Sábado, 30.04.11

Uma ideia incomum, um livro luxuoso

 

Imagens desveladas, embebidas de vida

 

 

 

 

 

 O fotógrafo Gilberto Perin, numa de suas jornadas solitárias, com sua máquina fotográfica peregrina, cruzando as estradas do Brasil teve uma ideia extraordinária. Ele pesquisou e localizou uma foto antiga, do início dos anos sessenta e constatou um fenômeno de presente impossibilidade.

 

A imagem, em preto e branco envelhecido, mostra dois jogadores de futebol célebres no passado, dentro de um vestiário, nus e ensaboados, com um sorriso levemente divertido, sendo abraçados por um torcedor em estado de êxtase, de risada aberta em euforia, com óculos de grandes lentes, vestido em terno e gravata, sob a água corrente de um chuveiro a encharcar os três protagonistas. Na fotografia sente-se a presença da quarta personagem, invisível, o fotógrafo que captou aquela imagem. No pensamento de Perin, hoje essa fotografia já não pode ser obtida, pela ausência de dois de seus atores naquele cenário: o torcedor infiltrado no vestiário e o fotógrafo, cuja presença está ali interditada por regras que determinam o comportamento dos jogadores e as rotinas de suas atividades.

 

Gilberto Perin realizou sua ideia. Fotografar apenas os bastidores dos estádios de futebol, os vestiários e seus segredos, os dramas ocultos, individuais e coletivos e expor os seus se-gredos. Nada do jogo, nenhuma notícia visual do campo de futebol, do palco do espetáculo. Apenas os segredos dos bastidores, desglamurizados. Resgatou os fantasmas, a aura, o sopro de vida, de esperança e efemeridade, a energia vital que reveste os espaços que também são os de uma paixão coletiva. O universo do futebol que ninguém mais vê, fora os próprios jogadores, os funcionários envolvidos e os dirigentes do clubes. Esse é o conjunto de imagens originais que fotógrafo Gilberto Perin capturou ao acompanhar o Grêmio Esportivo Brasil ao longo de meses, em jogos oficiais. Uma parte dele está presente neste livro.

 

 

 

 

 

 Para conquistar a sua invisibilidade naquele teatro, o fotógrafo propôs exatamente isso a seus fotografados, a sua transformação na impessoalidade da lente da câmera, a sua mimetização ao objeto, a sua não presença como ser humano, o seu não engajamento de amizade. Ele propôs ser apenas um instrumento silencioso que não lhes dirigiria a palavra, nem solicitaria uma pose ou um enquadramento especial. Propôs aos jogadores uma ausência e eles aceitaram o fato e o seu silêncio, convertendo-o em invisível dentro dos vestiários.

 

Dessa maneira Gilberto Perin pôde apreendê-los em sua essência, na profundidade de seus dramas, na dinâmica de sua atividade fora dos gramados. Praticamente não se vê a bola nesse jogo da bola, em que o que está presente é a intensidade da vida, suas estranhezas e seus desvelamentos. Nessas imagens permeiam as transcendências especulares em que os reflexos não são os das coisas e sim o que permanece intangível e secreto – como na fotografia do grito no espelho, na lassidão abandonada do cansaço pós-competição ou na passagem fantasmagórica de uma inesperada máscara ritual africana, de passado imemorial.

 

A letra que nos conta a verdadeira história das verdades que aqui vemos é de Aldyr Garcia Schlee, o grande escritor que além de torcedor apaixonado do Grêmio Esportivo Brasil, foi também um dia o criador do mítico uniforme da seleção brasileira de futebol. E é também a palavra reveladora das penumbras da alma humana, de João Gilberto Noll. O que vemos neste livro está antes do apito inicial e logo após o apito final, ou seja, sem a competição, sem a luta e sem o lúdico, porém intensamente embebido de vida.

 

 

 

 

 

publicado por ardotempo às 19:28 | Comentar | Adicionar

Uma nota de elegância

Quem é Leonard Cohen

 

Mariana Ianelli

 

Leonard Cohen era ainda um menino quando foi seduzido por essa mulher mítica, de sensualidade litúrgica, pestanas orvalhadas e perfume de vinhas floridas. Devia ter oito ou nove anos quando isso aconteceu, quando a poesia desabou sobre ele dentro de uma sinagoga em Montreal. Desde muito cedo pensou que podia ser escritor, mas nunca esteve completamente seguro disso. Foi assim que se mudou para a torre da Música, duvidando sempre. Foi assim que se viu atado a uma mesa, fadado a esperar por anos a fio até encontrar a palavra certa, o verso perfeito, porque essa era a sua religião.

 

Poeta, monge, cantor, amante são títulos que dizem pouco sobre Leonard Cohen. Melhor dizer que ele já abdicou de muitas coisas, que elegeu um país solitário e içou uma bandeira branca, que discutiu com a Eternidade e uma vez se deitou com uma mulher de ancas infantis em um quarto em Los Angeles. Que adormeceu a meio de um salmo, jejuou em segredo e foi um dos filhos da neve, esse mesmo filho que depois dos cinquenta teve saudades da mãe e desejou levá-la para a Índia e vê-la maravilhar-se com a cinza do Mar Arábico.

