Sábado, 02.04.11

O que se escreve, onde se lê

Escrever no século XXI

 

José Mário Silva

 

 

 

 

 

Olhemos à nossa volta. Os aparelhos que permitem ler e-books multiplicam-se, sofisticam-se, democratizam-se. Cada vez mais pessoas têm uma biblioteca ambulante no Kindle, no iPad, no iPhone. A tecnologia progride todos os dias. As novidades sucedem-se. Há umas semanas, por exemplo, foi lançado o Google eBooks, que promete revolucionar os nossos hábitos de leitura.

 

Em vez de ficarem alojados num determinado hardware, os ficheiros com livros passarão a existir virtualmente numa «nuvem» online, à qual acederemos em qualquer lado e em qualquer suporte físico, através de uma simples ligação à internet. Ou seja, um romance pode ser começado no computador lá de casa, ao pequeno-almoço; prosseguindo depois a leitura num tablet, durante a viagem de comboio até ao emprego; ou na fila do Multibanco, quando se aproveita os minutos de espera para despachar mais um capítulo no smartphone.

 

Neste sistema, a desmaterialização do livro é levada ao limite: o livro passa a existir só na tal «nuvem» abstracta, algures na rede de informação, como se fosse uma entidade supraterrena, um arquétipo que desce a pedido aos nossos vários ecrãs (depois de pago com o cartão de crédito, claro). Por enquanto, esta potencial mudança dos hábitos de leitura ainda não é acompanhada por quem produz os livros, pelo menos no nosso país. Para as editoras tradicionais, o mundo digital continua a representar uma ameaça, mais do que um desafio ou uma oportunidade. Mesmo os grandes grupos, que teriam meios para investir a sério nas novas tecnologias, avançam a medo, timidamente, receando apostar em modelos de negócio que ainda não passaram o teste do tempo. É sintomático que os debates sobre o futuro do livro se resumam quase sempre ao fantasma de um medo apocalíptico: será que o livro físico, em papel, com textura e cheiro a pó, vai desaparecer de vez? Provavelmente não. Provavelmente continuará a existir, porque há uma experiência de leitura associada aos livros-livros que é inimitável e para muita gente, sobretudo as gerações que aprenderam a ler com eles, insubstituível.

 

Contudo, mesmo quem prefere o papel tenderá a ler cada vez mais em suportes digitais. Já para não falar das crianças que nascem agora, na era do multitasking, e que previsivelmente pensarão dos livros-livros o mesmo que nós pensamos das calculadoras: «Mas afinal só fazem isto?» Pela minha parte, o que me preocupa não é o meio (se vamos ler na parede da sala, no tecto da cozinha ou no tablier do carro); é o conteúdo.

 

Que literatura o século XXI tem para nos oferecer e de que forma será capaz de se sintonizar com os tempos que vivemos. Os primeiros sinais, devo dizer, são preocupantes. Ao fim de uma década, contam-se pelos dedos os romances que são especificamente deste século, com narrativas que reflictam e incorporem o zeitgeist, dos novos paradigmas sociais à interconectividade global. A maior parte das ficções que se escrevem e publicam hoje podiam ter sido criadas em qualquer das décadas do século anterior – e muitas são meras variações, serôdias e gastas, dos romances oitocentistas. Enquanto outras artes souberam integrar a pulsação da criatividade contemporânea (veja-se os graffiti expostos em museus ou o uso dos samples na música, tanto popular como erudita), a literatura parece ter dificuldade em reinventar-se, em descobrir modos narrativos que estejam à altura da complexidade do mundo actual. É deprimente entrar numa livraria e perceber que 90% dos romances disponíveis obedecem a uma lógica linear, com os mesmos esquemas, mil vezes repetidos.

 

Em 2011, exige-se que certos géneros literários (sobretudo o romance) façam o necessário upgrade. David Shields, no seu brilhante ensaio-manifesto que mistura ideias próprias e alheias em 618 fragmentos (Reality Hunger, Hamish Hamilton), mostra como é vasto o campo das possibilidades ainda por explorar. Na verdade, espero que o romance do século XXI não seja escrito só no século XXII. Porque gostava mesmo de o ler – seja em papel, a partir da «nuvem» ou noutro sistema qualquer que ainda esteja por inventar.

 

 

José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel

publicado por ardotempo às 12:29 | Comentar | Adicionar

Reviver dos escombros

 

Nenhum sarcasmo sobre a nossa ruína

 

Mariana Ianelli

 

Sabem de grandes virtudes os que sobrevivem a uma cidade devastada. Um senso de comunidade desperta à força de uma tragédia em larga escala. Da noite para o dia, todos são convocados a participar de um assombro mútuo, a recomeçar daqui para frente cúmplices de um mesmo trauma. “Formamos esta ligação com estranhos no luto”, disse numa entrevista a escritora Edwidge Danticat, que enterrou quatro parentes entre os duzentos mil mortos no terremoto do Haiti no ano passado. Mede-se com pudor a diferença entre as desgraças pessoais. A igualdade é mais profunda, incontornável, um sentimento de segunda pátria à qual agora se pertence independentemente da vontade. Não há lugar para a arrogância nem para o tédio. Sobretudo, não há lugar para o sarcasmo.

 

Mas existem os sobreviventes de outras terras devastadas, os que dizem sua miséria sem necessidade de uma palavra. São os que vivem em perpétua quaresma, os que peregrinam e respeitam à risca os fundamentos de uma regra como se fossem precursores de uma disciplina monástica. Não aprendem debruçados sobre os livros, aprendem com a instrução da violência, essa linguagem selvagem que treina o corpo a comunicar logo à primeira vista muitos anos de convívio com a fome. Pedem qualquer coisa e, na falta do mínimo, obrigam aqueles que se desculpam a engolir de novo sua culpa no meio da omissão generalizada. É como se a terra tremesse para alguns e para outros se aquietasse. Como se fosse possível isto, ao mesmo tempo a terra tremer e se aquietar, um despautério que é o nome da injustiça, o descampado das virtudes, a pobreza maior de alguém já não sentir nojo por tantas vezes ter cruzado as mãos nas costas quando as mãos de um outro precisavam.

 

O fato é que quando a arca do dilúvio sai de uma estampa bíblica e desce para a realidade, nem a descrença nem a ironia acrescentam alguma coisa a uma paisagem que foi reduzida a nada. Há de repente um compromisso, uma compreensão tácita de olhares, a semelhança revelada em milhares de mãos estendidas, um laço de sangue que o discurso da razão não pode fazer caber nos limites do racional. É esse instinto de fé, essa longa e sobre-humana tarefa da paciência, da diligência e da humildade que levanta pilares concretos para reviver dos escombros um homem e uma cidade.

 

 

 

 

 Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

publicado por ardotempo às 12:10 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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