatura. Piense en lo que ha evolucionado la música desde Beethoven hasta Eminem, por decir alguien, o en la pintura, desde Botticelli hasta Andy Warhol, y todo lo que sucede en el mundo del arte, que es inatrapable. Por el contrario, desde Don Quijote hasta Las correcciones, de Jonathan Franzen, las cosas han cambiado poco, pese a figuras como Joyce. La literatura está anclada en el pasado.
Jonathan Safran Foer - Entrevista a Eduardo Lago (Publicado em El País)
Aeroportos da Copa
Dizem que os aeroportos brasileiros estão bem e vão dar conta do fluxo, do movimento extraordinário, da demanda emergencial do turismo e da movimentação de delegações esportivas, de jornalistas e torcedores, durante a Copa do Mundo de Futebol de 2014 (sem falar do evento anterior, a Copa das Confederações), além da vida normal e dos negócios daqueles que levam outra existéncia na qual o futebol tem pouca ou nenhuma importância.
Já está sendo bem complicado, enfrentar os congestionamentos e os nós-cegos de fluxo diário, com atrasos e desconfortos, os vôos cancelados e com horários bizarros a enlouquecer os usuários. Talvez São Paulo esteja bem, talvez o Rio, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba e Salvador que dispõem de aeroportos um pouco mais contemporâneos e mais bem planejados. Talvez. Porém, em Porto Alegre o caos é sempre ameaçador aos minutos imediatos. O projeto construído recentemente é acanhado, antiquado, foi mal concebido, mal planejado e está muitissimo distante da realidade do País. O que se poderá esperar para as exigências de 2014? Só mesmo construindo um aeroporto novo, noutro lugar. Mas não há mais tempo.
Como em outras coisas no país, vai se levando, inconscientemente, sem espírito público, como se tudo estivesse bem e não se olhasse para o que se deixou de fazer nos 16 últimos anos – as pontes que faltam ( a nova sobre o Rio Guaíba), as duplicações de estradas que faltam (para Pelotas, Rio Grande, Canoas, São Leopoldo, Novo Hamburgo, sul de Santa Catarina), o metrô que não existe em Porto Alegre e é limitado em outras grandes cidades, a via rápida de aeromóvel, do trem urbano ao aeroporto de Porto Alegre, que uma estrepitosa campanha publicitária alardeou durante dez meses em 2010 (tirada do ar em outubro) que estaria em funcionamento ao final de 2010. Não se colocou ali um centímetro cúbico de concreto, além do dinheiro gasto inutilmente em propaganda irresponsável (alguém viu esse aeromóvel redentor circulando entre a estação de trem e o aeroporto, cerca de 600 metros de distância, que se dizia no ultra veiculado mote publicitário que estaria em pleno funcionamento em dezembro de 2010, trazendo um pouco de alivio e conforto aos usuários do aeroporto? Utopias e esquecimentos)
O tempo vai passando, dia após dia, e nada se faz – por enquanto, tudo vai indo bem...
Legião
As estátuas cobertas de hera
Os casulos debaixo da escada
O chão traidor, esverdeado
Mas ninguém se lembra
Que em outros tempos
Coisas minúsculas se agarravam
E cresciam atrás dos reposteiros
Toda uma orgia assim igual a essa,
De trepadeiras e crisálidas,
Um miasma de verdades escondidas
Que a seu tempo conquistaria tudo
Sob este sol das três da tarde
Rebentando, arremetendo
Sem mais fazer sombra pela casa.
© Mariana Ianelli, Legião, 2011 (Iluminuras)
Deste profundo abismo, senhor
António Lobo Antunes
Os livros que escrevi trazem o meu nome mas tenho dificuldade em encontrar os seus autores. Só aquele que estou a escrever é feito por mim, os restantes parece-me sempre terem sido outros homens que os compuseram. Posso reconhecer-me no que sou hoje em algumas expressões, alguns desenhos de frase, alguns parágrafos talvez, gosto deles mas afiguram-se-me passos já dados, e que não desejo repetir, na direção do meu trabalho de agora, que, de certo modo, os engloba a todos. Julgo que compõem um único texto, ou que são afluentes de um único texto ainda não completo, e que, por mil anos que viva, ficará irremediavelmente truncado. Queria deixar uma catedral de palavras e dou-me conta que a catedral não tem fim. Queria arredondar o edifício, fechá-lo, e dou-me conta, desolado, da impossibilidade desse fecho, dada a inevitável limitação da vida. Não morrerei satisfeito, morrerei com a dor de não ter tido tempo.
Construirei uma obra mais duradoira que o bronze, afirmava Horácio: isso julgo que consigo. Ou Ovídio: hei-de sobreviver ao tempo, ao ferro e ao fogo: isso acho que também consigo. Porém desejava mais do que isso: uma música sem fim, uma sinfonia total. Decerto o que digo é a frustração de todo o artista e o inevitável destino da condição humana. Goethe consolava-se declarando ser o facto de não chegar ao termo a nossa única grandeza. E não conheço, em tantos autores que li, um só para quem este problema não constitua o drama da sua existência. Não se alcança a praia por mais que se nade, não há fita de chegada para esta maratona angustiosa e exaltante.
Quando a doença me filou pelo pescoço, essa ansiedade envenenou-me as horas. E, quando a mão me soltou, a marca dos seus dedos imprimiu-se-me na pele. Um dia, o conjunto de átomos que me compõem desintegrar-se-á sem remédio, e eu a meio da página de que não redigirei a última linha. Tenho o maior respeito pelos criadores visto que acabam sempre por perder e não mereciam perder. E tenho pena de mim porque triunfarei na derrota: um tiro bem acertado deitar-me-á ao chão a meio do voo, e serei uma perdiz esfarrapada numa moita, que um cachorro abocanhará para a entregar ao dono, o mesmo dono que traz, pendurados do cinto, aqueles que me precederam e enganchará no mesmo cinto os que vierem depois, com idêntica indiferença. Lembro-me das terríveis anotações de Mozart nas margens do seu Requiem, não tenho tempo, não tenho tempo, idênticas às de Gallois, que levou toda a noite a escrever antes do duelo que, de manhã, o matou, tentando condensar em poucos momentos as assombrosas descobertas dos seus dezanove anos de vida. É isto justo? E a resposta vem sinistra: é. Quem escolhe, ou foi escolhido, para este tipo de destino, finda, inevitavelmente, assim. É muito rara a correspondência de pintores, ou escritores, ou compositores em que a tragédia de que falo não esteja constantemente presente, como uma chaga viva.