 

Leonard Cohen é esse homem pouco nostálgico, que não pode ser confortado nem guarda remorsos, o que teve o coração desfeito e ficou acordado a noite inteira pensando em alguma forma de beleza. É esse homem que afundou feito uma rocha, que raspou a cabeça, envergou uma túnica e agiu generosamente mesmo remoendo de ódio por dentro. É esse admirador das belas mulheres de Bombaim, o que espera que haja música no Paraíso, o pequeno judeu com sua Bíblia, que escreve sobre as sombras do Holocausto e sobre uma nuvem em forma de cogumelo, aquele que ama Joana d’Arc como uma de suas últimas mulheres.

 

Leonard Cohen é o peregrino que navega numa barca de asas decepadas, o que compõe um longo poema chamado Isaías, o apaixonado que, mesmo tendo esquecido metade da sua vida, ainda se lembra das coxas de uma mulher escapando das suas mãos como um cardume de peixes assustadiços. É esse homem que uma vez sentiu o seu corpo tão cheio de ternura que se dispôs a perdoar a toda gente. Esse poeta que escreveu durante anos poemas em uma mesa entre ervas daninhas e margaridas no fundo de uma casa em uma ilha do mar Egeu. Esse amante da lua que já tentou remover com seus óleos o feitiço do rival sobre a memória da namorada.

 

Leonard Cohen canta para o vento porque o vento é amigo do seu espírito de pluma. Ele sabe que os insetos são como os místicos por mal distinguirem entre vida e morte. Sabe que as possibilidades estão aí para serem derrotadas. Sabe também que o seu tempo está se esgotando e que nunca entenderá completamente esse vale de lágrimas. Não espera vitória nem honrarias. Conhece muito pouco do seu próprio nome. Um dia reuniu suas partes todas em torno de uma súplica, desejou morrer na cruz por um amigo, hesitou entre abandonar um amor e acompanhar os peregrinos, deixou sua túnica pendurada no gancho de uma velha cabana de um mosteiro e levou uma mulher até a beira do rio para amá-la, como qualquer outro homem teria feito.

 

Leonard Cohen está sentado debaixo de uma janela onde a luz é intensa. Está muito perto das coisas que perdeu e sabe que não terá de perdê-las novamente. É esse homem que melhor se sente quanto menos sabe quem é. Esse que agora sobe ao palco para cantar, no auge dos seus setenta e seis anos, com seu chapéu de feltro e seu terno impecável, provando que ainda existe neste mundo uma nota de elegância. Que ainda existe alguém que sente e pensa com elegância. Isso ele nos diz sem palavras, com um sorriso de doçura, apenas.

 

 

 

 

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

publicado por ardotempo às 16:55 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

99 anos de vida

Ernesto Sábato

 

O escritor argentino Ernesto Sábato morreu esta madrugada na sua casa na cidade de Santos Lugares, Argentina. Um dos últimos grandes autores da língua castelhana, que conquistou o prémio Cervantes em 1984, morreu aos 99 anos depois de dias com problemas de saúde.

 

A morte foi anunciada pela sua companheira Elvira González Fraga. “Há quinze dias que teve uma bronquite”, disse citada pelo diário espanhol “El País”. O escritor nasceu em 1911, em Rojas, Buenos Aires. A 24 de Junho ia completar o centenário. O escritor estava há muito tempo recluso em casa devido à visão cada vez mais comprometida, mas iria amanhã ser homenageado na Feira do Livro, pelo Instituto Cultural da província de Buenos Aires.

 

Sábato não iniciou a sua vida profissional na literatura. Tirou o doutoramento em física, e trabalhou posteriormente no Laboratório Curie, em Paris. É aqui, durante as décadas de 1930 e 1940, a sua vida muda. Abandona o comunismo depois de ter conhecimento, em 1935, das perseguições estalinistas aos dissidentes do regime soviético. Mais tarde, conhece os surrealistas da capital francesa e, influenciado por eles, larga o trabalho da ciência para em 1945, já na Argentina e no final da segunda guerra mundial, passar a dedicar-se exclusivamente à literatura.

 

O existencialismo está patente no seu trabalho, através da exploração da crise do homem no nosso tempo. Há também nas suas obras uma reflexão sobre a própria literatura. Publica em 1948 o romance “O Túnel”, traduzido para português, que terá continuidade na trilogia, “Sobre héroes y tumbas”, de 1961, que lhe deu o reconhecimento internacional e em 1974, o terceiro volume, “Abaddón el exterminador”, que o consagrou. Em 1984 ganha o prémio Cervantes. Recebe ainda os prémios Gabriela Mistral em 1983, e Menéndez Pelayo, em 1997. Em 2007, a Sociedade de Autores e Editores de Espanha propõe-no como candidato ao Prémio Nobel da Literatura, que não acontece.

 

Em 1985, presidiu à Comissão Nacional que publicou o relatório “Nunca Más” sobre a repressão dos governos militares na Argentina de 1976 a 1983. O último romance de Sábato, editado em 2004, chama-se “España en los diários de mi vejez”. Foi escrito depois das viagens que fez a Espanha em 2002, enquanto a Argentina estava presa a mais forte crise económica da sua História.

 

Publicado em Ciberescritas

publicado por ardotempo às 16:46 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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