O retrato
(Trecho de Don Frutos)
Herrmann Rudolph von Drotte (ou Wendroth) esteve desaparecido durante os três dias seguintes a sua visita de apresentação a Rivera. Só alguns meses depois, quando frequentadores honestos exigiram que se cobrissem de cal as paredes com seus ofensivos desenhos, num lupanar da rua dos Prazeres, soube-se que ali ele permanecera esses três dias, desenhando aquelas indecências e bebendo sem parar, até ser arrojado porta afora.
Rudolph andava procurando por uma tal de Sophia, que conhecera no Rio Grande e atrás da qual chegara ao bordel, onde logo ofereceu seus préstimos artísticos em troca de bebida e carinho, tendo retratado a carvão as mulheres da casa e desenhado pelas paredes as coisas mais surpreendentemente obscenas que só a cabeça de um degenerado se animaria a imaginar (e cuja descrição as imposições da decência fazem-nos calar e esquecer). Se durante os três dias bebeu e bebeu e bebeu tudo o que havia, em troca de sua arte, por conta da rufiona e das marafonas retratadas, não chegou, ao que se saiba, a capacitar-se para desfrutar do carinho de nenhuma delas, tal seu continuado estado de ebriedade.
O alemão recebera convite do dr. Hart para prestar-lhe serviços de desenho e pintura no acompanhamento médico da saúde de Rivera, começando pelo retrato do próprio General, fiel ao estado em que o homem se encontrava. Seria uma nobre e relevante tarefa a ser cumprida artisticamente no respeito e em nome da ciência, havia lhe dito o doutor, ao anunciar-lhe que, tão logo fora apresentado a Don Frutos, já estava incorporado à escolta, a suas ordens e sob sua proteção. Rudolph, entretanto, não ficou alojado exatamente como os demais soldados da guarda de Rivera – nas tarimbas sobrepostas do armazém ao lado –, pois teve permissão para instalar-se no galpão de mantimentos. Além disso, na condição aparente de novo ajudante recém admitido, recebeu ordem de só sair e entrar pelo portão dos fundos; mas com liberdade de fazê-lo quando bem quisesse ou fosse necessário ao cumprimento de seu ofício e de suas obrigações, desde que portando o salvo-conduto assinado pelo General.
O retrato de Don Frutos foi pintado sobre um quadro de madeira feito à feição por um mestre carroceiro, na medida e esquadro, com duas tábuas bem aplainadas e melhor encaixadas entre si, tratadas com pasta de linhaça e alvaiade.
Quando menos se esperava, a feitura desse retrato colocou Rudolph diante de Rivera, com palheta, tintas e pincéis; e ante a necessidade de ambos tomarem alguma bebida – porque o pintor confessou que precisava de ânimo para enfrentar a empreitada de pôr no quadro o General; e o General advertiu que já não tinha ânimo para mais nada, muito menos para fazer pose de sair num quadro (de fato, o que pretendia Rivera, admitindo enfim que o retratassem, era uma oportunidade para ludibriar o dr. Hart e beber alguma coisa escondido – fazendo com o artista um pacto de silêncio, ao oferecer-lhe cerveja; e o que Rudolph queria, combinado com o dr. Hart, era ludibriar Rivera, ao retratá-lo por algum tempo – ganhando-lhe na cerveja a confiança, para depois poder dedicar-se livremente a pintar o que o médico mais pretendia).
Enquanto tratava de passar para o quadro a figura do General, Rudolph esteve por três tardes, três dias seguidos, bebendo com Rivera. E, por mais que se tenha cuidado da vestimenta e de melhorar o aspecto de Don Frutos, por mais que Don Frutos quisesse que a pintura retratasse fielmente sua figura decrépita, a capacidade e a habilidade do mestre pintor no trato com as tintas era tal que o resultado – como diria, ao constatá-lo, o dr. Hart – não ficou aquém do que pretendia o retratista e nem além do que esperava o retratado, tal a conformidade e a proporção obtidas entre o original e a cópia.
Trecho do romance DON FRUTOS - de Aldyr Garcia Schlee
Imagem: Retrato do General Fructuoso Rivera - Óleo sobre madeira, por Herrmann Rudolph Wendroth - 1853