Piedade para nós que trabalhamos nas fronteiras do ilimitado e do futuro, suplicou Apollinaire e, de facto, somos dignos de piedade. Há uns verões, num mosteiro da Roménia, o bispo cantou, com os padres e os seminaristas, uma oração pelas almas eternas dos escritores falecidos. Era uma igreja belíssima, no alto de uma encosta batida pelo vento e pelos grandes bandos de corvos chegados da Ucrânia, cujos campos de trigo se viam muito ao longe, e o canto, de dezenas e dezenas de vozes, alargava-se pelas nogueiras à volta da igreja, profundo, omovente, cheio, em simultâneo, de tristeza e de esperança, enquanto eu pensava em Gogol, o grande génio da Ucrânia, que nos retratos se assemelhava a um corvo, botando no fogo, a soluçar, toda a segunda parte das suas extraordinárias "Almas Mortas" e, em seguida, deitando-se na cama, recusando comer, até à agonia poucos dias depois: a literatura também tem os seus mártires, e nunca esquecerei a comoção que senti nessa igreja e a certeza que Gogol voava também, com os restantes corvos, em torno da colina, sobre as nogueiras em flor. Apollinaire, ainda: abram-me esta porta à qual bato a chorar, num verso que poderia ter sido composto por qualquer criador e que está sempre presente em mim diante de todas as obras de Arte. Abram-me esta porta à qual bato a chorar, é o que oiço, desde os poemas babilónicos, de há doze mil anos, até à mínima palavra de hoje. E quando Maiakovski explicou
(desculpem tanta referência)
comigo a Anatomia enlouqueceu: sou todo coração, estava a falar por nós.
Conheci homens políticos importantes, desportistas excepcionais, criaturas de extrema bondade, santos anónimos de alminhas puras mas jamais me emocionei tanto como perante os criadores, não pela sua capacidade de nos oferecerem a beleza na palma da mão estendida, juntamente com a dignificação do Homem, mas pelo enorme padecimento inerente a esta capacidade, e a certeza pavorosa do seu trabalho estar destinado a ficar incompleto.
Vem-me à cabeça Tolstoi moribundo, numa estação de caminho de ferro, percorrendo o cobertor com os dedos no gesto de escrever. É dessa maneira que gostaria de me ir embora: a escrever, com os dedos incertos, numa dobra de lençol, na tentativa falhada de completar o meu De Profundis necessariamente fragmentário. Oxalá, numa igreja da Roménia, cercada de corvos e nogueiras, um único seminarista, porque um único seminarista me chega, reze cantando pela alma eterna de mais um pobre escritor falecido.
António Lobo Antunes
Beleza e praticidade
O Aeroporto de Carrasco em Montevidéu é uma obra arquitetônica de espantosa beleza estética e proporciona grande conforto e eficácia a seus usuários.
É de autoria do arquiteto uruguaio Rafael Viñoly.
Custou a mesma coisa que a horrenda caixa de sapatos, o tedioso bloco quadrado de concreto, edulcorado com inúteis enfeites de vidrilhos azuis, o fracassado Aeroporto Salgado Filho, de Porto Alegre, inenarrável lição de erros de como não deve ser um aeroporto contemporâneo.
Aeroporto malconcebido esteticamente, ultrapassado e dramaticamente obsoleto em seus serviços, sorvedouro de recursos públicos e que submete os seus usuários a constantes desconfortos pelas suas exíguas instalações, carência de locais de estacionamento, ausência de serviços públicos de transporte e incríveis congestionamentos de passageiros, o que exigiu a reativação da múmia do terminal abandonado ao seu lado para dar auxílio de vazão ao projeto mal planejado.
É triste mas é o que nos toca nessa trilha de fracassos de administrações sem grandeza, sem talentos e sem espírito público. A beleza que se vê em Montevidéu poderia estar facilmente em Porto Alegre, mas preferimos escolher sempre o muito ruim e o mais feio por conveniências de amizades e de compromissos políticos, em detrimento ao mérito e ao talento. Gastando o mesmo valor por algo que vale muito menos, em qualidade de acabamento, de espaço e de tecnologia.
O tempo está passando dia após dia e nada se faz pelos compromissos sociais assumidos para Copa do Mundo de Futebol de 2014.
Contos Gardelianos
Geraldo Hasse
Os ditos “contos gardelianos” de Aldyr Garcia Schlee (Os limites do impossível, edições ardotempo, 2009) são na realidade um romance construído a partir da circularidade de uma dezena de narrativas sobre mulheres que participaram direta ou indiretamente de um acontecimento real – o nascimento em 1884 em Tacuarembó, no Uruguai, de Carlos Gardel, o ídolo do tango argentino falecido em acidente aéreo em Medellín em 1935.
É uma história alinhada com o que a literatura sulamericana tem de melhor. Não admira que tenha sido escrita por um nativo de Jaguarão, lugar onde se aprende portunhol no berço. Mesclando uma narrativa histórica com lances do mais criativo realismo literário, Schlee constrói uma carreata fabulosa. A leitura é tão saborosa que não temos a menor dificuldade em colocá-lo ao lado de mestres latino-americanos como Alejo Carpentier, Gabriel Garcia Márquez e Juan Rulfo. Ele também fica de pé fácil se colocado na estante ao lado de Domingos Pellegrini, Lourenço Cazarré e Miguel Sanches Neto, para citar apenas contistas do Sul do Brasil.
O livro tem uma personagem central, D. Carlos Escayola, “mandamais” de San Fructuoso, nome ficcional de Rivera, a cidade gêmea de Santana do Livramento. Além de ser o cacique local, D. Carlos é acidentalmente cunhado do general farrapo Antonio de Souza Netto e tem o dom extraordinário de seduzir todas – todas – as mulheres do enredo.
Garanhão inveterado, ele começa desposando uma moça que o despreza, casa com a cunhada após enviuvar e emprenha a sogra enlouquecida de amor por ele. Perto do auge da história, o herói-canalha estupra e engravida a própria filha, uma vingencita de 13 anos, que vai ter o bebê numa fazenda no interior de Tacuarembó, assistida por uma parteira que eventualmente trabalha também como despenadeira, isto é, a pessoa que ajuda os moribundos a desencarnar – segundo o autor, esse tipo de pessoa foi comum na época das guerras e revoluções do Cone Sul.
Levada para Buenos Aires por uma ex-corista francesa paga para “desaparecer” com a encomenda, a criança vinga espetacularmente na Argentina, dando sentido a uma antiga e misteriosa declaração de Carlos Gardel: “Nasci em Buenos Aires aos dois anos e meio de idade...” No entanto, no seu passaporte resgatado em Medellín das cinzas do avião acidentado em 1935 estava escrito: “Nascido em Tacuarembó”.
