Sábado, 19.03.11

Poemas de Mia Couto

 

O bairro da minha infância

 

Mia Couto

 

Não são as criaturas que morrem.

É o inverso:

só morrem as coisas.


As criaturas não morrem

porque a si mesmas

se fazem.

E quem de si nasce

à eternidade se condena.

 

Uma poeira de túmulo

me sufoca o passado

sempre que visito

o meu velho bairro.

 

A casa morreu

no lugar onde nasci:

a minha infância

não tem mais onde dormir.

 

Mas eis que,

de um qualquer pátio,

me chegam silvestres

risos de meninos brincando.

 

Riem e soletram

as mesmas folias

com que já fui

soberano de castelos e quimeras.

 

Volto a tocar a parede fria

e sinto em mim o pulso

de quem para sempre vive.

A morte é o impossível abraço da água.

 

 

Frutos

 

Mia Couto

 

A bondade da mangueira

não é o fruto.

É a sombra.

A térrea, quotidiana,

abnegada sombra:

no inverso do suor colhida,

no avesso da mão guardada.

 

Há a estação dos frutos.

Ninguém celebra a estação das sombras.

Assim, o amor e a paixão:

um, fruto; outro, sombra.

 

A suave e cruel mordedura

do fruto em tua boca:

mais do que entrar em ti

eu quero ser tu.

 

O que em mim espanta:

não a obra do tempo

mas a viagem do Sol

na seiva da árvore

 

A arte da mangueira

é a veste de sombra

embrulhando o seu ventre solar.

 

Para o homem vale a polpa.

Para a terra só a semente conta.

 

 

Números


Mia Couto


Desiguais as contas:

para cada anjo, dois demónios.

Para um só Sol, quatro Luas.

Para a tua boca, todas as vidas.

Dar vida aos mortos

é obra para infinitos deuses.

Ressuscitar um vivo:

um só amor cumpre o milagre.


 

Tristeza

 

Mia Couto

 

A minha tristeza

não é a do lavrador sem terra.

A minha tristeza

é a do astrónomo cego.

 

 


[in Tradutor de Chuvas, Caminho, 2011]


Publicado por José Mário Silva no blog Bibliotecário de Babel

Imagem: Fábrica da Brahma - Bairro do Paraíso - Pintura de Arcangelo Ianelli - Óleo sobre tela, 1957 (São Paulo SP Brasil)

publicado por ardotempo às 14:56 | Comentar | Adicionar

Moto magistral

Cão aerodinâmico

 

 

 

 

Giacomo Favretto - Bida (O cão, como o melhor amigo da moto) - Fotografia (São Paulo SP Brasil), 2011

publicado por ardotempo às 12:12 | Comentar | Adicionar

Mérito literário no lugar do lobby?

O novo Jabuti

 

A Câmara Brasileira do Livro anuncia nos próximos dias aquela que deve ser a maior reformulação na história do cinquentenário Jabuti. Alvo de críticas no final do ano passado, o prêmio foi questionado publicamente pelo grupo Record, um dos maiores do país, e fez surgir a jocosa campanha "Chico Buarque, devolva o Jabuti", que teve como pivô o vencedor do grande prêmio de ficção. "São muitas as mudanças e estou satisfeita com o resultado", afirma Karine Pansa, presidente recém-empossada da CBL.

 

Entre as marcas de sua gestão, destacam-se o alinhamento  com a ministra da Cultura, Ana de Holanda, no debate sobre a lei de direitos autorais e a intenção de aumentar a oferta de cursos sobre livro digital.  

 

Publicado na Folha de São Paulo

publicado por ardotempo às 11:49 | Comentar | Adicionar

Escondidos atrás da arte

Palimpsestos

 

Mariana Ianelli

 

Uma grande mulher por trás de um grande homem foi o que descobriu recentemente um restaurador do Museu de Belas Artes de Astúrias, na cidade espanhola de Oviedo. Trata-se de uma figura feminina pintada sob El Retrato de Jovellanos en el arenal de San Lorenzo, de Francisco Goya. Embora a identidade da mulher seja desconhecida, a radiografia de seu porte e seu vestido dá pistas de alguém pertencente à nobreza.

