Domingo, 20.03.11

Sol lá fora

 

Tudo o que cresce precisa de muito tempo para crescer

 

António Lobo Antunes

 

 

 

 

E começo a ter o livro. Quer dizer, sinto-me pronto a escutar as vozes que guiam a mão, já consegui despir-me interiormente de tudo o que não é ele, respiro palavras, como palavras, deito-me com palavras, acordo com palavras, os murmúrios interiores não cessam, vou começar. É apenas disso que necessito para começar: não ter mais nada dentro a não ser a obra e o que existe à minha volta se esbater até deixar de existir. Julgo que, por fora, não se nota, tenho a certeza que, por fora, não se nota. E o que vem até mim ou entra no livro ou é rejeitado.

 

Cheguei de França, tenho de ir a Espanha e mal volte de Espanha principio. Ao fim de dois ou três meses o material torna-se sólido, ou antes um núcleo sólido a que se vão acrescentando filamentos, cicios, murmúrios, pedacinhos de coisas, parágrafos, afinal inúteis, que se desprendem, permanecem um momento a vogarem, somem-se, um após outro, além das fronteiras que me limitam.

 

Ou não bem limitam, me cercam e mudam, porque o país que sou se altera, encolhe, cresce, anexa estranhas regiões desconhecidas, cujo idioma tento entender a pouco e pouco. Meu Deus, existem dúzias de línguas diferentes cá dentro, para as quais vou construindo uma gramática, de início rudimentar e depois progressivamente mais complexa.

 

Quem não inventa uma língua junta linhas, não escreve.

 

Acabo de chegar de Espanha nem há uma hora sequer, comi com alguns dos escritores de que mais gosto, Juan Marsé, Ana Maria Moix, o grande crítico Ignacio Echevarría. Juan e Ignacio acabaram agora cada qual o seu trabalho: um belíssimo romance chamado Caligrafia dos Sonhos e uma antologia de textos de Rafael Sánchez Ferlosio, na minha opinião a melhor mão viva de Espanha, julgo que nunca traduzido em Portugal (porquê?) que deu a mais perfeita definição de um escritor ao referir-se à primeira (acho que primeira) mulher, a também escritora Carmén Martin Gaíte:

 

- Carmén é uma viúva que tem o morto em casa.

 

Acabo de chegar de Espanha (Sánchez Ferlosio é inclassificável) revejo os poucos apontamentos que juntei para o livro e decido:

 

vou iniciar isto no dia 25 de fevereiro,

 

em homenagem ao aniversário de um amigo muito querido. Vai ser um texto longo, apetece-me segregar um texto longo com a mulher que me apareceu e anda cheínha de vontade de começar a abrir a boca.

 

Conserva-a fechada até ao dia vinte e cinco se faz favor.

 

No caso da pessoa que está sentada no escuro à minha espera consentir, publica-se lá para o fim de 2013. Carmén é uma viúva que tem o morto em casa. Anita Moix está com um romance. Andam todos a trabalhar menos eu. As traduções não param de me chegar a casa. E eu sem fazer nada, raios partam, adianto estas crónicas para ter espaço, mas as crónicas são um galope diferente, que me seca a cadência do livro e me atrapalha o ritmo.

 

O segredo de escrever é ser estrábico, ter um olho na bola e outro nos jogadores. Em miúdo espantava-me que os olhos dos lagartos fossem independentes um do outro, mas quando comecei nesta vida descobri-me lagarto numa pedra, à coca, muito quietinho, rodando as pupilas para sítios diferentes, guloso da mosca de uma frase.

 

Descobri também que o passado é a coisa mais imprevisível do mundo, não pára de se transformar.

 

Lá vêm os mortos, diferentíssimos

 

- Olá, rapaz, que tal ficamos assim?

 

e eu a demorar a reconhecê-los, surpreendido, a escutar

 

- Sou este, sou aquele a olhar melhor, a concordar

 

- De facto e a ter de passar a existência a limpo para a adaptar àquilo. Terei mesmo o livro, será este?

Eu para Juan Marsé

 

- Será o livro?

 

ele

 

- Daqui a dois anos sabes e daqui a dois anos sei, mas daqui a dois anos o que será de mim?

 

Gosto de Barcelona com sol, gosto de falar de bola com os choferes de táxi. Carmén é uma viúva, etc. Jornal atrás de jornal, televisões, conferências, a maneira das espanholas cruzarem a perna até ficarem parecidas com chamas de vela e eu a acertar as pupilas de lagarto para as focar melhor.

 

Não tive tempo para estar com o pintor Albert Cruells que sorri com o corpo todo. E, atrás das casas, escondido, o mar. Tão escondido como o hotel, demasiado à vista, com cujo endereço nunca atino. A fotógrafa colombiana, arrastando botas de soldado de um exército perdido, que não pára de me tirar retratos.

 

Mostra-me fotografias de escritores, coisa que nunca me interessou (quero lá saber como são ou eram as caras deles) e eu a fingir que vejo para não parecer mal educado. E um caderno inteiro com imagens de um romancista que não me agrada por aí além, desde pequeno, nas suas diversas metamorfoses a caminho do insecto perfeito, de óculos escuros e gola para cima, severo, profundo. Encontrei-o em Paris há uns meses, grave e trágico. Acho que nunca o vi sorrir, sempre a tomar pastilhas, esquisitíssimo.