Desfez-se assim também a lenda de que o ás do tango teria nascido no interior da França. Se não é verdadeira, a história é muito bem montada com todos os ardis possíveis da literatura. Artista plástico, jornalista e professor de literatura, Schlee construiu uma obra que segue magistralmente pela trilha do realismo fantástico. Há indícios de pesquisa histórica por trás de tantos contos encadeados, mas a criação literária parece ser ainda maior.
Daí o clima de contido exagero que permeia a narrativa, pontilhada de palavras e expressões corriqueiras na fronteira do espanhol e do português. Fora a genial remexida na história pessoal do ídolo mercosulino (há muito Gardel não é somente argentino), a invencionice da linguagem é a maior qualidade desta história editada em 2009 por uma editora de Porto Alegre e premiada no final de 2010 com o Açorianos pela Prefeitura de Porto Alegre.
Em quase todas as páginas do livro se encontram ditos saborosos que fazem parte da linguagem oral do pampa mas que até agora não haviam sido incorporados à literatura. No correr da história, sem qualquer esforço ou rebuscamento, o jornalista jaguarense nos regala com um palavreado inolvidável. Nesse aspecto, promove um resgate semelhante ao de Simões Lopes Neto quando este jornalista pelotense fixou há 100 anos nos seus contos gauchescos e lenda do Sul o modo de falar do gaúcho da campanha. É muito bom para a Metade Sul que esse livro brilhante seja fructo de um trabalhador intelectual que vive em Capão do Leão, a menor cidade entre Jaguarão e Pelotas, polos de origem e afirmação de Don Aldyr Garcia Schlee.
Geraldo Hasse
Imagem: Mario Castello - Fotografia de porta colonial espanhola (detalhe). Cartagena de Indias. Colômbia
Tudo o que nos abandona
precisa de muito tempo para desaparecer
António Lobo Antunes
Tenho saudades tuas,
Ernesto,
mesmo com a aliança tenho saudades tuas, no outro dia vi-te com a tua mulher no supermercado
e apesar disso consegui fazer as compras todas,
uma pessoa da minha idade, talvez maior, mais bonita, achei esquisito não haver nada entre vocês há anos e embora ache esquisito acredito em ti
Porque razão não voltaste a telefonar e me deixas assim, suspensa, à tua espera?
Nem para o emprego
(conheces o número do emprego)
nem para casa, sabes que estou sozinha, não recebo ninguém, uma amiga de tempos a tempos que não impede que ligues, quando muito saio uma hora ou duas ao sábado para visitar a minha mãe, nunca vou ao cinema, nunca janto fora, como qualquer coisa por aqui, leio uma revista
(nem leio uma revista, folheio, vejo as fotografias e é tudo, ou antes nem vejo as fotografias, fico a pensar em ti)
poiso a revista, abro a televisão, fecho a televisão, vou à janela espreitar a rua, penso que é o teu carro a estacionar lá em baixo
e nunca é o teu carro a estacionar lá em baixo,
nunca és tu a fechar a porta com o comando eléctrico
e as luzes do automóvel a acenderem-se e a apagarem-se,
nunca são os teus dois toques de campainha, nunca é o teu aceno no capacho nem o embrulhinho de biscoitos
de que não gosto e me forço a comer e a fazer dieta no dia seguinte dado que os biscoitos engordam,
nunca é a tua mão no meu ombro
- A minha menina
o teu perfume, a tua maneira de acomodar o rabo no sofá, a tua aliança que apesar de normal me parece sempre enorme e me dói,
não tenho coragem de te confessar que me dói mas dói, conforme me doem as tuas mentiras
- Há anos que não há nada entre nós
que me obrigam a perguntar, calada, se entre nós há alguma coisa,
vinhas uma ou duas ocasiões por mês, não ficavas nunca e, no entanto, bastava-me, não peço muito à vida, não peço seja o que for à vida,
acostumei-me, não tenho motivos para lamentar-me,
o que ganho chega, graças a Deus a saúde não me tem faltado apesar do problema da coluna, tomo as injeções no posto médico e as coisas vão andando,
o creme que me receitaram na farmácia ajuda,
o apartamento claro que não é grande mas para mim sozinha chega e sobra,
não existe uma prestação por pagar, arranjo sempre um dinheirito ao fim do mês, volta e meia compro um vestido, uns sapatos,
os vizinhos não fazem barulho, há agora um bebé no primeiro direito mas sossegado, tenho saudades tuas, Ernesto,
mesmo com a aliança tenho saudades tuas,
no outro dia vi-te com a tua mulher no supermercado e apesar disso consegui fazer as compras todas,
uma pessoa da minha idade, talvez maior, mais bonita,
achei esquisito não haver nada entre vocês há anos e embora ache esquisito acredito em ti
- És a minha menina
preocupo-me com o teu coração sempre que levas a mão ao peito,
tiras um comprimido de uma caixinha, me pedes água, me ofereces um sorriso pobre
- Ferrugem na máquina
e a seguir melhoras, suponho que o comprimido limpa a ferrugem toda, aflijo-me com a tua palidez,
com o dedo a medir a pulsação julgando que não noto, como podia não notar, tudo o que te aflige assusta-me, não te aborreço
- Que ferrugem na máquina?
para que não te sintas velho ou inútil, suponho que tens sessenta anos e portanto uma vida inteira à frente, o emprego deve cansar-te,
as maçadas, quando menos se espera descais-te num suspiro
- A minha filha
não há maneira de ter juízo e ignoro o que, na tua ideia, não ter juízo seja, fico calada, é evidente, trago-te aquele licor fraquinho que tu gostas,
faço-te festas no pescoço, a medo, com receio de maçar-te, não reclamo seja o que for, não mendigo seja o que for,
só desejava que de tempos a tempos te lembrasses de mim,
há sete meses que nem uma palavra, inquieta-me que a ferrugem haja aumentado e estejas na sala de espera de uma consulta, emagrecido, pálido, digo
- Ernesto
em voz alta como se dizer
- Ernesto
e melhorasse, comove-me que andes a perder cabelo, que o nó da tua gravata um bocadinho torto, que uma tremura no queixo,
pode ser que mais de sessenta anos, sessenta e cinco, setenta e apesar de setenta a vida inteira à tua frente à mesma,
o que eu não dava para te ter aqui um momento, um minutinho, um instante,
na tua última visita trazias dentes novos que te tornavam mais vigoroso apesar de mal pegados à gengiva e a incomodarem-te que se percebia por estares constantemente a empurrá-los com a língua, oxalá encontres um pó que segure a placa,
a minha mãe usa um pó que segura lindamente a placa, repara-se que placa mas firme como uma lapa no queixo, mastiga de tudo, não te agradava ficar um momento comigo no sofá, não te anima o licorzinho, a quantidade de vezes que digo em voz alta, aqui em casa
- Ernesto
na esperança de um sorriso teu, mesmo pobre, mesmo aflito, na esperança de
- A minha menina
e eu, sem coragem de responder
- O meu rapaz
digo
- O meu rapaz
para dentro, não me sai, não consigo, faço tanta cerimónia, não me atrevo a procurar-te, a tentar saber de ti, a incomodar, a protestar
- Que aliança tão grande, Ernesto
eu que não casei nunca, uns namoricos, umas cartas cerimoniosas, um domingo, durante uma excursão no norte, um (desculpa) beijo, estava guardada para ti desde sempre, guardada para ti, Ernesto, seria incapaz de me imaginar com outro homem, continuo à tua espera, sabias, que arrumes o carro, subas, me garantas
- A minha menina
enquanto verificas se trazes a caixinha dos comprimidos no bolso, pode parecer-te parvo mas adorava acariciar a caixinha, não te rias de mim, ou antes não levantes na minha direção o teu sorriso pobre e a tua desculpa
- A ferrugem
mesmo que fosses um parafuso todo escuro adorava-te, guardada para ti desde sempre, a comer qualquer coisa sozinha, a folhear uma revista, a fechar a televisão, a deitar-me, guardada para ti, Ernesto, podes ter a certeza, desde o princípio do mundo.
