Manda mosca
Inverno
António Lobo Antunes
Dias gelados, tristes e feios, que apesar de curtos me parecem intermináveis. A luz acesa muito cedo sobre os móveis melancólicos, nos quais a chuva lá de fora dá ideia de tombar. Acabei um livro no mês passado e a minha cabeça, oca, demora-se no tecto. Nem uma memória nem um presságio: vazio, junto a um calorífero que frita mais do que aquece. O telefone de vez em quando: as pessoas dizem coisas. Não me dizem grande coisa.
Leio, sem vontade, não importa o quê. A humidade enche-me os ossos de água parada: sinto-me uma espécie de charco com folhas podres à tona. Se chego à varanda gente apressada, automóveis a garantirem que não com os limpa-vidros, distinguem-se mal as pessoas nos carros.
- Se ao menos penso eu,
e depois penso
- Se ao menos o quê?
A agência de viagens em frente sem clientes, a merceariazinha dos paquistaneses, que mal me entendem, vazia. Os paquistaneses escuros, secretos. Conheci uma outra mercearia mais acima, de outro paquistanês, que presidia ao balcão com as suas duas mulheres. A última tarde que lá fui segredou-me
- Não se vende nada, vou fechar.
Perguntei-lhe
- Para trabalhar onde?
e a cara caiu-lhe ao comprido dos ossos:
- Não sei.
A loja desapareceu, ele e as mulheres também: mudaram-se não faço ideia para onde. Um sujeito gordo, bem disposto, de barba. Gostava de conversar com ele, gostava de saber o que lhe aconteceu. E às duas mulheres, sempre impassíveis, misteriosas.
Interessei-me
- Dão-se bem uma com a outra?
e o sujeito gordo
- Têm de dar
enquanto elas me fitavam para além de mim, uma mais velha, outra mais nova, quase tão feias como este dia, chinelando em silêncio.
O sujeito gordo uma barba grisalha:
- Têm de dar
e elas plantadas à espera não se percebia de quê, de lenço, opacas.
Veio-me à ideia a frase de Oscar Wilde, bigamia é ter uma mulher a mais; monogamia também, e passou na rua a senhora de boina, reformada dos seguros, a morar com a mãe paralítica. Muito gorda, move-se numa majestade de navio de carga, quase deixando um rastro de gaivotas no passeio: quer dizer, onde os outros notam pombos eu noto gaivotas, que bicam não gasóleo, pontas de cigarro, caricas, papéis, porcaria.
A senhora sorri-me dentro de uns óculos enormes, cheios de dioptrias benevolentes. Deve ter uma vida de inferno e sorri.
- A gente habitua-se a tudo
esclarece ela
- A gente habitua-se a tudo
e a gente habitua-se a tudo, de facto, só eu é que não me habituo ao inverno.
Compra revistas cor de rosa no quiosque, cochicha com a dona. Acerca da mãe? Da vida? Do facto de a gente se habituar a tudo?
Em Vila Praia de Âncora as gaivotas poisam na varanda do Licínio, que andou comigo em África e tem um quase museu referente à guerra na garagem. Livros, fotografias, granadas, um ror de objectos. Sabe tocar acordeão. Eu não sei tocar nada: Uma boa parte sua continua em Angola, fala da tropa no presente, conserva tanto material, para ele precioso, e para mim dores passadas que, de longe em longe, tornam. Mas há gaivotas poisadas na varanda e, na minha, nem um pardal para amostra.
Vila Praia de Âncora, o mar, tão lindo, meu Deus. Não esqueço o jantar na casa dele, a ternura e a fidalguia com que me trataram, estava eu a ser feliz ali perto, em Caminha. Quase em Caminha, no meio do campo, a tirar o saco do pão da maçaneta da porta: há lá país mais bonito do que o meu, há lá língua mais bonita.
Se lhe tirassem a televisão e os políticos era um sítio perfeito. E os jornais, já que estamos com a mão na massa.
No jantar do Licínio o Costa, rádio também:
- Manda mosca, manda mosca
gritavam eles para os aparelhos. Alfa, Beta, Charlie, Delta, Eco, Fox-Trot, Golfe, Hotel, etc., olha, nem sabia que me recordava disto e, com isto, aluvião de nódoas negras.
Em que sítio estará o paquistanês das duas mulheres? Nunca as vi contentes: mudas e graves, sempre. Pequeninas.
- Manda mosca
e lá chegava o helicóptero. Pequeninas, com roupas que se me afiguravam sobrepostas. E se eu vivesse com elas? Dormem os três na mesma cama? Não arranjei coragem para me informar. O meu pai contou-me que em Benfica havia um homem com duas mulheres também, todos muito satisfeitos, e que lhe chamavam o Zé do Meio. Tinha uma carroça. Mal o Zé do Meio morreu começaram as discussões entre as esposas. Para andar com aquilo tudo na ordem o Zé do Meio devia ser um sujeito e pêras. E não uma carroça de burro, uma carroça de mula, que exige mais autoridade. Segundo o meu pai, e jamais lhe escutei uma mentira, o Zé do Meio bebia que se fartava e ao entrar em casa malhava logo na família. As bofetadas, distribuídas, custam menos. A mula recebia também a sua parte e, por conseguinte, a harmonia era total. Comia a mula e comiam elas, que mais se pode desejar? Isto no topo da Travessa dos Arneiros, quase ao pé do cemitério, uma zona de respeito, que eu evitava no pavor que um esqueleto me perseguisse. Até hoje nenhum me aborreceu, a cochichar atrás de mim
- Chega aqui, menino
mas dá azar afirmar isto porque a regata ainda não acabou. Um dia, estou eu descansado da silva, e começa um agitar de ossos no corredor. Se tivesse as paquistanesas pedia-lhes que averiguassem o que se passava:
- Cheguem ali ao corredor a ver o que se passa
e elas iam, que remédio, mudas e graves, de maneira que em vez de me comer a mim o esqueleto as comia a ambas.
Dias gelados, tristes e frios.
Peço ao Licínio
- Manda vir a mosca
o Licínio agarra-se às manivelas
- Manda mosca manda mosca
subo para o helicóptero, explico ao piloto
- Leve-me a Agosto
e dali a nada estou de papo para o ar, na praia, a olhar sorvetes e a lamber biquinis, perdão, ao contrário, a olhar biquinis e a lamber sorvetes. Pensando bem, a primeira frase fica melhor.
António Lobo Antunes