Fora da vista, fora da luz

 

J.D. Salinger: Uma Vida - Espiando a vida de um recluso


Michiko Kakutani

 

A famosa dedicatória de J.D. Salinger em “Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira e Seymour: Uma Apresentação” diz: “Se ainda existir um leitor amador que seja no mundo – ou qualquer pessoa que apenas leia e pronto – eu pediria a ele ou ela, com indizível afeição e gratidão, para dividir a dedicatória desse livro em quatro partes com minha mulher e filhos”.


O recluso Salinger, que morreu há um ano, aos 91, parece ter encontrado esse leitor ideal em seu último biógrafo, Kenneth Slawenski, criador do site de fãs Dead Caulfields e agora autor de uma nova biografia de Salinger que é honesta, simpática e sensível.


O volume, “J.D. Salinger: A Life” [“J.D. Salinger: Uma Vida”], que se baseia principalmente nas cartas de Salinger e nas memórias escritas por sua filha, Margaret, equivoca-se um pouco em sua tendência a fazer correspondências diretas entre a vida e a obra do autor. E retraça boa parte do caminho já percorrido por livros anteriores, de Ian Hamilton e Paul Alexander. Ainda assim, ele faz isso sem o tipo de especulação condescendente e às vezes voyeurista que aparece nas biografias anteriores, e faz um trabalho evocativo ao traçar a evolução da obra e do pensamento de Salinger.


O Salinger que emerge desse livro é um parente psicológico próximo de sua criação mais famosa, o adolescente Holden Caulfield, e do garoto prodígio da família Glass, que estrelaria em seus livros posteriores. Ele é o eterno forasteiro e peregrino espiritual que se sente ilhado num mundo materialista e vulgar, cheio de hipócritas e gente entediante. Mimado por uma mãe que “acreditava totalmente em seu talento”, diz Slawenski, o jovem Salinger “acabou esperando a mesma reação dos outros e não tinha muita paciência ou consideração com aqueles que duvidavam dele ou não compartilhavam de seu ponto de vista”. Essa sensação de ser especial mais tarde se calcificaria numa impaciência com os outros, numa incapacidade de ultrapassar a visão de mundo adolescente de “ou isto, ou aquilo” de Holden, que eventualmente moldou a ficção posterior de Salinger, tornando-a cada vez mais solipsista e crítica.


As experiências de Salinger durante a 2ª Guerra Mundial aumentaram ainda mais sua sensação de alienação. Slawenski escreve que a guerra deixou Salinger com cicatrizes psicológicas profundas, marcando “todos os aspectos” de sua personalidade e reverberando em seus escritos. E seu livro faz um trabalho torturante de reconstruir os horrores do jovem soldado provavelmente testemunhados durante o Dia-D e depois dele, como membro de um regimento que perdeu muitos homens na Batalha de Hurtgen Forest e mais tarde se envolveu na libertação de vítimas do sistema de campos de concentração de Dachau.


De acordo com essa biografia, Salinger foi hospitalizado em 1945 pelo que hoje seria chamado de síndrome do estresse pós-traumático. Uma carta que ele escreveu para um amigo indicava que, no dia que o exército alemão se rendeu, Salinger estava sentado em sua cama, olhando, nas palavras de Slawenski, “para uma pistola calibre 45 apertada entre suas mãos”, perguntando-se o que sentiria se ele “disparasse a arma através de sua palma esquerda” – uma cena que antecipa assustadoramente o final chocante de “Um Dia Ideal para o Peixe-Banana”.


Depois de voltar a Nova York, escreve Slawenski, Salinger tentou retomar, no centro da cidade, uma versão da vida sofisticada de Manhattan que ele conheceu antes da guerra (quando teve um romance com a filha de Eugene O'Neill, Oona, e frequentava o Stork Club). Ele se juntou a um pequeno grupo de jogadores de pôquer que se encontrava todas as quintas-feiras no SoHo, teve sucessivos romances com jovens mulheres e saía regularmente para restaurantes e clubes. Ainda assim, tinha dificuldades de encontrar o que Slawenski chamou de “um lugar 'normal' para se encaixar”.


Seu isolamento foi gradual. Primeiro, diz Slawenski, ele se mudou para Connecticut, e depois, em 1953, comprou 90 acres de uma propriedade nas colinas de Cornish, um vilarejo em New Hampshire. Quando se casou com a jovem Claire Douglas alguns anos mais tarde, levava uma existência austera que se revolvia em torno da escrita, meditação e ioga – uma vida, nas palavras de Slawenski, “desprovida da falsidade e do materialismo” que Salinger havia “repudiado em seus escritos”.


Depois do nascimento de sua filha, Margaret, em 1955, Slawenski conta que Salinger começou a passar mais e mais tempo escrevendo num pequeno quarto verde que construiu nas proximidades com blocos de concreto; depois de comprar a fazenda vizinha em 1966, ele “construiu uma casa para si do outro lado da rua” em que ficava o chalé de sua família. Claire Salinger pediu o divórcio naquele mês de setembro.