António Lobo Antunes
Mecanismo azeitado
Yoani Sánchez
Una gota me resbalaba por la pierna, se me metía en la oquedad que el tobillo forma con el zapato y debía hacer mil piruetas para que mis condiscípulos del preuniversitario no se dieran cuenta. Durante meses, mi familia sólo tuvo aquel aceite mineral para cocinar, gracias a un pariente farmacéutico que lo sacaba a escondidas de su trabajo. Recuerdo que al calentarlo hacía una espuma blanca en la cazuela y después la comida quedaba con un tono dorado de fotografía, ideal para revistas gastronómicas. Sólo que nuestros cuerpos no podían absorber aquella grasa destinada a crear lociones, perfumes o cremas. Se nos salía por el último tramo del intestino y goteaba, goteaba, goteaba…
Mi poca ropa interior quedaba manchada, aunque al menos así podíamos descansar de la comida sólo hervida y probar otra, un tanto asada. Éramos realmente afortunados por tener aquel remedo de “manteca”, que alguien robaba para nosotros, pues en los años noventa muchos otros tuvieron que destilar aceites de motores para utilizarlos en sus cocinas. Quizás de ahí nos viene a los cubanos el trauma con ese producto que se extrae del girasol, la soya o el olivo.
El precio de un litro de aceite en el mercado se convirtió en nuestro propio y popular indicador de bienestar o de crisis, en el termómetro para medirle la temperatura a las carencias. Con una cultura culinaria cada vez más reducida, de Pinar del Río a Guantánamo, la mayoría de los fogones sólo conocen recetas que incluyen freír los alimentos. De ahí que la grasa de cerdo o esos líquidos mantecosos, con nombres altisonantes como “El Cocinero” o “As de oro”, resulten imprescindibles en nuestra vida cotidiana.
Cuando hace unos días – sin previo aviso – aumentó en un 11,6 % el costo del aceite vegetal en las tiendas de divisas, la sensación de molestia fue muy fuerte, incluso mayor que cuando subieron los precios del combustible. Muchos no tenemos autos para constatar cómo cada vez más pesos convertibles se convierten en menos gasolina, pero todos nos enfrentamos cada día a un plato donde los productos de primera necesidad han levantado vuelo.
Que eso ocurra sin que le acompañen protestas públicas, cacerolazos de amas de casas descontentas o largos artículos en la prensa quejándose del atropello, es más difícil de tragar que una comida sin grasa. Me da más vergüenza esta aceptación tácita de la subida que el hilo de aceite mineral que me bajó una vez por la pantorrilla ante la mirada burlona de mis colegas.
Yoani Sánchez - Publicado no blog Generación Y
Breve anotação sobre um tigre
Mariana Ianelli
Júbilo é uma palavra difícil de viver. Algo raro, tão raro quanto um tigre. Demora para acontecer, mas quando acontece, uma pessoa já não pode mais voltar ao que era antes de ter sentido o que sentiu.
Um acontecimento assim é o que excita um poeta a meter-se no escuro, procurando. Porque se existe um lugar além de um templo na Tailândia onde ainda hoje esse tigre passeia livre, longe de armadilhas, esse lugar é um poema. Precisa de silêncio para existir, por isso é tão raro o júbilo.
Não é algo que se possa dizer, é algo para ser sentido. Precisa de um tempo que perdure e, sobre esse tempo, um poema não mente. Não importa quantos dias sejam necessários trabalhando, vagando à procura, o tempo do poema depende do fulgor de um momento e esse momento depende de uma vida. Pretender tomá-lo à força, além de inútil, seria ridículo. Pode estar próximo e cada vez mais próximo, pode se fazer pressentir numa pausa do vento, num prólogo de bonança, e ainda assim não é certo que venha. Um júbilo não se compreende, é-se compreendido por ele, envolvido por ele, abraçado, possuído.
Traçar um plano de busca, estudar um provável cruzamento de rotas para encontrar esse animal rajado seria perder a explosão de estrelas que existe em ser por ele surpreendido numa estreita passagem. Procurá-lo pede um pensamento vago, qualquer coisa de desejo distraído, um devaneio sem pretensão de eficácia, sem meta a ser atingida, a sugestão de que está bem como está, o júbilo venha ou não venha.
É procurar indefinidamente até que chegue esse momento, um momento de presença, esse instante puro de descobrimento em que o poema diz amor e o amor é feito. Entra no poema quem entra nesse bosque sem palavra, nesse erotismo de uma comunicação profunda. Mas tudo o que se fala sobre o júbilo sempre é pouco, muito pouco fora do seu acontecimento. O júbilo acontece livre e no silêncio. É uma alegria rara, que perdura, um prazer de melodia quando irrompe, quando arrebata e transverbera um corpo. Não se pode apanhá-lo numa palavra. E mesmo que ficasse preso, que fosse agarrado, absurdamente enredado numa armadilha, já não seria júbilo, seria só um animal triste.
Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve
Sobre um escritor que fugiu mesmo da fama
José Mário Silva
Eis o texto que li na primeira mesa do FLM (“Os escritores que fogem da fama”), sem uma breve introdução que isolarei daqui a nada num outro post: Ainda em Lisboa, anotei no meu moleskine meia dúzia de ideias gerais sobre o tema desta mesa e pensava improvisar à volta delas até perfazer os 15 minutos da praxe e passar a palavra a outra pessoa da mesa. Acontece que ontem à tarde, depois da abertura solene do festival, fui abordado por uma jornalista de rádio que me pediu para explicar, em dois minutos, o que tinha para vos dizer aqui agora. Eu caí no erro de lhe fazer a vontade. E depois percebi que aquelas generalidades são isso mesmo, generalidades, factos ao alcance de quem tenha uma ligação wireless e a Wikipedia nos favoritos do browser.
À noite, quando voltei ao quarto, depois de uma poncha de maracujá bebida à porta de um bar no centro do Funchal, enquanto um professor de Filosofia me alertava para a importância de ouvir o «toque de caixa» das coisas essenciais da vida; depois de regressar ao quarto, debruçado na varanda a olhar de cima para a rosa dos ventos junto às águas e para o vulto escuro daquele rochedo que parece ter sido plantado ali, no meio do mar, para nosso deleite contemplativo, decidi ignorar as notas do moleskine e sentar-me ao computador a escrever este texto. E sobre o que haveria eu de vos falar, para fugir às generalidades wikipédicas? Pois bem, não sobre os escritores que fogem da fama, em abstracto, mas sobre um escritor em particular, talvez o único escritor que verdadeiramente fugiu da fama. Ele é madeirense, tem 80 anos e… não, não se chama Herberto Helder.
Chama-se Aurelino Sousa Gomes. E se nunca ouviram falar dele é porque, ao contrário de outros escritores que supostamente fogem da fama (como Herberto Helder), ele levou essa fuga mesmo a sério. Tão a sério que não correu riscos e preferiu não publicar nada de nada. Há quem não publique porque não consegue. Aurelino Sousa Gomes não publicou porque não quis.
Fonte segura garante-me que Enrique Vila-Matas tencionava falar dele na primeira versão de Bartleby & Companhia, esse hino aos escritores do Não, aos escritores que se recusam a escrever, mas Aurelino, ao saber das intenções de Vila-Matas, terá viajado no seu FIAT 600 de cor creme até Barcelona, onde, à porta de uma estação de Correios, ameaçou de porrada o escritor catalão. Embora Aurelino fosse um homem já com quase 70 anos, enxuto e vigoroso mas frágil de ossos e sujeito a ser derrubado com um simples empurrão, a ameaça parece ter resultado, porque no livro de Vila-Matas não há uma só referência a Sousa Gomes, embora não faltem histórias sobre outros membros da confraria bartlebiana, como Juan Rulfo, Robert Walser, Daniele Del Giudice, Joseph Joubert, J. D. Salinger ou Julien Gracq – tudo nomes, diga-se, que eu trouxera de Lisboa anotados no moleskine.
O que torna singular a figura de Aurelino Sousa Gomes não é a sua recusa em publicar, ou sequer a sua recusa em escrever uma única frase (há outros casos de escritores que nunca escreveram uma única frase). O que o torna singular é o facto de as frases que nunca escreveu, os textos que nunca publicou, os livros que nunca editou, serem todos sobre um único assunto: precisamente o da relação dos escritores com a fama e as estratégias para lidar com ela. Ou seja, o tema desta sessão. Devo explicar que conheço Aurelino Sousa Gomes desde sempre.
Ele foi um grande amigo do meu avô paterno, o meu avô Mário, que tinha uma fábrica de cortiça e apreciava viajar pela Europa, com amigos, atrás do Benfica de Eusébio e Coluna, apesar de ser do Belenenses e no fundo não gostar por aí além de futebol. Ele gostava era da viagem, do estar com aqueles amigos estrada fora, das noites de comezaina e das idas aos casinos que surgiam entre Lisboa e as cidades onde o SLB disputava finais europeias. O meu avô terá conhecido Sousa Gomes numa dessas viagens e o que os aproximou, suspeito, foi o absoluto desinteresse do meu avô pela literatura. Seja como for, recordo-me de ver Aurelino no escritório da fábrica de cortiça, evocando uma qualquer aventura rodoviária ou gastronómica nos arredores de Zurique. O meu avô era uns dez anos mais velho e, para picar Aurelino, chamava-lhe “O Escritor”. Ele ficava todo indignado, enrubescia de raiva fingida, e depois íamos todos comer doses industriais de cozido à portuguesa, a que o meu avô sempre pedia para acrescentar, num pratinho, uma dose extra de chouriço preto.
Muitos anos mais tarde, quando eu já estava mergulhado em literatura e começava rabiscar os meus primeiros versos, fui com o meu avô ao hospital visitar Aurelino. Ele estava todo partido porque caíra numa ribanceira ou por umas escadas abaixo, já não sei bem, e o meu avô, que não tinha paciência nem conversa para estar tardes inteiras ao pé de um homem engessado, pediu-me que fosse duas vezes por semana falar com Aurelino. O meu avô oferecera-me há pouco tempo o meu primeiro carro, um 2CV branco que ainda hoje lembro com saudade, pelo que não fui capaz de lhe dizer que não. Durante dois meses, fui a principal visita de Aurelino e ouvi atentamente as suas ideias.
Segundo Sousa Gomes, os escritores que fogem da fama só o fazem por uma razão: para se tornarem famosos. A forma como se ocultam, como desaparecem de circulação, como escapam do escrutínio público, mais não é do que uma estratégia inteligentíssima para criar uma curiosidade que eles sabem que perdurará. São lendas? Claro, mas lendas criadas por eles mesmos. São mitos? Sim, mas mitos criados por eles próprios. Por natureza, a fama é efémera, cíclica, fugaz. Quem se dá a conhecer, dá-se a esquecer. A única fama que resiste é a fama que se recusa, a fama que se desdenha. Quando Greta Garbo disse "I want to be alone", no fundo sabia que nunca mais deixaria de estar acompanhada. Em suma, não há escritor que procure mais a fama do que o escritor que foge dela.
Era este o conceito central do livro que Sousa Gomes nunca escreveu, mas do qual me falou longamente durante aquela complicada convalescença. Passaram-se os anos e nunca mais ouvi falar de Sousa Gomes. Ontem à noite, na varanda, enquanto olhava para o vulto negro do rochedo que parece ter sido plantado ali, no meio do mar, para nosso deleite contemplativo, pensei que quem devia estar aqui a falar-vos disto tudo não era eu, era Sousa Gomes, o único escritor que fugiu mesmo da fama, sem segundas intenções. O único que fugiu tanto da fama que ninguém sabe quem é, ninguém sabe sequer se existe ou existiu. Infelizmente, não sei onde está Sousa Gomes, nem sei se ainda é vivo. A última vez que estive com ele, talvez em 2004, foi à saída do hospital, ele ainda meio trôpego e dobrado sobre si mesmo, impecavelmente bem vestido, o rosto vincado pela melancolia como o de um general romano depois de assistir à derrota das suas legiões.