 

Gaspar Melchor de Jovellanos, o homem retratado, cujo braço apoiado à cintura enlaça invisivelmente o braço da jovem escondida atrás dele, foi um personagem eminente de sua época, acadêmico, jurista, filósofo, ávido leitor dos clássicos latinos, ele mesmo autor de vários poemas, peças teatrais e romances.

 

 

Impossível resumir a atuação de Jovellanos nos assuntos políticos, econômicos e sociais que rodearam sua intensa jornada de vida pública. Membro da Academia da História, da Sociedade Econômica de Madri e da Academia de Cânones, Liturgia, História e Disciplina Eclesiástica, além de ministro da Graça e da Justiça, foi um homem coerente com sua ideia de que só falta tempo a quem não sabe aproveitá-lo. Seu espírito audacioso e de embaraçosas virtudes para a época lhe rendeu, além de amigos ilustres, como Goya, inimigos digníssimos, como a rainha María Luisa.

 

¡Oh vilipendio! ¡Oh siglo!/

Faltó el apoyo de las leyes.

Todo/ se precipita: el más humilde cieno/

fermenta y brota espíritus altivos,/

que hasta los tronos del Olimpo se alzan.

 

Versos como estes ilustram bem não só a postura de Jovellanos contra uma aristocracia degenerada como fazem presumir os motivos que o levaram para a prisão em Palma de Mallorca em 1801.

 

Jovellanos era também colecionador de livros e quadros. Corre que suas ideias exerceram grande influência sobre Goya, que chegou a usar o verso de uma de suas sátiras no segundo Capricho.

 

Quinze anos depois de El Retrato de Jovellanos en el arenal de San Lorenzo, Goya retratou mais uma vez o amigo, agora em uma obra com atmosfera algo melancólica, Jovellanos sentado, rosto apoiado na mão esquerda, o olhar pensativo de quem vê e não vê. Um retrato muito diferente daquele primeiro, em que se esconde sob as tintas de um homem altivo e confiante o corpo de uma mulher, que, embora não se saiba ao certo quem é, poderia ser a Enarda de um poema do próprio Jovellanos, um amor de juventude que ele fez questão de preservar na sombra:

 

Quiero que mi pasión ¡oh Enarda! sea,/

menos de tí, de todo ignorada;/

que ande en silencio y sombra sepultada,/

y ningún necio mofador la vea/ (…)/

Amor es un afecto misterioso/

que nace entre secretas confianzas/

y muere al filo de mordaz censura.

 

Curiosamente, Jovellanos era também amigo de Antonio de Porcel e sua esposa, ambos retratados por Goya. O quadro de Don Antonio de Porcel, de 1806, teve o destino trágico de cento e cinquenta anos depois ter sido destruído em um incêndio no Jockey Club de Buenos Aires. Já o faustoso retrato em negro de Doña Isabel de Porcel guarda uma misteriosa cumplicidade com El Retrato de Jovellanos en el arenal de San Lorenzo. Também sob esse quadro existe uma outra pintura oculta: a figura de um homem.

 

Palimpsestos em pintura não são raros, como tem revelado a tecnologia avançada no trabalho de pesquisa de restauradores, que já desvendaram pela técnica de raios-X obras inteiras debaixo de quadros Edvard Munch, Jean-Baptiste Camille Corot, Hieronymus Bosch. Casos assim podem dizer muito sobre uma composição desde o seu primeiro esboço, sobre os caminhos incertos e mutáveis de um processo de criação. Dizem também mais do que isso, mais do que propõem as especulações no campo da ciência e da teoria da arte.

 

Palimpsestos falam de histórias recônditas, de um rosto debaixo de outro rosto, de uma página sobreposta a outra, tudo aquilo que existe subterraneamente e sobrevive, como a própria essência do pensamento, mantido em zona de penumbra, gravado porém com letras de fogo, guardando-se para o momento certo de ser revelado. Segredos da vida por trás da arte.

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

publicado por ardotempo às 10:38 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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