A última história publicada de Salinger, “Hapworth 16, 1924”, apareceu no “The New Yorker” em 19 de junho de 1965, e a partir de 1970, escreve Slawenski, Salinger “se dedicou”, com a ajuda de seu agente, a “sufocar qualquer tipo de revelação de informações pessoais passadas e presentes”. Nos anos 80, diz Slawenski, a “aversão crônica de Salinger por cartas não solicitadas deixou de ser um receio para se transformar em desprezo e temor”; com o tempo “ele começou a ignorar não só as correspondências enviadas por estranhos, mas também cartas de sua família e amigos.”

 

 

 

 


O que causou a reclusão de Salinger? Sem dúvida as experiências da época da guerra influenciaram sua sensação cada vez maior de estranhamento, assim como suas crenças religiosas. No final de 1946, escreve Slawenski, “Salinger começou a estudar o zen budismo e o catolicismo místico”, e nos anos 50 ele havia adotado os ensinamentos do místico indiano Sri Ramakrishna. Slawenski argumenta que a partir “do momento em que ele concluiu 'O Apanhador nos Campos de Centeio', Salinger manteve a filosofia de que seu trabalho equivalia à meditação espiritual”, e a fama e os fãs e a publicidade alimentavam o ego, e não o espírito, e também “serviam para atrapalhar sua meditação”.Entrelaçada ao relato da longa e estranha jornada que foi a vida de Salinger, há uma análise de sua ficção. Slawenski não está particularmente preocupado em discorrer sobre os dons de Salinger como escritor: seu fantástico ouvido para o diálogo; seu amor pela linguagem coloquial e idiomática; sua habilidade para domesticar as inovações do fluxo de consciência dos grandes modernistas. Em vez disso, Slawenski se concentra em traçar as ligações entre a vida e a arte do autor, e os temas recorrentes em sua ficção, principalmente aquilo que Slawenski chama de “visão do mundo dividida entre o genuíno e o falso, o iluminado e o insensível, o tigre e a ovelha”.

 

Diferentemente das primeiras histórias de Salinger, que tendiam a se concentrar nas “falhas dos outros”, escreve Slawenski, Salinger se alinhou “tão perto de Holden Caulfield” (nas histórias que eventualmente evoluiriam até o “O Apanhador No Campo de Centeio”) que foi como se ele tivesse “jogado seu próprio espírito dentro do personagem principal”. O fato de abraçar personagens como Holden e as crianças Glass significou “apresentar qualidades ainda mais humanas, porque eram as suas próprias”, argumenta Slawenski, e isso se tornou um meio de se conectar com seus leitores.


Na visão de Slawenski, Salinger se dedicou, depois do “Apanhador”, a escrever ficção “permeada de religião, histórias que expunham o vazio espiritual inerente da sociedade norte-americana”. Ele argumenta que as histórias de “Nove Contos” relatam a história de uma “jornada espiritual” – do desespero de “Um Dia Ideal para o Peixe-Banana” (no qual Seymour Glass pega uma arma e atira na própria cabeça) até a esperança de conexão humana presente em “Para Esmé – Com Amor e Sordidez”. Ele vê as histórias de Glass também como explorações da “própria luta de Salinger para aceitar os outros e reconhecer a bondade no mundo”.


A narrativa de Slawenski sobre a estranha vida de Salinger, entretanto, está cheia de buracos e questões sem resposta, talvez sem surpresa, levando em conta a extrema reticência do sujeito e de sua mania pela privacidade, e a dependência do biógrafo de fontes secundárias.


Slawenski escreve que o fato de Oona O'Neill ter terminado com Salinger e se casado logo depois com Charlie Chaplin foi “a grande tragédia romântica da vida de Jerry”, mas não elabora como isso pode ter influenciado os relacionamentos seguintes de Salinger ou sua imaginação. Ele também escreve que Salinger “havia sofrido de depressão durante anos, talvez durante toda sua vida, e às vezes foi acometido por episódios tão intensos que não conseguia se relacionar com os outros”, mas não mergulha de fato nas suas fontes anteriores à guerra ou nos motivos pelos quais Salinger buscou a religião como um caminho para superar suas aflições emocionais.


“Salinger expressava sua depressão através de seus personagens”, escreve Slawenski, mas dava a alguns deles, como Holden e o Sargento X em “Esmé”, alguma esperança, salvação ou “um caminho para o bem-estar, normalmente encontrado através da ligação humana”. Mas embora “o autor costumasse compartilhar a tristeza de seus personagens”, acrescenta Slawenski, “ele dificilmente tinha as curas” para si mesmo.


Michiko Kakutani - Publicado no jornal O Estado de São Paulo

publicado por ardotempo às 01:32 | Comentar | Adicionar