Domingo, 20.02.11

O retrato

(Trecho de Don Frutos)

 

Herrmann Rudolph von Drotte (ou Wendroth) esteve desaparecido durante os três dias seguintes a sua visita de apresentação a Rivera. Só alguns meses depois, quando frequentadores honestos exigiram que se cobrissem de cal as paredes com seus ofensivos desenhos, num lupanar da rua dos Prazeres, soube-se que ali ele permanecera esses três dias, desenhando aquelas indecências e bebendo sem parar, até ser arrojado porta afora.


Rudolph andava procurando por uma tal de Sophia, que conhecera no Rio Grande e atrás da qual chegara ao bordel, onde logo ofereceu seus préstimos artísticos em troca de bebida e carinho, tendo retratado a carvão as mulheres da casa e desenhado pelas paredes as coisas mais surpreendentemente obscenas que só a cabeça de um degenerado se animaria a imaginar (e cuja descrição as imposições da decência fazem-nos calar e esquecer). Se durante os três dias bebeu e bebeu e bebeu tudo o que havia, em troca de sua arte, por conta da rufiona e das marafonas retratadas, não chegou, ao que se saiba, a capacitar-se para desfrutar do carinho de nenhuma delas, tal seu continuado estado de ebriedade.


O alemão recebera convite do dr. Hart para prestar-lhe serviços de desenho e pintura no acompanhamento médico da saúde de Rivera, começando pelo retrato do próprio General, fiel ao estado em que o homem se encontrava. Seria uma nobre e relevante tarefa a ser cumprida artisticamente no respeito e em nome da ciência, havia lhe dito o doutor, ao anunciar-lhe que, tão logo fora apresentado a Don Frutos, já estava incorporado à escolta, a suas ordens e sob sua proteção. Rudolph, entretanto, não ficou alojado exatamente como os demais soldados da guarda de Rivera – nas tarimbas sobrepostas do armazém ao lado –, pois teve permissão para instalar-se no galpão de mantimentos. Além disso, na condição aparente de novo ajudante recém admitido, recebeu ordem de só sair e entrar pelo portão dos fundos; mas com liberdade de fazê-lo quando bem quisesse ou fosse necessário ao cumprimento de seu ofício e de suas obrigações, desde que portando o salvo-conduto assinado pelo General.


O retrato de Don Frutos foi pintado sobre um quadro de madeira feito à feição por um mestre carroceiro, na medida e esquadro, com duas tábuas bem aplainadas e melhor encaixadas entre si, tratadas com pasta de linhaça e alvaiade.


Quando menos se esperava, a feitura desse retrato colocou Rudolph diante de Rivera, com palheta, tintas e pincéis; e ante a necessidade de ambos tomarem alguma bebida – porque o pintor confessou que precisava de ânimo para enfrentar a empreitada de pôr no quadro o General; e o General advertiu que já não tinha ânimo para mais nada, muito menos para fazer pose de sair num quadro (de fato, o que pretendia Rivera, admitindo enfim que o retratassem, era uma oportunidade para ludibriar o dr. Hart e beber alguma coisa escondido – fazendo com o artista um pacto de silêncio, ao oferecer-lhe cerveja; e o que Rudolph queria, combinado com o dr. Hart, era ludibriar Rivera, ao retratá-lo por algum tempo – ganhando-lhe na cerveja a confiança, para depois poder dedicar-se livremente a pintar o que o médico mais pretendia).


Enquanto tratava de passar para o quadro a figura do General, Rudolph esteve por três tardes, três dias seguidos, bebendo com Rivera. E, por mais que se tenha cuidado da vestimenta e de melhorar o aspecto de Don Frutos, por mais que Don Frutos quisesse que a pintura retratasse fielmente sua figura decrépita, a capacidade e a habilidade do mestre pintor no trato com as tintas era tal que o resultado – como diria, ao constatá-lo, o dr. Hart – não ficou aquém do que pretendia o retratista e nem além do que esperava o retratado, tal a conformidade e a proporção obtidas entre o original e a cópia.

 

 

Trecho do romance DON FRUTOS - de Aldyr Garcia Schlee

Imagem: Retrato do General Fructuoso Rivera - Óleo sobre madeira, por Herrmann Rudolph Wendroth - 1853

publicado por ardotempo às 19:49 | Comentar | Adicionar

Ô sôflu e luz ta pompa inova orbita

 

Aqui: um outrora agora


Ferreira Gullar


É sábado à tarde, cerca das 16 horas. Estou parado na esquina da avenida Rio Branco com a Araújo Porto-Alegre. Às minhas costas, o Museu Nacional de Belas Artes; à frente, à esquerda, a Biblioteca Nacional e, à direita, do outro lado da avenida, o Teatro Municipal.


