Literatura, democracia e preconceitos
LUIZ RUFFATO - O escritor de um novo mundo
Entrevista concedida a Nahima Maciel - Correio Braziliense
Nahima Maciel – Você diz que um escritor precisa se posicionar politicamente. Gostou do resultado das eleições?
Luiz Ruffato – Você não pode deixar de concordar que o país mudou radicalmente, economicamente e socialmente. Foi uma mudança revolucionária. Isso não significa que resolvemos os problemas. Muito pelo contrário. Temos problemas gravíssimos que ainda não foram enfrentados. São apenas 25 anos, no entanto, é o maior período de democracia em toda a história do país e mostra que o único caminho possível é esse. É hora de alimentar a democracia e dar continuidade aos projetos que foram iniciados e, quem sabe, em 30 ou 40 anos, vamos ter um país absolutamente diferente.
Acredito nisso, estamos muito melhor e acho que esse processo eleitoral, embora muito desgastante, foi extremamente importante para pensar a respeito do que nós queremos para nosso país. Fiquei muito feliz com o resultado. Sem dúvida.
NM – Você encara o diálogo com a sociedade como algo importante porque a literatura pode mudar a cabeça de uma pessoa. Como faz isso?
LR – Tento fazer uma literatura na qual o leitor realmente se sinta desconfortável e se proponha a pensar a respeito das questões que estão sendo colocadas. Não é concordar ou discordar, mas refletir sobre isso. Existe o papel público do escritor. Nós, durante muito tempo, renunciamos a esse papel que agora voltamos a ter e que eu gosto muito de exercer. Vou muito a escolas públicas, mesmo quando não tem nada a ver com meu trabalho. Gosto de pensar na ideia de que minha biografia pode despertar outras crianças e jovens que nasceram na mesma classe social que eu e mostrar que é possível descobrir um mundo novo. Esse seria o desdobramento do meu papel público. E insisto nisso. Não me furto de discutir qualquer assunto. Quero me posicionar a respeito de qualquer assunto. Mesmo que depois eu venha a repensar minha posição, mesmo que descubra estar errado. Mas acho importante que eu me posicione.
NM – Durante uma palestra, você avisou o público que não é um cara de verdades definitivas. Isso é fruto de uma liberdade que lhe permite, inclusive, a incoerência?
LR – Acho que é ser coerente, mas é uma coerência dentro da humildade de saber que você é falível. Coisas que vim aprendendo ao longo da vida foram me modificando como ser humano e, portanto, modificando minhas verdades. Isso não significa incoerência, de forma alguma. Isso significa você ter a humildade de saber que está no mundo para aprender e que existem no mundo pessoas que podem oferecer a você outras reflexões e que elas podem alterar profundamente suas verdades. Gosto muito de pensar nisso. Não vejo como incoerência, mas sim como desdobramento de experiências.
NM – Sua própria história pode ser encarada como fruto desse Brasil que está amadurecendo, crescendo?
LR – Parece pretensão, mas me vejo exatamente assim. É como se eu fosse a encarnação desse momento. Minha história pessoal é exatamente a história de alguém que não tinha nenhuma perspectiva, ou tinha pouca perspectiva. O máximo de pretensão que teria tido na vida era, saindo da minha situação de filho de uma mãe analfabeta e lavadeira e de um pai semianalfabeto pipoqueiro, ser um torneiro mecânico. No entanto, quando me formei, o ABC já estava entrando em decadência e nem torneiro mecânico era uma profissão importante. Mesmo assim, fiz carreira profissional como jornalista e escritor. É a ascensão objetiva das classes C e D. Eu sou a encarnação desse conceito que hoje está muito presente na nossa sociedade.
NM – Acha que um dia chegaremos ao ponto de a educação ser um mecanismo efetivo de ascensão social?
LR – Me irrita profundamente a visão passadista de que antes a educação no Brasil era muito boa e hoje é muito ruim. A educação pública no Brasil, antigamente, era muito boa para meia dúzia de pessoas. A maioria da população nem sequer tinha acesso à educação. A ditadura destruiu o pouco de ensino público que havia no país e nossa democracia pegou uma educação absolutamente desarticulada, mas pelo menos conseguimos universalizar o acesso à educação. Está sendo feito um esforço imenso para resolver essas questões básicas. Parece que estou fazendo propaganda política, mas não é isso.
Esse governo triplicou o número de vagas no ensino público federal e ampliou enormemente o número de escolas técnicas. Estamos dando os primeiros passos. Não tenho nenhuma dúvida. A única maneira de ascensão social no Brasil vai ser por meio da educação. E não tenho dúvida de que se houver um esforço no sentido de melhorar a educação vamos gerar uma espécie de primeiro mundo tropical, que é o que todos desejamos.
NM – Por que você diz que sente inveja do Paulo Coelho?
