Quando dois e dois são cinco
Ferreira Gullar
Faz tempo que não toco, aqui, em assuntos políticos e, se volto ao tema hoje, é para refletir, junto com você, leitor, sobre um fato para mim inusitado.
Certamente nem todos concordarão comigo ou simplesmente preferirão desconsiderar esse tipo de perplexidade. De qualquer modo, se eu estiver equivocado, peço-lhe desculpas, mas, sinceramente, neste caso, não opino, constato e com espanto.
Constato o seguinte: a eleição de Dilma Rousseff à Presidência da República não me parece real. Talvez não seja eu o único a pensar assim e que não só a mim a eleição dela pareça inusitada. Tendo a admitir que não. Pode ter ocorrido que, na tropelia da disputa política, meses de propaganda, declarações, acusações, desmentidos, as pessoas se deixaram levar pela paixão e não pararam para refletir sobre o que acontecia. Disputa seja na política seja no futebol, tende a nos cegar, a nos impedir de refletir e ponderar. Não me excluo disso, tanto que só depois que a coisa se consumou, que os discursos cessaram, os debates acabaram e a Justiça Eleitoral a proclamou presidente eleita do Brasil é que me dei conta de quão surpreendente era tudo aquilo - isto é, de quão surpreendente é termos Dilma Rousseff como presidente do Brasil e que irá nos governar pelos próximos quatro anos.
Se quiser entender meu espanto, siga este raciocínio: Dilma Rousseff nunca pretendeu candidatar-se a nenhum cargo eletivo. Embora tenha entrado para a política muito jovem, na época da ditadura, e continuado sua militância após a volta da democracia, jamais disputou eleição alguma. Isso não teria importância em alguém que sempre se manteve à margem da política, o que não é o caso dela; daí a conclusão de que, se nunca se candidatou, foi porque essa não era a sua praia. Em vez disso, estudou economia e se contentou em ocupar cargos oficiais na área de sua especialização, chegando a ministra-chefe da Casa Civil da Presidência da República. Mas, de repente, essa pessoa que nunca disputou eleição nem para vereadora é lançada candidata à presidência da República.
Acredita você que foi por vontade dela? Que um dia acordou e disse a si mesma: "Sabe de uma coisa, vou me candidatar a presidente do Brasil!". Você não acredita nisso, claro, nem eu tampouco.
O que aconteceu então? Todo mundo sabe o que aconteceu: foi Lula quem decidiu isso e impôs a ela a decisão. Como acha você que terá reagido Dilma, ao ouvir de Lula a ideia de candidatar-se ao mais alto cargo eletivo do país, ela, que nunca se candidatou a cargo algum? Estou certo de que pediu um tempo para pensar e mal conseguiu dormir aquela noite. "Lula pirou", terá dito ela a si mesma, imóvel na cama, olhando para o teto. "Eu, presidente do Brasil? É maluquice!" Claro, estava perplexa, mas, certamente, fascinada pela ideia, como Cinderela ao ver que o sapato da princesa buscada poderia caber em seu pé. Mas tinha dúvida: "Caberá mesmo?". Aquilo mais parecia sonho que realidade.
O mesmo espanto senti eu e muita gente mais quando a coisa se revelou. Lula veio a público dizer que Dilma seria a candidata sua e do PT à Presidência da República. Não dava para acreditar. O PT também reagiu, tentou convencer Lula de que aquilo era um disparate, mas não conseguiu. Como sempre, prevaleceu a vontade do líder absoluto e incontestável. Tudo isso se sabe, claro, mas pretendo é que avalie bem o que ocorreu.
Vamos adiante: porque nunca disputara eleições, era natural que não tivesse eleitores, muito menos para ganhar um pleito presidencial - ou seja, conquistar os votos de mais da metade de 130 milhões de eleitores. E chegou lá graças a Lula, que, para elegê-la, usou toda a máquina estatal e desconsiderou a lei eleitoral. O resultado é que temos, diante de nós, agora, uma presidente da República que é uma surpresa até para si mesma.
