Quinta-feira, 14.04.11

Catedral sem fim

Deste profundo abismo, senhor

 

António Lobo Antunes


 

Os livros que escrevi trazem o meu nome mas tenho dificuldade em encontrar os seus autores. Só aquele que estou a escrever é feito por mim, os restantes parece-me sempre terem sido outros homens que os compuseram. Posso reconhecer-me no que sou hoje em algumas expressões, alguns desenhos de frase, alguns parágrafos talvez, gosto deles mas afiguram-se-me passos já dados, e que não desejo repetir, na direção do meu trabalho de agora, que, de certo modo, os engloba a todos. Julgo que compõem um único texto, ou que são afluentes de um único texto ainda não completo, e que, por mil anos que viva, ficará irremediavelmente truncado. Queria deixar uma catedral de palavras e dou-me conta que a catedral não tem fim. Queria arredondar o edifício, fechá-lo, e dou-me conta, desolado, da impossibilidade desse fecho, dada a inevitável limitação da vida. Não morrerei satisfeito, morrerei com a dor de não ter tido tempo.

 

Construirei uma obra mais duradoira que o bronze, afirmava Horácio: isso julgo que consigo. Ou Ovídio: hei-de sobreviver ao tempo, ao ferro e ao fogo: isso acho que também consigo. Porém desejava mais do que isso: uma música sem fim, uma sinfonia total. Decerto o que digo é a frustração de todo o artista e o inevitável destino da condição humana. Goethe consolava-se declarando ser o facto de não chegar ao termo a nossa única grandeza. E não conheço, em tantos autores que li, um só para quem este problema não constitua o drama da sua existência. Não se alcança a praia por mais que se nade, não há fita de chegada para esta maratona angustiosa e exaltante.

 

Quando a doença me filou pelo pescoço, essa ansiedade envenenou-me as horas. E, quando a mão me soltou, a marca dos seus dedos imprimiu-se-me na pele. Um dia, o conjunto de átomos que me compõem desintegrar-se-á sem remédio, e eu a meio da página de que não redigirei a última linha. Tenho o maior respeito pelos criadores visto que acabam sempre por perder e não mereciam perder. E tenho pena de mim porque triunfarei na derrota: um tiro bem acertado deitar-me-á ao chão a meio do voo, e serei uma perdiz esfarrapada numa moita, que um cachorro abocanhará para a entregar ao dono, o mesmo dono que traz, pendurados do cinto, aqueles que me precederam e enganchará no mesmo cinto os que vierem depois, com idêntica indiferença. Lembro-me das terríveis anotações de Mozart nas margens do seu Requiem, não tenho tempo, não tenho tempo, idênticas às de Gallois, que levou toda a noite a escrever antes do duelo que, de manhã, o matou, tentando condensar em poucos momentos as assombrosas descobertas dos seus dezanove anos de vida. É isto justo? E a resposta vem sinistra: é. Quem escolhe, ou foi escolhido, para este tipo de destino, finda, inevitavelmente, assim. É muito rara a correspondência de pintores, ou escritores, ou compositores em que a tragédia de que falo não esteja constantemente presente, como uma chaga viva.

 

Piedade para nós que trabalhamos nas fronteiras do ilimitado e do futuro, suplicou Apollinaire e, de facto, somos dignos de piedade. Há uns verões, num mosteiro da Roménia, o bispo cantou, com os padres e os seminaristas, uma oração pelas almas eternas dos escritores falecidos. Era uma igreja belíssima, no alto de uma encosta batida pelo vento e pelos grandes bandos de corvos chegados da Ucrânia, cujos campos de trigo se viam muito ao longe, e o canto, de dezenas e dezenas de vozes, alargava-se pelas nogueiras à volta da igreja, profundo, omovente, cheio, em simultâneo, de tristeza e de esperança, enquanto eu pensava em Gogol, o grande génio da Ucrânia, que nos retratos se assemelhava a um corvo, botando no fogo, a soluçar, toda a segunda parte das suas extraordinárias "Almas Mortas" e, em seguida, deitando-se na cama, recusando comer, até à agonia poucos dias depois: a literatura também tem os seus mártires, e nunca esquecerei a comoção que senti nessa igreja e a certeza que Gogol voava também, com os restantes corvos, em torno da colina, sobre as nogueiras em flor. Apollinaire, ainda: abram-me esta porta à qual bato a chorar, num verso que poderia ter sido composto por qualquer criador e que está sempre presente em mim diante de todas as obras de Arte. Abram-me esta porta à qual bato a chorar, é o que oiço, desde os poemas babilónicos, de há doze mil anos, até à mínima palavra de hoje. E quando Maiakovski explicou

 

(desculpem tanta referência)

 

comigo a Anatomia enlouqueceu: sou todo coração, estava a falar por nós.

 

Conheci homens políticos importantes, desportistas excepcionais, criaturas de extrema bondade, santos anónimos de alminhas puras mas jamais me emocionei tanto como perante os criadores, não pela sua capacidade de nos oferecerem a beleza na palma da mão estendida, juntamente com a dignificação do Homem, mas pelo enorme padecimento inerente a esta capacidade, e a certeza pavorosa do seu trabalho estar destinado a ficar incompleto.

 

Vem-me à cabeça Tolstoi moribundo, numa estação de caminho de ferro, percorrendo o cobertor com os dedos no gesto de escrever. É dessa maneira que gostaria de me ir embora: a escrever, com os dedos incertos, numa dobra de lençol, na tentativa falhada de completar o meu De Profundis necessariamente fragmentário. Oxalá, numa igreja da Roménia, cercada de corvos e nogueiras, um único seminarista, porque um único seminarista me chega, reze cantando pela alma eterna de mais um pobre escritor falecido.


 

António Lobo Antunes

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publicado por ardotempo às 22:46 | Comentar | Adicionar

Arquitetura com grandeza

Beleza e praticidade

 

O Aeroporto de Carrasco em Montevidéu é uma obra arquitetônica de espantosa beleza estética e proporciona grande conforto e eficácia a seus usuários.

É de autoria do arquiteto uruguaio Rafael Viñoly.

 

 

 

 

 

Custou a mesma coisa que a horrenda caixa de sapatos, o tedioso bloco quadrado de concreto, edulcorado com inúteis enfeites de vidrilhos azuis, o fracassado Aeroporto Salgado Filho, de Porto Alegre, inenarrável lição de erros de como não deve ser um aeroporto contemporâneo.

 

Aeroporto malconcebido esteticamente, ultrapassado e dramaticamente obsoleto em seus serviços, sorvedouro de recursos públicos e que submete os seus usuários a constantes desconfortos pelas suas exíguas instalações, carência de locais de estacionamento, ausência de serviços públicos de transporte e incríveis congestionamentos de passageiros, o que exigiu a reativação da múmia do terminal abandonado ao seu lado para dar auxílio de vazão ao projeto mal planejado.

 

É triste mas é o que nos toca nessa trilha de fracassos de administrações sem grandeza, sem talentos e sem espírito público. A beleza que se vê em Montevidéu poderia estar facilmente em Porto Alegre, mas preferimos escolher  sempre o muito ruim e o mais feio por conveniências de amizades e de compromissos políticos, em detrimento ao mérito e ao talento. Gastando o mesmo valor por algo que vale muito menos, em qualidade de acabamento, de espaço e de tecnologia.

 

 

 

 

O tempo está passando dia após dia e nada se faz pelos compromissos sociais assumidos para Copa do Mundo de Futebol de 2014.

publicado por ardotempo às 21:07 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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