Há pouco, no meio do público, julguei ver esse rosto tão nobre. Mas deve ter sido ilusão. Se não foi ilusão, por favor, não me deixem sozinho no fim desta mesa redonda, porque nesse caso tenho a certeza que Sousa Gomes deve estar lá fora, à minha espera, pronto a dar-me os socos e pontapés a que poupou, há cerca de dez anos, em Barcelona, um assustado Enrique Vila-Matas.
José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel
Aguas corrientes
Sin ellas, no sabríamos de Tales,
de la balsa del dios Marduk,
de Noé, los pecados y el diluvio
de los hombres que ellas fustigaron
por ser males de tierra y agua, barro.
Semilla y transporte de todo lo que vive,
origen del velado origen:
sin ellas hay sequía, sed y muerte;
sin ellas nunca jamás
no habría muerte, sequía ni sed.
Nada se da sin algo a cambio.
La espuma de vivir fluye incesante
aguas arriba, aguas abajo,
amigo Heráclito:
con ritmos y colores según suerte
por márgenes urdidas de antemano.
© Mariano Shifman
_____________________________
Peter Pan
Decir No
es huir felizmente
de los puntos de arribo,
atreverse a ignorar tierra firme.
Agua y aire quiero, y maravillas
que me aparten de cualquier destino.
Nunca regresaré del buen jamás:
pulvericé las piedras del obligado.
Y si la realidad insiste
convoco a las sirenas y al olvido.
No más palabras, sólo recreo;
quiero colores, tesoros a mano
y tiempo de hadas para mí
doce años toda la vida.
© Mariano Shifman
Sem medo de Virginia Woolf
João Ventura
Há 70 anos, numa dia como o de hoje, uma mulher ainda jovem, magra, branca, feminil, caminha solitária na margem do rio perto da sua casa na aldeia de Rodmell, em Sussex, onde se tinha refugiado com o seu marido Leonard fugindo aos bombardeamentos alemães sobre Londres. E enquanto vai pisando a areia grossa da margem, vai colhendo com as suas longas mãos de louca tranquila, como se flores fossem, as pedras com que vai enchendo os bolsos do casaco. Desliza, depois, rio adentro, deixando-se abraçar pelas águas profundas do rio, para, finalmente, escapar ao medo.
Quem assim entrou no suicídio, com medo de viver, foi Virginia Woolf, a romancista inglesa que gostava de passear nas margens da vida sob um céu sombrio e triste, e que, fosse em Londres, na velha mansão de família no bairro de Bloomsbury, fosse na casa perdida na paisagem verde negrejante de Sussex, num e noutro lugar sempre rodeada de enfermeiras, de malas para partir e regressar, de festas e convidados, escreveu romances, contos, ensaios, cartas e diários, antecipando-se a James Joyce no modo de forjar o monólogo interior e a polifonia de vozes que murmuravam tanto nos textos que escrevia como na sua mente bipolar.
Por isso, não ter medo de ler Virginia Woolf, que numa época de moral vitoriana vestia calças de homem, era sufragista, fumava em público cigarros egípcios, dava conferências em círculos operários e, como se isto não bastasse para fazer dela alguém desajustado aos olhos da sociedade, ter, também, mantido uma relação lésbica com a sua amiga Vita Sackville West, poeta e mulher de um lord. O seu fim foi coerente com a sua existência inconformista e radical.
Depois de uma noite sem bombardeamentos nazis, o dia 28 de Março amanheceu luminoso, transparente, frio. Antes de sair em direcção ao rio, Virginia ainda roubou à morte as três derradeiras cartas dirigidas a Leonard e à sua irmã Vanessa. Depois, tranquilamente, deixou-se abraçar pelas águas para não mais voltar a ver a claridade do dia. Vinte dias depois, um grupo de crianças haveria de encontrar o seu corpo numa das margens do rio Ouse.
Talvez naquele 28 de março, temendo voltar a sofrer uma crise de loucura e não poder suportá-la, a alma de Virginia tenha, finalmente, decidido não mais afrontar o inafrontável. Essa realidade intangível que se nunca chegou a compreender nem mesmo através da sua obra.
João Ventura - Publicado no dia 28 de março no blog O leitor sem qualidades
Charqueadas
Ilustrações aquareladas e xilogravuras da Série Charqueadas - 1953 , de Danúbio Gonçalves - em livro de arte em grande formato
O brilho do autêntico
Enrique Vila-Matas
La traición a uno mismo es el primer peldaño hacia el fracaso.
Es lo que le sucede al protagonista de El Leviatán cuando mezcla lo falso con lo auténtico. Una obra que remite a la situación actual de lo literario, en un momento en que se habla más de los fenómenos digitales que de los buenos libros que se editan. Un tiempo, también, lleno de simulacros y falsificaciones Hallándose Zadie Smith dando unas clases de literatura en la India, en la ciudad de Madrás, un alumno le preguntó por qué tenía tantas ganas de agradar. Creo que éste es el tipo de pregunta que puede obligar a casi todo el mundo a pensar, quizás porque antes de responder conviene revisar el estado de nuestras relaciones con el fracaso, al que tanto tememos. De hecho, queremos agradar porque no nos gusta fracasar y que el destino nos dé la espalda.
Hay dos formas distintas de derrota: ante los demás, ante nosotros mismos.
Fracasar ante los demás, si uno tiene humor y ganas de vivir, carece de importancia porque depende exclusivamente del estúpido o desinformado juicio de los otros. Pero el otro tipo de fracaso es mucho más duro, sobre todo si incluye la traición a nuestra propia moral, a nosotros mismos. Al comentar la pregunta de Madrás y reflexionar sobre el fracaso, escribe Zadie Smith: "Quienes como yo han crecido bajo el signo de la posmodernidad observamos con escepticismo el concepto de autenticidad. Se nos enseñó que ésta no tenía sentido. Ante esto, ¿cómo asumir el hecho de que para un escritor el fracaso más profundo, el más auténtico, es el de la traición a uno mismo?".