 

O jardim zoológico dos literatos e afins deixa-me sempre de boca aberta. Com o tempo conheço-os a todos, e aqueles que me interessam são pouquíssimos. Hoje, doze de fevereiro, faltam treze dias para o livro.

 

O que farei até lá?

 

Ler, com ganas de começar logo a corrigir o que leio. Agora, de novo em casa, posso fechar-me outra vez, não ver ninguém, não ter opiniões, não dar respostas, não dizer - Obrigado não fingir que me interesso enquanto penso noutra coisa. Apetece-me estar a sós comigo, na minha cadeira, em paz. De vez em quando um morto

 

- Lembras-te de mim?

 

e não sei se me lembro de ti. Lembro-me de hoje ter acordado a meio da noite a pensar que era feliz, e de voltar a adormecer agarrado a um brinquedo que não havia. Devo ser feliz porque há sol lá fora. Em havendo sol lá fora não preciso de mais nada. Até os móveis me parecem contentes.

 

Como se acaba esta crónica?

 

É simples: põe-se um ponto final. Aqui está ele: .

 


António Lobo Antunes

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publicado por ardotempo às 21:10 | Comentar | Adicionar

O futebol que ninguém mais vê

Imagens desveladas, embebidas de vida

 

O fotógrafo Gilberto Perin, numa de suas jornadas solitárias, com sua máquina fotográfica peregrina, cruzando as estradas do Brasil teve uma ideia extraordinária. Ele pesquisou e localizou uma foto antiga, do início dos anos sessenta e constatou um fenômeno de presente impossibilidade. A imagem, em preto e branco envelhecido, mostra dois jogadores de futebol célebres no passado, dentro de um vestiário, nus e ensaboados, com um sorriso levemente divertido, sendo abraçados por um torcedor em estado de êxtase, de risada aberta em euforia, com óculos de grandes lentes, vestido em terno e gravata, sob a água corrente de um chuveiro a encharcar os três protagonistas.

 

Na fotografia sente-se a presença da quarta personagem, invisível, o fotógrafo que captou aquela imagem. No pensamento de Perin, hoje essa fotografia já não pode ser obtida, pela ausência de dois de seus atores naquele cenário: o torcedor infiltrado no vestiário e o fotógrafo, cuja presença está ali interditada por regras que determinam o comportamento dos jogadores e as rotinas de suas atividades.

 

Gilberto Perin realizou sua ideia. Fotografar apenas os bastidores dos estádios de futebol, os vestiários e seus segredos, os dramas ocultos, individuais e coletivos e expor os seus segredos. Nada do jogo, nenhuma notícia visual do campo de futebol, do palco do espetáculo. Apenas os segredos dos bastidores, desglamurizados. Resgatou os fantasmas, a aura, o sopro de vida, de esperança e efemeridade, a energia vital que reveste os espaços que também são os de uma paixão coletiva.

 

O universo do futebol que ninguém mais vê, fora os próprios jogadores, os funcionários envolvidos e os dirigentes do clubes. Esse é o conjunto de imagens originais que fotógrafo Gilberto Perin capturou ao acompanhar o Grêmio Esportivo Brasil ao longo de meses, em jogos oficiais. Uma parte dele está presente neste livro.

 

 

 

 

Para conquistar a sua invisibilidade naquele teatro, o fotógrafo propôs exatamente isso a seus fotografados, a sua transformação na impessoalidade da lente da câmera, a sua mimetização ao objeto, a sua não presença como ser humano, o seu não engajamento de amizade. Ele propôs ser apenas um instrumento silencioso que não lhes dirigiria a palavra, nem solicitaria uma pose ou um enquadramento especial. Propôs aos jogadores uma ausência e eles aceitaram o fato e o seu silêncio, convertendo-o em invisível dentro dos vestiários.

 

Dessa maneira Gilberto Perin pôde apreendê-los em sua essência, na profundidade de seus dramas, na dinâmica de sua atividade fora dos gramados. Praticamente não se vê a bola nesse jogo da bola, em que o que está presente é a intensidade da vida, suas estranhezas e seus desvelamentos. Nessas imagens permeiam as transcendências especulares em que os reflexos não são os das coisas e sim o que permanece intangível e secreto – como na fotografia do grito no espelho, na lassidão abandonada do cansaço pós-competição ou na passagem fantasmagórica de uma inesperada máscara ritual africana, de passado imemorial.

 

A letra que nos conta a verdadeira história das verdades que aqui vemos é de Aldyr Garcia Schlee, o grande escritor que, além de torcedor apaixonado do Grêmio Esportivo Brasil, foi também um dia o criador do mítico uniforme da seleção brasileira de futebol. E é também a palavra reveladora das penumbras da alma humana, de João Gilberto Noll.

 

O que vemos neste livro está antes do apito inicial e logo após o apito final, ou seja, sem a competição, sem a luta e sem o lúdico, porém intensamente embebido de vida.

 


 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Projeto BRASIL - Camisa Brasileira - 2011

GILBERTO PERIN

ALDYR GARCIA SCHLEE

JOÃO GILBERTO NOLL

Livro de Arte de Fotografias, Textos de Autoria e Exposição de Fotografias

 

ISBN nº 978-85-62984-08-2

 

Copyright © 2011 Gilberto Perin - Fotografias

© 2011 Aldyr Garcia Schlee

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publicado por ardotempo às 13:39 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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