Segunda-feira, 17.01.11

Os sonhadores

Sonhos


Alberto Manguel


“Vamos de táxi a casa de Bioy e de Silvina, um apartamento espaçoso que proporciona a vista de um parque. Há décadas que Borges passa várias tardes por semana neste apartamento. A comida é horrível (hortaliça cozida e, à sobremesa, algumas colheradas de doce de leite), mas Borges não se dá conta.

 

Esta noite, cada um deles, Bioy, Silvina Ocampo e Borges, conta aos outros os seus sonhos. Com a sua voz àspera e grave, Silvina diz que sonhou que se afogava, mas que o sonho não foi um pesadelo: não houve dor, não teve medo, sentiu simplesmente que estava a dissolver-se, a tornar-se água. Depois Bioy refere que no seu sonho se encontrava diante de duas portas. Sabia, com essa certeza que muitas vezes possuímos em sonhos, que a porta da direita o levaria a um pesadelo; resolveu transpor a da esquerda e teve um sonho sem incidentes.

 

 

 

 

 

Borges observa que ambos os sonhos, o de Silvina e o de Bioy, são em certo sentido idênticos, uma vez que os dois sonhadores esquivaram-se ao pesadelo com êxito, um rendendo-se-lhe, outro negando-se a penetrar nele. Conta a seguir um sonho descrito por Boécio, no século V. Nele, Boécio assiste a uma corrida de cavalos: vê os cavalos, a linha de partida e os diferentes e sucessivos momentos da corrida até que um dos cavalos cruza a meta. Então, Boécio vê um outro sonhador: alguém que o observa a ele, observa os cavalos, a corrida, tudo ao mesmo tempo, num só instante. Para esse sonhador, que é Deus, o resultado da corrida depende dos cavaleiros, mas esse resultado é já conhecido pelo Sonhador. Para Deus, diz Borges, o sonho de Silvina seria ao mesmo tempo agradável e digno de um pesadelo, enquanto, no sonho de Bioy, o protagonista teria atravessado ao mesmo tempo as duas portas. Para esse sonhador colossal, todo o sonho equivale à eternidade, em que estão contidos cada sonho e cada sonhador.


Com Borges, de Alberto Manguel

Imagem: Fotografia de Marcelo Freda Soares

Publicado por José Mário Silva, no blog Bibliotecário de Babel

publicado por ardotempo às 15:08 | Comentar | Adicionar

No País das Maravilhas não há recato

 

Mil mortos nas avalanches da chuva

 

Mil mortos e um morto nas avalanches da chuva.

Não há recato no País das Maravilhas.

Ao mesmo tempo, na cidade ao lado,

a euforia de milhares na festa

pelo jogador de futebol.

Milhares de camisetas, milhares de pessoas

a cantar, a gritar no meio da tarde de trabalho

(de onde vem tanto dinheiro para consumir

tanto tempo, o luxo de tanto ócio?)

 

Não há recato no País das Maravilhas.

 

Mil mortos e um morto nas avalanches da chuva,

milhares de tragédias individuais,

que serão para sempre

e na cidade ao lado anunciam-se as festividades

do Carnaval próximo.

Ninguém olha para o lado.

A noticia trágica é adrenalina,

é o prazer do espanto.

A festa continua.

 

Não há recato no País das Maravilhas.

 

 

publicado por ardotempo às 13:05 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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