Arte ainda que tarde
Isso não é arte, isso é arte
Alguns anos atrás, fui visitar um Museu de Arte Contemporânea, recém inaugurado, na região da Bretanha, na França. Um belo museu, fruto da política de descentralização cultural implementada pelo Ministro da Cultura André Malraux, com a dedicação de fundos financeiros a longo prazo para os FRACs, visando beneficiar outras regiões que não apenas Paris e dirigidos à arte contemporânea, porque é isso que faz sentido no momento atual e futuro. Estava em companhia de um grande amigo, Jean-Yves Mérian, que me explicou como tudo aquilo fora possível e como alcançara resultados concretos para os artistas e benéficos para as comunidades das diferentes regiões da França. Uma excelente ideia que gerou museus e acervos contemporâneos de qualidade em várias cidades espalhadas pelo Hexágono francês.
Dentro do museu, ocupando uma parte considerável do espaço expositivo estava a máquina CLOACA, uma instalação com a proposta de um artista contemporâneo, creio que belga, que se propunha a funcionar como um grande aparelho digestivo mecânico, reproduzindo as funções fisiológicas humanas - ou seja, alimentar-se, digerir o alimento e expelir os resíduos. A máquina tinha uma espécie de boca mecânica metálica que recebia o alimento (um cardápio de degustação elaborado diariamente por um chef de nomeada e enviado por fax, desde um restaurante estrelado em Bruxelas). Tudo muito simples, apenas a máquina não se movimentava para queimar as calorias e tampouco engordava.
Ela estava ali, no centro das atenções de todos aqueles visitantes que pagaram caro seus ingressos para vê-la funcionando. Em aço polido e reluzente, cheia de tubos transparentes, funcionava com vigor ininterrupto em horários marcados, fazia ruídos, digeria os alimentos frescos elaborados criteriosamente numa cozinha gastronômica montada apenas para ela dentro do Museu, expelia cheiros e produzia ... excrementos.
Isso mesmo, o resultado produzido pelo mecanismo concebido pelo artista era a mais genuína... merda de artista. Que logo depois era envasada e vendida, em embalagem transparente, hermeticamente fechada (mas perfeitamente visível para ser apreciada minuciosamente em seus detalhes e examinada pelos aficcionados) a quem quisesse adquiri-la por um valor relativamente alto, em euros, na loja do Museu. Todas as obras produzidas pela máquina estavam numeradas na sua série, eram assinadas pelo artista que concebeu a ideia, com certificado de autenticidade e de procedência daquela máquina CLOACA, naquela data, museu e exposição. (O artista, posteriormente fabricou mais duas máquinas CLOACAs para produzir em série multiplicada outras obras dessas, simultaneamente em outros museus, tamanho foi o interesse e curiosidade que despertou nas pessoas, em geral.)
Recentemente, passados alguns anos, essas obras datadas como os vinhos de safra, começaram a chegar ao mercado de arte, alcançando altas cotações nos leilões, sendo disputadas fervorosamente por colecionadores interessados.
Naquela época, eu pensei, "isso não é arte..." Considerei a que máquina era surpreendente, um espanto de novidade tecnológica e científica e que seu lugar deveria ser num Museu de Ciências e Tecnologias, onde estaria bem e seria aplaudida por sua concepção, pela eficácia na tecnologia com as enzimas e as bactérias, pelo seu interesse científico efetivo, a produzir um fac-símile crível da verdadeira merda humana. Muito interessante, de fato. Nem tão bela nem tão arte como se poderia desejar.
Hoje, observando as Bienais, a atual produção artística frívola, vazia, com ausência absoluta de técnica de fatura, facilitada pela aceitação midiática, demagógica, francamente publicitária e infantil, distanciada da poesia e da reflexão, não mudei de opinião sobre o valor artístico intrínseco presente aquela obra produzida com estardalhaço pela máquina CLOACA no interior do próprio espaço do museu. Uma obra fabricada e autenticada dentro de um genuíno museu de arte contemporânea. Acho-a agora apenas coerente e compatível, representativa do muito que se produz e oferece ao consumo na área cultural, seja em artes visuais, seja na música, seja na literatura, tudo o que nos é empurrado cotidianamente, sem nenhum tempo para o desfrute, menos ainda para a reflexão. Obras destituídas de qualquer resquício de qualidade mas edulcoradas por discursos acadêmicos infindáveis e inconclusivos, enganadores e mistificadores. Passou, em realidade, a ser o sinônimo perfeito e um símbolo veraz, com alguma eloquência e retórica silenciosa, de um estado geral das produções, das atitudes e das tendências.
A obra produzida pela CLOACA é um símbolo concreto e pertinente à produção artística que nos é oferecida de forma avassaladora neste tempo de caos, de superficialidade e inconsciência crítica. A obra produzida pela CLOACA e seu criador, para mim não se constitui em verdadeira obra de arte, porém, em sua ironia primitiva e grosseira, gera um mínimo questionamento e resulta ainda superior a tudo o que nos circunda, o que nos chega ou nos é o sinalizado como sendo os novos paradigmas a serem admirados e aceitos. Ou seja, a maior parte da produção artística em praticamente todas as áreas rasterizou-se e isentou-se de valores de interesse para um certo número de pessoas, algumas pessoas, um número pequeno. Infelizmente, foi a encontro do gosto e de uma unanimidade que se mostra cada mais numerosa em sua insuficiência. Para essa imensa maioria está bem assim, atende aos desejos e às necessidades imediatas da novidade e do choque sensacionalista.
Assim seja, para tantos que se sintam tão agradados e tão confortáveis nesse caos e com essa música percussionada que nos atinge sem que tenhamos escolha. Num outro lado, parafraseando o enigma da felicidade de Borges, ainda podemos encontrar a boa música, a boa pintura, a boa fotografia, a boa literatura. Vamos em frente, enquanto existir espaço para todos.