Segunda-feira, 21.03.11

Ferreira Gullar


Extravio


 

Onde começo, onde acabo,

se o que está fora está dentro

como num círculo cuja periferia é o centro?

 

Estou disperso nas coisas,

nas pessoas, nas gavetas:

de repente encontro ali partes de mim: risos, vértebras.

 

Estou desfeito nas nuvens:

vejo do alto a cidade e em cada esquina

um menino, que sou eu mesmo, a chamar-me.

 

Extraviei-me no tempo.

Onde estarão meus pedaços?

Muito se foi com os amigos que já não ouvem nem falam.

 

Estou disperso nos vivos, em seu corpo,

em seu olfato, onde durmo feito aroma

ou voz que também não fala.

 

Ah, ser somente o presente:

esta manhã, esta sala.

 

 

 

Ferreira Gullar

 

Dia Mundial da Poesia 21 de março

publicado por ardotempo às 22:38 | Comentar | Adicionar

Eduardo Pitta

 

Nenhum de nós passeia impune

pelos retratos: fazem-nos doer

os recessos da memória.

 

Deles saltam, por vezes, sustos,

primeiras noites, secreta

loucura, lábios que foram.


Interditam-nos sempre.

Trepam-nos pelo torpor

mais desprevenido, subsistem.

 

A sua perenidade é volátil

e cheia de venenosos ardis.

Um sopro no acetato.

 

Distintos, os seus contornos

não são nunca

os que supomos.

 


Eduardo Pitta


Dia Mundial da Poesia 21 de março

publicado por ardotempo às 19:18 | Comentar | Adicionar

Carlos Drummond de Andrade

 

 

A bunda, que engraçada

 

 

A bunda, que engraçada.

Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

Não lhe importa o que vai pela frente do corpo.

A bunda basta-se.

Existe algo mais? Talvez os seios.

Ora – murmura a bunda – esses garotos

ainda lhes falta muito que estudar.


A bunda são duas luas gêmeas em rotundo meneio.

Anda por si na cadência mimosa,

no milagre de ser duas em uma, plenamente.

A bunda se diverte por conta própria.

E ama. Na cama agita-se.

Montanhas avolumam-se, descem.

Ondas batendo numa praia infinita.

 

Lá vai sorrindo a bunda.

Vai feliz na carícia de ser e balançar.

Esferas harmoniosas sobre o caos.

 

A bunda é a bunda,

redunda.

 

 

Carlos Drummond de Andrade

 

Dia Mundial da Poesia 21 de março

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publicado por ardotempo às 19:02 | Comentar | Adicionar

Wislawa Szymborska


Alguns gostam de poesia

 

 

Alguns -

quer dizer que nem todos.

Nem sequer a maior parte mas sim uma minoria.

Não contando as escolas onde se tem que,

e quanto a poetas,

dessas pessoas, em mil haverá duas.

 

Gostam -

mas gosta-se também de sopa de esparguete,

dos galanteios e da cor azul,

do velho cachecol,

brindar à nossa gente,

fazer festas ao cão.

 

De poesia -

mas que é isso a poesia?

Muitas e vacilantes respostas

já foram dadas à questão.

Por mim não sei e insisto que não sei

e esta insistência é corrimão que me salva.

 


Wislawa Szymborska


Dia Mundial da Poesia 21 de março

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publicado por ardotempo às 16:32 | Comentar | Adicionar

Jorge Luis Borges


Un lobo

 

 

Furtivo y gris en la penumbra última,

va dejando sus rastros en la margen

de este río sin nombre que ha saciado

la sed de su garganta y cuyas aguas

no repiten estrellas. Esta noche,

el lobo es una sombra que está sola

y que busca a la hembra y siente frío.

Es el último lobo de Inglaterra.

Odín y Thor lo saben. En su alta

casa de piedra un rey ha decidido

acabar con los lobos. Ya forjado

ha sido el fuerte hierro de tu muerte.

Lobo sajón, has engendrado en vano.

No basta ser cruel. Eres el último.

Mil años pasarán y un hombre viejo

te soñará en América. De nada

puede servirte ese futuro sueño.

Hoy te cercan los hombres que siguieron

por la selva los rastros que dejaste,

furtivo y gris en la penumbra última.


 

Jorge Luis Borges


Dia Mundial da Poesia 21 de março

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publicado por ardotempo às 16:10 | Comentar | Adicionar

Mariana Ianelli


Flor do ofício

 

 

Emboscada no silêncio

Eu preparo a rosa inútil

Com as horas que salvei

Do desperdício.