Eleita sem ter votos! É quase como um suplente de senador. Olho para ela e me pergunto: essa senhora é de fato a presidente do Brasil ou se trata de uma personagem de novela? Acredito até que ela, às vezes, se belisca para ver se é mesmo verdade. O que não significa que fatalmente fará um mau governo, já que tudo é possível neste mundo surrealista latino-americano. Desejo-lhe boa sorte.
Ferreira Gullar
Desenho e aquarela
Desenho - Desenho em tinta china a pincel e pena caligráfica; e aquarela sobre papel
Os pássaros
Luis Fernando Verissimo
Um dos meus Hitchcocks favoritos é um dos filmes mais estranhos da história do cinema. Em "Os pássaros" o sempre explícito Hitchcock faz uma parábola obscura que só pode ser descrita como um prelúdio para o fim do mundo.
O filme é sobre os últimos dias de harmonia entre a Humanidade e a Natureza e termina — como nenhum outro filme do Hitchcock — sem resolução ou explicação, pois o único fecho adequado seria o Apocalipse.
Numa pequena cidade da costa californiana, os pássaros começam a atacar as pessoas. Ninguém sabe por quê, e o filme acaba sem que se saiba por quê. É uma história de horror sem vilões. Um filme com violência e mortes em que não aparece uma arma, salvo os bicos dilacerantes dos pássaros.
Já se disse que "Os pássaros" é, antes de mais nada, sobre a conhecida misoginia do Hitchcock, já que no filme as mulheres são os alvos preferidos das bicadas.
E tudo começa com a chegada na pequena e idílica Bodega Bay de uma loira vinda da cidade grande que irá se intrometer na rotina do lugar e subverter a ordem natural das suas relações antigas, e concentrar a fúria das aves. Mas o filme vai além do que o Hitchcock gostava de fazer com loiras. Algo está sendo anunciado. Algum desconcerto está sendo vingado.
Li que pássaros mortos estão caindo do céu em regiões dos Estados Unidos e da Suécia. Ainda não se sabe a causa das mortes.
Como no filme do Hitchcock — especula-se, pois o próprio Hitchcock não deve ter entendido bem o que estava fazendo —, os pássaros estariam tentando nos dizer alguma coisa.
Pássaros caindo do ar são quase mais perturbadores do que pássaros nos atacando, pois sugerem um desconcerto sem refúgio, do qual não se escapa nem voando. Podemos viver com a ideia de pássaros retomando o mundo, mas não com a ideia de um mundo irreparável caminhando para o nada. Depois de pássaros caindo do céu vêm mortos saindo das sepulturas, o Juízo Final, sobem os créditos e Fim.
Ou então descobrirão causas perfeitamente racionais para a morte dos pássaros e tudo continuará como antes. Bodega Bay, por sinal, ainda existe.
Luis Fernando Verissimo
Protegiendo el secreto
Enrique Vila-Matas
Releer suplementos literarios de antaño puede parecerse a profundizar en el rostro cansino de las ovejas que un día nos narcotizaron. Pero no todos los suplementos operaron siempre como somníferos, los hubo también dinámicos y estimulantes y leerlos hoy puede devolvernos de golpe a un cierto clima de entusiasmo que casi habíamos ya olvidado. Recuerdo un Babelia de primera generación (entonces llamado El País Libros) que abría con un reportaje ultramoderno sobre Roland Barthes, visto no como un pensador únicamente, sino como un pensador y un frecuentador de discotecas. Eran tiempos en los que, como veníamos de mojigatas épocas de cerebro plano, todo lo que parecía nuevo nos creaba la sensación de estar alejándonos de la sempiterna gravedad de nuestro paisanaje.