Esto sitúa el concepto de autenticidad en estado de relectura. ¿Pasó a ser lo auténtico un concepto trasnochado y rústico cuando se impuso la tendencia moderna a tener muchas personalidades en una sola alma? Está claro que si uno, por ejemplo, es muchos poetas al mismo tiempo, difícilmente va a preocuparse de haber traicionado flagrantemente a una de sus personalidades. Quizás esto explique que hoy en día, cuando los escritores admiten fracasos, generalmente les guste reconocer sólo los pequeños. Es muy fácil aceptar que hay frases que chirrían, que dan pura vergüenza, pero más complicado resulta enfrentarse al hecho (escribe Smith) "de que hay libros completos que escribimos sonámbulos y para los que 'inauténtico' sería el calificativo más apropiado". La palabra 'inauténtico' nos trae a la memoria la hoy en día tan apagada y supongo que pasada de moda "filosofía del arte", una manera de ver las cosas que percibe al acto creativo como una manifestación implícita de fidelidad del autor a su mundo propio y no a valores externos a ese mundo como podrían ser la tradición histórica o el valor comercial.
De lo auténtico y del gran fracaso que conlleva la traición a uno mismo que provoca la implacable venganza del destino habla El Leviatán, imprescindible libro de Joseph Roth que cuenta la historia de Piczenik, un comerciante de corales de la ciudad de Progrody que ama los corales auténticos, criaturas del pez original Leviatán, y sin embargo no sabe resistir el falso engaño de los falsos corales de celuloide. Sólo una nostalgia ocupa su corazón: nostalgia de la patria de los corales, del mar. Cuando aparece el diabólico Lakatos, un vendedor de corales falsos, Piczenik se aviene a comprar algunos, mezclándolos con los suyos; entonces el destino le vuelve la espalda. Todo el relato tiene la ejemplaridad de la parábola. Quien traiciona lo más auténtico de él mismo, está perdido.
La relectura de El Leviatán me confirma que es una obra maestra que cada día nos recuerda más a la situación actual de lo literario en un mundo en el que hasta la prensa cultural, de forma más que alarmante, está arrinconando las noticias sobre libros. Se dedican grandes reportajes a los avances digitales, al inquietante futuro de Internet, al peligro de que se extingan los textos impresos, pero nadie parece hacer mucho para seguir hablando de libros con la normalidad de antes: o se habla de que éstos van a desaparecer, o ya directamente no se habla y se prefiere llenar páginas con un modisto nazi, por ejemplo.
Creo que, de vez en cuando, convendría que alguien comentara con mayor amplitud lo que se edita entre nosotros, incluso que explicara algo que es completamente auténtico, una noticia bomba que diría una gran verdad: jamás se ha editado como ahora, con tanta pasión y con un nivel - si nos acordamos de las editoriales independientes - altísimo, un verdadero punto elevado en la historia del libro en nuestro país. Y eso a pesar de que esa industria tiene que convivir con los advenedizos que, alejándola de la autenticidad, es decir, traicionando a los corales verdaderos, la llevan hacia un clima de fin de trayecto. Ese clima conecta con la traición a sí mismo del comerciante Piczenik y desde hace tiempo va llevando a la vieja Poética hacia un paisaje de desastre que hace temer que al final, por la vía directa de tanta ruina moral, el destino acabe dándonos la espalda.
Todo esto me lleva a recordar cuando Alberto Manguel apadrinó la palabra "prístino" a la hora de seleccionar una del idioma castellano que precisara ser rescatada del olvido. Sus razones fueron: se refiere a lo que perdura en el tiempo con vigor y tiene el brillo de lo auténtico. Atribuye un resplandor especial. En estos tiempos de simulacros y falsificaciones, es una palabra que no encuentra fácilmente dónde posarse. De manera que lo prístino se oculta detrás de sinónimos difusos: primitivo, antiguo, original. Más que un arcaísmo es una palabra que debe esperar para ser usada. Esperemos".
Viendo que entre nosotros se va poniendo de moda el engaño, el fraude artístico - el homenaje hispano tardío a Fake de Orson Welles, por ejemplo -, la poética ya trillada de lo heterónimo, el remake que traiciona el espíritu de lo imitado, lo cibernético como ilusoria acreditación de modernidad, todos los tópicos de una posmodernidad que llega a nosotros tan tarde (castizos comentaristas vernáculos registrando ahora la existencia de la 'autoficción' cuando ésta pasó a mejor vida hace más de dos décadas), uno termina por decidir que lo mejor será permanecer en lo auténtico que tiene todo camino propio.
A fin de cuentas, seguir esa vieja senda permite alejarse del estilo ramplón, trillado, inane, de tantos escritores americanos que surgen de los departamentos de literatura creativa, llena de fórmulas y carente de una sola voz auténtica. Y, además, permite no tener que pensar más en recurrir a aquello de lo que hablaba Auden cuando decía que los artistas cambian de visión del mundo para renovar su poética. ¿Para qué renovarla si eso no garantiza ser moderno y si, además, ser moderno es una cuestión sólo de clasificación, enteramente ajeno a toda valoración artística? En todos los tiempos históricos ha habido una modernidad, pero ésta, como tan razonablemente explica Félix de Azúa en su Diccionario de las Artes, no puede conocerse hasta el siguiente momento de la modernidad: "En el siglo XII, por ejemplo, la modernidad de la construcción gótica cortaba con la construcción románica, la cual se veía, de ese modo, lanzada al pasado. Pero que el gótico iba a ser la modernidad del siglo XII es algo que sólo se supo después".
A fin de cuentas, nadie puede saber en qué consiste la modernidad del momento presente y de nada sirve que algunos se presenten con esa etiqueta. Es más, cuando haya desaparecido el momento presente, se habrá presentado una nueva modernidad. En medio de ese panorama, la autenticidad parece una carta menos necia si se quiere innovar en medio de la monotonía de lo falso y asegura, de paso, la no traición a nuestro camino de siempre y a nuestra poética inamovible y hasta nos aleja del fracaso más temido, el fracaso más auténtico, aquel que amenazaría con destruir lo que debería ser indestructible: nuestro "prestigio propio".
Enrique Vila-Matas
A quem se vê
Um pássaro sobrevoa seus antigos domínios.
Ali está o cheiro da chuva na terra
A sombra de Deus oculta pelos philodendros
O rumor sem fim da fonte dos leões.
Estátua grega resplandescente
na feroz luz do ângulo sem cota
é o rochedo seguro.
Alta torre do observador
dos que vivem e não vêem.
Frágil peito de plumas alaranjadas,
o pássaro da terra
constrói sua letra secreta,
pousa sobre a palavra de prata.
É preciso matar em nós esta visão sincrética da existência humana.
É preciso matar Bach.
É preciso compor segundo o horror.
A música tem de aproximar-se da pintura e da poesia.
Tem que ser mais bárbara.
(Natureza morta - Paulo José Miranda, Edições Cotovia - Lisboa Portugal, 1998)
Sean Scully
Sean Scully - Dark Day - Pintura, óleo sobre tela (em grande formato) - (Paris, França), 2003
Memória
Há que fazer tudo para recuperar a memória. O tempo, as palavras, o silêncio, os movimentos, a leveza.