Diante do teatro está a praça Deodoro, ladeada pelo prédio da Câmara Municipal e pelo bar Amarelinho e os edifícios da antiga Cinelândia. Fora o cine Odeon, os demais fecharam, como o Astória e um outro, o Vitória, que ficava lá atrás, na rua Senador Dantas.


Mas importa é que estou, ali, de pé, às quatro da tarde deste mês de fevereiro de 2011. E o que vejo diante de mim é exatamente igual ao que via em 1954. Passaram-se 57 anos e estou ainda aqui vendo os mesmos prédios, a mesma praça. E o passado inevitavelmente invade o presente e me arrasta com ele.Estou, agora, num sábado de 1953 e cruzo a praça em direção à Biblioteca Nacional. Vim a pé da rua Carlos Sampaio, onde morava, próximo à praça da Cruz Vermelha. Sábado era um dia vazio. Nos dias comuns da semana, estava na Redação da "Revista do IAPC", ali perto, na rua Alcino Guanabara, onde passavam amigos que iam ali assinar o ponto, como Lúcio Cardoso ou Breno Acyoli. Lúcio era bom de papo e gostava de um chope; Breno, pirado, mastigava a ponta de um charuto no canto da boca. Além deles, apareciam ali Oliveira Bastos, Décio Victório e Carlinhos de Oliveira, todos entregues à aventura literária.


Mas, no sábado, ninguém aparecia e tampouco vinham, no final da tarde, para o encontro no Vermelhinho, que ficava em frente à ABI. Pior que o sábado só o domingo e dia feriado, quando nem a Biblioteca Nacional abria.

 

 

 

 

A BN era meu refúgio, meu amparo, minha salvação. Metia-me nela, buscava um livro, uma revista literária e entregava-me aos mais inesperados delírios. Nas revistas francesas, descobri Lautréamont, Antonin Artaud, André Breton, Paul Éluard, René Char. Ou eram seus poemas ou os ensaios sobre eles.


Mas, ao fim da tarde, quando saía de lá e daquele mundo feérico, encontrava-me de novo sozinho e desamparado em plena Cinelândia. Pessoas cruzavam a praça em direção aos pontos de ônibus, que os levariam não sei para onde. Flamengo, Botafogo, Copacabana? Só eu não tinha para onde ir, a não ser para o meu quarto, que dividia com dois desconhecidos e que só apareciam lá para dormir.


Antes perambular pelas ruas do que me deitar naquela cama estreita e ficar olhando, pela janela, a noite cair.


O que me salvava era a poesia, se ocorresse em determinado instante, se me surgisse um verso inesperado. Aí sim, entregava-me àquela viagem, esquecia o quarto, o mundo, a solidão. Pouco me importava, então, se anoitecia ou amanhecia.


Sucede que poema é coisa rara. No meu caso, sempre foi. Quem me dera escrever um poema por dia, alçar voo acima do vazio dos sábados, dos domingos e feriados! Sempre fui cismado com esses dias porque, além de me sentir sozinho, a poesia também preferia ir à praia a me visitar. Já nos dias normais, como disse, metia-me na BN, agarrava-me a uma "Nouvelle Revue Française" e valia-me dos poemas alheios.


Mas houve uma exceção. Foi numa Sexta-Feira da Paixão quando, ao me dar conta de que era dia feriado e por isso o Vermelhinho estava deserto e a Cinelândia também, encaminhei-me sem rumo para a rua do Catete e fui parar no Parque Guinle, entregue ao delírio de um poema louco, cuja erupção teve início exatamente quando cruzava a rua Santo Amaro: "Ô sôflu e luz ta pompa inova orbita". Naquele momento, em que violentava meu instrumento de expressão, vivia a ilusão de ter chegado ao inalcançável: fazer que a língua nascesse ao mesmo tempo que o poema. Só no dia seguinte, na Redação da "Revista do IAPC", ao passá-lo a limpo, dei-me conta de que ninguém o compreenderia e que, de fato, havia destruído minha linguagem de poeta... É nisso que dá fazer poema em dia santo.


Essa ocorrência, se não me engano, data de março de 1953. Depois daquele dia, muitas outras vezes me encontrei entre esses mesmos prédios -o teatro, o museu, a biblioteca, a câmara municipal- num sábado ou num domingo, sem ter o que fazer da vida. Exatamente como agora, nesta tarde de 2011.


Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL

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publicado por ardotempo às 13:49 | Comentar | Adicionar

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