Ayer di con un El País Libros (3 de agosto de 1980) que dedicaba tres páginas a una entrevista a una "desconocida" llamada Patricia Highsmith. Lo hallé perdido en un viejo tomo de filosofía, y estaba ya totalmente ambarino, sin duda aburrido de haber permanecido olvidado tantas décadas, y más aún en un tomo tan severo. Nada más encontrarlo, recordé de inmediato la Gran Sensación - así con mayúsculas - que en su momento me causaron aquellas tres páginas ligeras y heterodoxas, tan desprovistas del polvo de lo metafísico. En ellas, la desconocida era entrevistada por Óscar Ladoire y Fernando Trueba, a los que les decía cosas que entonces a nosotros -pasajeros todavía del túnel estalinista- nos chocaban: "No soy muy popular en Estados Unidos, lo sé, y me da igual. Escribo para divertirme".
¿Para divertirse? No era frecuente escuchar eso en un escritor, y menos en un entorno de viejas baladas familiares, porque el suplemento lo completaban severos artículos sobre Hoyos y Vinent y Xavier Zubiri, reseñas de libros de León Trotski y Salvador de Madariaga. En aquel duro entorno casi iraní, aquella desconocida que decía en el suplemento que escribía para divertirse parecía la vedette francesa que caía despistada en un pueblo castellano en Nunca pasa nada de Juan Antonio Bardem: "Más leída en Francia, Inglaterra y Alemania que en su país de origen, prácticamente desconocida en España, Patricia Highsmith es la maestra indiscutible de un género que parece pertenecerle, un género donde lo cotidiano y lo psicológico no son sino un anzuelo...".
El género era el de la "novela policiaca", que, según contaban Ladoire & Trueba, acababa de conocer un boom editorial en España, "con el regreso de algunos clásicos, el descubrimiento de otros y el injusto olvido de los no favorecidos por la lotería editorial". Precisamente esa mención a los olvidados les permitía introducir, por primera vez en España, el nombre de la escritora americana que vivía sola en el pueblecito francés de Montcourt, en la región de Seine-et-Marne, donde, refugiada del mundanal ruido, soñaba crímenes.
Aquella entrevista no habría sido la misma sin la tensa descripción inicial de un viaje por carretera hasta la emboscada finca de la creadora del asesino Ripley. La descripción de Ladoire & Trueba, releída hoy, sigue recordándome a la de Eça de Queiroz en El misterio de la carretera de Sintra. Era una narración que iba creando un clima de intriga, muy adecuado para ir acercándonos al Lugar del Crimen, como habría podido llamarse perfectamente la casa de la escritora: "Para llegar a Montcourt hay que atravesar multitud de carreteras de segundo orden y cruzar el río Loing. Este y los bosques que lo rodean se nos antojan sembrados de cadáveres. Se diría que a quien vamos a visitar en realidad es a Tom Ripley, el asesino de Dickie Greenleaf, aquel inseguro joven americano...".
No hacía mucho que Wim Wenders había adaptado con éxito al cine El amigo americano, basado en una novela de Highsmith, Ripley's game. Aquella entrevista del dinámico dúo Ladoire & Trueba la completaba la curiosa inclusión de un recuadro conteniendo la bibliografía de Highsmith íntegramente en inglés, lo que me permitió imaginar una obra tan enigmática como fabulosa. La exótica bibliografía, que parecía querer indicarnos que todavía estaba por publicar entre nosotros la obra entera de aquella señora genial, le abrió sin duda el paso en estas tierras y en noviembre de 1981 aparecían ya dos libros en Anagrama: La máscara de Ripley y A pleno sol (El talento de Mr. Ripley).
Releo la entrevista y observo que los visitantes de la señora de Montcourt analizan con agudeza los métodos utilizados por ella para escribir algunos de sus libros. Le dicen, por ejemplo, que Ripley comete grandes torpezas, mata impulsivamente, no prepara sus crímenes, los elabora después, cuando dedica todo su esfuerzo a la forma de camuflarlos. Creo yo también que uno de los encantos de Ripley radica en su sofisticada máquina de confeccionar laberintos para no ser descubierto. Pero Highsmith no está por la labor de ser analizada y, tratando de proteger el secreto de su talento, interrumpe la disertación de los entrevistadores:
- A veces no entiendo exactamente las preguntas. No las preguntas de ustedes, sino todas las preguntas. No acostumbro a reflexionar sobre mi trabajo, a dar opiniones definitivas.
Falso. No fue tan alérgica a las reflexiones. Escribió unas estupendas notas recogidas en Suspense, notas de una apabullante sencillez y quizás construidas con la envidiable simpleza de quien sobre su oficio reflexiona lo justo, en realidad lo justo para no entrar en una deriva intelectual innecesaria, seguramente para no revelar de verdad cómo ha hecho sus libros... A veces con su falsa inocencia recuerda las actitudes no intelectuales de Simenon, que también buscaba divertirse cuando escribía. En realidad, tanto ella como él vienen de Chéjov. Y los dos coinciden en la forma simple pero enigmática, de llegar al corazón de las historias después de haber pasado por el hallazgo de un comienzo banal. En Suspense precisamente Highsmith habla de esos acontecimientos insignificantes que pueden poner en marcha una narración: "En todo hay el germen de una idea: en un niño que cae sobre la acera y derrama el helado que lleva en la mano; en un señor de aspecto respetable que está en una verdulería y, furtivamente, se mete una pera en el bolsillo sin pagarla".
Aquella tarde, sin embargo, ante sus visitantes españoles, como seguramente ante todos los que le hacían preguntas, no estaba dispuesta a soltar prenda y se hizo la inocente y quizás jugó - como Ripley - a camuflar sus delitos, si los hubiere. Su conducta, vista ahora treinta años después, pone en marcha una narración; la historia de una mujer que no está dispuesta a revelar el sencillo secreto de su arte a nadie. Esa actitud de Highsmith me recuerda a Simenon cuando, con ganas de jugar (de divertirse, en definitiva) se mostraba totalmente perplejo con André Gide, que no paraba de escribirle cartas, llenas de preguntas, casi todas sobre sus mecanismos creativos. Según Simenon, "durante toda su vida Gide tuvo el sueño de ser un creador y no un filósofo, y yo era exactamente su opuesto, y creo que estaba interesado en mí por ese motivo". Simenon tampoco le dio pistas fiables a Gide sobre su proceso creativo y éste murió - ahí habría también una buena historia para una novela - sin saber cómo se podía ser tan sencillote y al mismo tiempo tan extremadamente creativo.
Desde el primer momento, lo que envidié de Highsmith fue que supiera ser una escritora tan astutamente simple. Es muy posible que por eso guardara ese suplemento de aquel 3 de agosto. Haberlo ahora reencontrado puede ayudarme en mi camino. Highsmith me parece alguien que se dedicó siempre a proteger su secreto, suponiendo que lo tuviera, porque cabe sospechar que su único secreto era el poder de su imaginación: "Una calle miserable en alguna parte, llena de cubos de basura, chiquillos, perros vagabundos, es tan fértil para la imaginación como una puesta de sol en Sunion, donde Byron grabó su nombre en una de las columnas de mármol del templo de Apolo". Dicho de otra forma: todo en esta vida es tan misterioso como la carretera de Sintra, y todo es novelable. Y sencillo. Qué envidia. Envidia sana, claro, pero también dolorosa.
Enrique Vila-Matas - Publicado em El País
Rabo-de-gato-vermelho
Quem foi que viu?
Meu gato sumiu.
Que gato que é?
Que gato que é?
Tem rabo vermelho
E olho dourado.
Como é que é?
Como é que é?
É gato, é gato.
Juro que é.
Eu vi, eu vi.
Juro que vi.
Quem viu, mentiu.
Gato vermelho.
Nunca existiu.
© Cleonice Bourscheid