 

Feito um verme

Decompondo ceticismo

Em força indômita,

Preparo e deito essa flor

No teu caminho

Para quando o teu corpo

(Tão quebrantável quanto o meu)

For sozinho pastorear

Seus demônios no vazio.

 

Quase dois mil anos

Guardado no deserto

Um salmo esperou

Para recobrar sua melodia -

E eu não te esperaria?

 

 

Mariana Ianelli

 

Dia Mundial da Poesia 21 de março

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publicado por ardotempo às 14:36 | Comentar | Adicionar

José Mário Silva

 

insones

 

 

Fumam à janela,

o vento frio desfaz o fumo,

os dedos tremem.

Não sabem uns dos outros,

espalhados pela cidade,

mas procuram as luzes

ainda acesas noutras casas.

Noite dentro,

o silêncio dos que dormem

é uma afronta, desleixo pueril

de quem consegue

ignorar as facadas do tempo,

a areia entre os dedos,

o sobressalto.

 

 

José Mário Silva

 

Dia Mundial da Poesia 21 de março

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publicado por ardotempo às 14:24 | Comentar | Adicionar

Sophia de Mello Breyner Andresen

 

A casa térrea


 

Que a arte não se torne para ti a compensação daquilo que não

                                                                     [soubeste ser

que não seja transferência nem refúgio

Nem deixes que o poema te adie ou divida: mas que seja

A verdade do teu inteiro estar terrestre


Então construirás a tua casa na planície costeira

A meia distância entre montanha e mar

Construirás - como se diz - a casa térrea -

Construirás a partir do fundamento


 


Sophia de Mello Breyner Andresen

 

Dia Mundial da Poesia 21 de março

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publicado por ardotempo às 14:13 | Comentar | Adicionar

Hilda Hilst


(VI)  Poema aos homens do nosso tempo

 

 

Tudo vive em mim. Tudo se entranha

Na minha tumultuada vida. E por isso

Não te enganas, homem, meu irmão,

Quando dizes na noite que só a mim me vejo.

Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam

Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,

O olhar aguado, todos eles em mim,

Porque o poeta é irmão do escondido das gentes

Descobre além da aparência, é antes de tudo

LIVRE, e por isso conhece. Quando o poeta fala

Fala do seu quarto, não fala do palanque,

Não está no comício, não deseja riqueza

Não barganha, sabe que o ouro é sangue

Tem olhos no espírito do homem

No possível infinito. Sabe de cada um

A própria fome. E porque é assim, eu te peço:

Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta

O homem está vivo.


 

Hilda Hilst

 

Dia Mundial da Poesia 21 de março

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publicado por ardotempo às 13:54 | Comentar | Adicionar

Pedro Gonzaga

o lado bom

 

nunca entendi a necessidade

que muitos poetas – assim ditos

têm de gritar seus versos

como maus atores que tentam

convencer o auditório vazio

da grandeza de um texto

em que já não podem crer

 

nunca entendi a pressa

que muitos poetas – assim ditos

têm em lançar seus versos

compostos de trocadilhos

que melhor estariam

para vender salsicha

ou carros usados

no suplemento dominical

 

se for pelo sexo

mais fácil entregar-se ao comércio

se for pelo prestígio por favor,

não me façam rir

drummond e bandeira

que de fato eram grandes

publicavam do próprio bolso

 

talvez eu esteja errado

e poesia não se faça à sotto voce

talvez a solução passe

por uma boa assessoria de imprensa

por uma foto retocada

com ecos de baudelaire e byron

conseguidos a custo com a luz certa

e um fotógrafo de moda

que saiba valorizar

nosso lado bom.

 

 

Pedro Gonzaga

 

Dia Mundial da Poesia 21 de março

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publicado por ardotempo às 13:42 | Comentar | Adicionar

Dia Mundial da Poesia

Aula de Poesia

 

Estou lendo o livro AULA DE POESIA, de Eduardo Pitta. O livro é rico, rigoroso, abrangente e elucidativo sobre os caminhos da poesia, seus livros e os poetas do século XX, em língua portuguesa (Brasil, incluído) - Quetzal Editores . Será urgente e fundamental que se faça um edição deste excelente livro no Brasil.

 

 

 

 

 

Hoje, 21 de março, Dia Mundial da Poesia, o blog ardotempo estará dedicado a homenagear os poetas e publicar poesia.

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publicado por ardotempo às 12:28 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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