LR – Brinco sempre que queria vender como ele, mas não escrever como ele. Existe muito preconceito, não gosto dessa ideia da literatura como uma coisa intocável, o escritor como um ser privilegiado. Não é nada disso. Eu escrevo, faço literatura, estou dentro do sistema literário e não vejo problema nisso. Vivo de literatura. Tenho maior orgulho disso. Agora, é evidente que nunca vou conseguir vender como Paulo Coelho porque minha literatura não é facilitada. Mas sempre faço essa brincadeira porque, para mim, é muito concreto. Vender como Paulo Coelho sim, não tenho nenhum problema com o mercado, mas escrever como ele, não.
NM – Fala-se muito da ligação da Geração 90 com o universo urbano, até porque ela nasceu em São Paulo. Você se sente ligado a isso ou isso não importa? O que é essa temática para você?
LR – É inegável. Hoje, pelas últimas estatísticas do IBGE, 80% da população brasileira vive na cidade, então é quase natural que a literatura que reflete um pouco a sociedade vá falar das questões urbanas. O que mudou na minha opinião é que, antigamente, quando se falava em literatura urbana, era São Paulo e Rio de Janeiro. Hoje você tem literatura urbana em um monte de lugares no Brasil e essa diluição permite que existam várias visões absolutamente diferentes e complementares dessas várias literaturas urbanas.
Não acho que a Geração 90 seja marcada por uma literatura urbana, mas por literaturas urbanas. E que dialogam de alguma maneira com o que resta de não urbano no Brasil, inclusive porque uma das marcas que se diz que a Geração 90 tem, que é a questão da violência, está presente em qualquer cidade do interior hoje.
NM – Você tem medo da globalização?
LR – Não acredito em globalização. A globalização só existe em função de mercadorias, mas não de pessoas. Na Europa, a gente passa nas alfândegas porque é brasileiro. Quando se falava em globalização, falava-se em um mundo homogeneizado, em que as pessoas fossem pensar mais ou menos a mesma coisa e isso não aconteceu e não vai acontecer porque, pelo contrário, cada vez mais você percebe movimentos de legitimação dos entornos.
Não dá para falar em globalização quando temos uma divisão clara, hoje, entre o mundo cristão e o muçulmano. Que globalização é essa? É uma invenção no sentido de mercadoria. De comércio. Mas nunca foi no sentido cultural.
NM – Você é místico, mítico ou religioso?
LR – Religião não é uma preocupação minha. Não é algo que faça parte do meu cotidiano pensar a respeito disso. Mas é evidente que existe uma base que me interessa muito, que é a questão da ética. Sem ela as coisas ficam muito complicadas. Por exemplo, a ética básica de não fazer ao outro o que você não quer que façam a você. É a base, de alguma maneira, do cristianismo e levo com absoluto rigor. Agora, acreditar em Deus, frequentar cultos, essas coisas não me preocupam, embora tenha profundo respeito por todas as manifestações religiosas, inclusive pelos pastores que ficam pregando na televisão, porque essa visão do pentecostalismo que existe no Brasil é extremamente preconceituosa e vem dos católicos brancos e da elite brasileira. O que é a Igreja Católica senão exatamente a mesma coisa? Explora a fé do mesmo jeito que os pastores exploram.
NM – Você costuma citar temas que deviam ser tratados na literatura, mas não são, como a violência c ontra a criança. Como esses temas deveriam ser tratados?
LR – É uma preocupação que tenho com as minorias ou com questões que não são discutidas normalmente na literatura. Por exemplo, a questão da homossexualidade, que embora aparentemente seja uma coisa que hoje está tudo bem. São Paulo tem a maior parada gay do mundo e, no entanto, houve aqueles ataques contra pessoas que estavam na rua por que os agressores cismaram que eram gays. Esse problema não está resolvido, e é muito sério. É uma questão de como a nossa sociedade encara a questão do racismo. A discussão sobre cotas na universidade, por exemplo, foi importante também por causa disso. As manifestações racistas vieram à tona e a sociedade foi obrigada a discutir isso. Existem temas que fascinam pelo poder de mobilização de reflexão. Eu não me pauto por isso, mas gosto de enfrentar esse tipo de problema. Seria capaz e acharia interessante, se me fosse proposto, escrever coisas sobre determinados temas.
NM – Você é otimista?
LR – Absolutamente otimista. Tão otimista que às vezes sou também bobo. Vejo minha infância e vejo onde cheguei, vejo o Brasil da minha infância e onde estamos hoje, não tem como não ser otimista. Demos passos largos e m direção a uma coisa muito melhor, mas acho que sou mais otimista ainda no sentido de que a única coisa que nós, seres humanos, temos que buscar na vida é a felicidade. Nascemos para morrer. Se nesse intervalo entre nascer e morrer você não tiver como objetivo na vida ser feliz, não consigo compreender para que alguém vive.
Entrevista indicada e recomendada por Celso Kaufman (Brasília) - Publicada no Correio Braziliense