Julio Uruguay Alpuy
Julio Alpuy - Cena de Café III - Pintura, aquarela sobre cartão (Montevidéu, Uruguai), 1947
Escrever no século XXI
José Mário Silva
Olhemos à nossa volta. Os aparelhos que permitem ler e-books multiplicam-se, sofisticam-se, democratizam-se. Cada vez mais pessoas têm uma biblioteca ambulante no Kindle, no iPad, no iPhone. A tecnologia progride todos os dias. As novidades sucedem-se. Há umas semanas, por exemplo, foi lançado o Google eBooks, que promete revolucionar os nossos hábitos de leitura.
Em vez de ficarem alojados num determinado hardware, os ficheiros com livros passarão a existir virtualmente numa «nuvem» online, à qual acederemos em qualquer lado e em qualquer suporte físico, através de uma simples ligação à internet. Ou seja, um romance pode ser começado no computador lá de casa, ao pequeno-almoço; prosseguindo depois a leitura num tablet, durante a viagem de comboio até ao emprego; ou na fila do Multibanco, quando se aproveita os minutos de espera para despachar mais um capítulo no smartphone.
Neste sistema, a desmaterialização do livro é levada ao limite: o livro passa a existir só na tal «nuvem» abstracta, algures na rede de informação, como se fosse uma entidade supraterrena, um arquétipo que desce a pedido aos nossos vários ecrãs (depois de pago com o cartão de crédito, claro). Por enquanto, esta potencial mudança dos hábitos de leitura ainda não é acompanhada por quem produz os livros, pelo menos no nosso país. Para as editoras tradicionais, o mundo digital continua a representar uma ameaça, mais do que um desafio ou uma oportunidade. Mesmo os grandes grupos, que teriam meios para investir a sério nas novas tecnologias, avançam a medo, timidamente, receando apostar em modelos de negócio que ainda não passaram o teste do tempo. É sintomático que os debates sobre o futuro do livro se resumam quase sempre ao fantasma de um medo apocalíptico: será que o livro físico, em papel, com textura e cheiro a pó, vai desaparecer de vez? Provavelmente não. Provavelmente continuará a existir, porque há uma experiência de leitura associada aos livros-livros que é inimitável e para muita gente, sobretudo as gerações que aprenderam a ler com eles, insubstituível.
Contudo, mesmo quem prefere o papel tenderá a ler cada vez mais em suportes digitais. Já para não falar das crianças que nascem agora, na era do multitasking, e que previsivelmente pensarão dos livros-livros o mesmo que nós pensamos das calculadoras: «Mas afinal só fazem isto?» Pela minha parte, o que me preocupa não é o meio (se vamos ler na parede da sala, no tecto da cozinha ou no tablier do carro); é o conteúdo.
Que literatura o século XXI tem para nos oferecer e de que forma será capaz de se sintonizar com os tempos que vivemos. Os primeiros sinais, devo dizer, são preocupantes. Ao fim de uma década, contam-se pelos dedos os romances que são especificamente deste século, com narrativas que reflictam e incorporem o zeitgeist, dos novos paradigmas sociais à interconectividade global. A maior parte das ficções que se escrevem e publicam hoje podiam ter sido criadas em qualquer das décadas do século anterior – e muitas são meras variações, serôdias e gastas, dos romances oitocentistas. Enquanto outras artes souberam integrar a pulsação da criatividade contemporânea (veja-se os graffiti expostos em museus ou o uso dos samples na música, tanto popular como erudita), a literatura parece ter dificuldade em reinventar-se, em descobrir modos narrativos que estejam à altura da complexidade do mundo actual. É deprimente entrar numa livraria e perceber que 90% dos romances disponíveis obedecem a uma lógica linear, com os mesmos esquemas, mil vezes repetidos.
Em 2011, exige-se que certos géneros literários (sobretudo o romance) façam o necessário upgrade. David Shields, no seu brilhante ensaio-manifesto que mistura ideias próprias e alheias em 618 fragmentos (Reality Hunger, Hamish Hamilton), mostra como é vasto o campo das possibilidades ainda por explorar. Na verdade, espero que o romance do século XXI não seja escrito só no século XXII. Porque gostava mesmo de o ler – seja em papel, a partir da «nuvem» ou noutro sistema qualquer que ainda esteja por inventar.
José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel
Nenhum sarcasmo sobre a nossa ruína
Mariana Ianelli
Sabem de grandes virtudes os que sobrevivem a uma cidade devastada. Um senso de comunidade desperta à força de uma tragédia em larga escala. Da noite para o dia, todos são convocados a participar de um assombro mútuo, a recomeçar daqui para frente cúmplices de um mesmo trauma. “Formamos esta ligação com estranhos no luto”, disse numa entrevista a escritora Edwidge Danticat, que enterrou quatro parentes entre os duzentos mil mortos no terremoto do Haiti no ano passado. Mede-se com pudor a diferença entre as desgraças pessoais. A igualdade é mais profunda, incontornável, um sentimento de segunda pátria à qual agora se pertence independentemente da vontade. Não há lugar para a arrogância nem para o tédio. Sobretudo, não há lugar para o sarcasmo.
Mas existem os sobreviventes de outras terras devastadas, os que dizem sua miséria sem necessidade de uma palavra. São os que vivem em perpétua quaresma, os que peregrinam e respeitam à risca os fundamentos de uma regra como se fossem precursores de uma disciplina monástica. Não aprendem debruçados sobre os livros, aprendem com a instrução da violência, essa linguagem selvagem que treina o corpo a comunicar logo à primeira vista muitos anos de convívio com a fome. Pedem qualquer coisa e, na falta do mínimo, obrigam aqueles que se desculpam a engolir de novo sua culpa no meio da omissão generalizada. É como se a terra tremesse para alguns e para outros se aquietasse. Como se fosse possível isto, ao mesmo tempo a terra tremer e se aquietar, um despautério que é o nome da injustiça, o descampado das virtudes, a pobreza maior de alguém já não sentir nojo por tantas vezes ter cruzado as mãos nas costas quando as mãos de um outro precisavam.
O fato é que quando a arca do dilúvio sai de uma estampa bíblica e desce para a realidade, nem a descrença nem a ironia acrescentam alguma coisa a uma paisagem que foi reduzida a nada. Há de repente um compromisso, uma compreensão tácita de olhares, a semelhança revelada em milhares de mãos estendidas, um laço de sangue que o discurso da razão não pode fazer caber nos limites do racional. É esse instinto de fé, essa longa e sobre-humana tarefa da paciência, da diligência e da humildade que levanta pilares concretos para reviver dos escombros um homem e uma cidade.
Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve