Domingo, 26.12.10

A torre de ferro

Um "martelinho" de Claudionor no Mercado Público, junto à Torre de Ferro

 

 

 

 

 

 

 

Camafunga - Marcelo Freda Soares Comemoração - Fotografia - Blog do Camafunga (Mercado Público - Pelotas RS Brasil), 2010

 

(N.E.: ...e no céu, um gato amarelo)

publicado por ardotempo às 19:46 | Comentar | Adicionar

O exíguo livro de versos

Formigas do Colorado


Pedro Gonzaga

 

 

 


À luz de um sol branco

- dezembro arde em Porto Alegre -

busco abrigo às cegas

na fachada do antigo sebo

tantas vezes percorrida

em horas mais cálidas.

 

Mergulho na penumbra,

e um cheiro doce

que sabe a mofo

brota dos cadáveres,

silenciosos e encadernados faraós

desprovidos de pirâmides.


Enquanto meus olhos

se acostumam à noite ali dentro

meus dedos percorremcom vaga cautela

as estantes empenadas em que

livros de fantasiosas ciências,

roucos,

apelam da escuridão:

um compêndio de biologia,

um tratado de química orgânica em espanhol

que cansou de dizer a realidade em 1940,

tantos carbonos e hidrogênios

inutilmente

desperdiçados.


Pouco depois,

uma grossa lombada diz

em inglês

Fomigas do Colorado.


Assusta-me o fato de que um homem

perdido entre longínquas montanhas

tenha dedicado sua vida às

formigas do Colorado.


Que promessa de felicidade terrena

ou eterna

pode levar alguém

a dedicar a força de seus membros

a usina de seu cérebro

o combustível limitado das gônadas

às formigas do Colorado?


Quase posso vê-lo,

senhor das formigas,

circunspecto

lustroso de autoridade,

garboso na sala decorada com esmero

madeiras escuras

e envernizadas

o feltro verde sob o tampo

o digno gabinete

do digno autor de

Formigas do Colorado.


Você não tem seriedade,

mr. Gonzaga,

você se farta na galhofa.

Onde está sua obra,

mr. Gonzaga,

onde está o seu legado?


A custo

penso nos dois volumes de contos

e no exíguo livro de versos

à espera de publicação.


Uma coisa, no entanto, me consola,

senhor Formigas do Colorado,

e a você dedico este semi-sorriso frouxo

que meus lábios não labutam para manter:

eu estou aqui,

vivo,

meu sangue ferve,

posso ser fera esta noite,

meus músculos vibram

e tenho uma mulher

que me espera.


Tudo isso passa, eu sei,

mas, ah,

que se fodam

as formigas do Colorado.

 

 

 


Pedro Gonzaga

publicado por ardotempo às 17:44 | Comentar | Adicionar

Dois

Metade


Dividi em dois o que era inteiro,

escolhi uma das partes,

a outra joguei fora.


Quitei dívidas, virei metade,

com a verdade de quem

pega o melhor.


Como quem não tem certezas,

agora procuro o pedaço,

que de mim quer inteira.

 

 

 

 

 

 


Isolde Bosak

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publicado por ardotempo às 17:12 | Comentar | Adicionar

Bacana para aprender

Aprender línguas


Maria do Rosário Pedreira


Quando era professora de Português nos anos 80, zangava-me muito quando os alunos absorviam como esponjas e utilizavam até à náusea palavras e expressões brasileiras – em vez das equivalentes portuguesas – por passarem demasiadas horas a ver telenovelas. Claro que muitas destas expressões eram tão deliciosas e certeiras que era difícil recusá-las («mentira tem perna curta» é obviamente mais redondo e eficaz do que «mais depressa se apanha um mentiroso que um coxo»); mas eu, que passara a infância a ler o Tio Patinhas em traduções feitas no Brasil, com balõezinhos cheios de «grama» (relva), «bala» (rebuçado), «Oba!» e «bacana», nem por isso passara a utilizá-las no meu discurso (suponho que era por não as ouvir, e que isso muda tudo).

 

Preferia, por isso, que os alunos lessem quadradinhos a que vissem telenovelas, até porque a banda desenhada é um excelente veículo de aprendizagem do mundo, ao contrário do que muita gente pensa e diz. Uma vez, em conversa com o Fernando Pinto do Amaral, hoje a dirigir o Plano Nacional de Leitura, chegámos inclusivamente à conclusão de que muito do francês que sabíamos o aprendêramos nos livros maravilhosos do Tintin, do Astérix e de muitas outras BD que, ao tempo, não estavam traduzidas (ou talvez nós nos recusássemos a esperar pela tradução). É pena que hoje, apesar das reedições destes clássicos, muita gente não faça a mais pequena ideia da sua profundidade e ache que são apenas livros para meninos preguiçosos que não gostam de ler...

 

 



Maria do Rosário Pedreira - Publicado no blog Horas Extraordinárias

 

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publicado por ardotempo às 16:46 | Comentar | Adicionar

Ruínas da Enfermaria, de Jaguarão

Futuro Museu do Pampa (CIP)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Futuro Museu do Pampa, CIP - Projeto de Marcelo Ferraz, Isa Ferraz e Marcelo Macca -  Jaguarão RS Brasil

publicado por ardotempo às 13:55 | Comentar | Adicionar

A vidente

E continua chovendo...


Ferreira Gullar


Em 1975, em Buenos Aires, dei a Vinicius de Moraes um quadro pintado por mim. Mas foi o de menos, tantas outras coisas que aconteceram naquela época. Embora já conhecesse Vinicius de antes, em Buenos Aires, quase dez anos depois, é que nos tornamos amigos.E a amizade se consolidou mesmo depois da manjada leitura do "Poema Sujo", que fiz, a pedido dele, na casa de Augusto Boal. Como se sabe, me fez gravar o poema numa fita e o trouxe para o Brasil.

 

Naquela ocasião, Vinícius começava a namorar uma argentina, bem mais jovem que ele e, por causa disso, mudou-se provisoriamente para Buenos Aires, instalando-se num apart-hotel, no centro da cidade. Desse modo, mantinha-se a salvo de qualquer reação da outra namorada, uma bela mulata baiana, com quem vivia em Salvador.

 

Essa permanência do poetinha na Argentina tornou frequentes nossos encontros e, mais ainda, porque recebeu a encomenda de uma editora francesa para fazer o texto de um álbum fotográfico do Rio de Janeiro. Sabendo de minha situação financeira periclitante, convidou-me para escrever o livro com ele.Foi então que os militares derrubaram o governo de Isabelita Perón e instauraram mais uma ditadura na América Latina.

 

Dias depois, Tenório Júnior, o pianista do show que Vinicius apresentava ali, desapareceu.

 

Embora casado, Tenório Júnior viera com uma namoradinha, que conheci no apart-hotel de Vinicius, naquele dia em que me falou do sumiço do pianista.

 

Pedira a ajuda do ex-genro, alto funcionário da embaixada brasileira, que nada conseguira. É que a ditadura militar recém instaurada prendera e executara muita gente e mantinha esses fatos em sigilo.Diante disso, ofereci a ajuda que estava a meu alcance: consultar uma vidente que havia localizado um filho meu, desaparecido, um ano atrás. Como o telefone da vidente não estava comigo, teria que ir a meu apartamento e, de lá, ligar para ela. Assim, acompanhado de Maria Julieta, filha do poeta Carlos Drummond, que naquela época trabalhava na Argentina, e da namoradinha de Tenório Júnior, segui para lá e liguei para dona Haydé, a vidente.

 

Após dizer-lhe o nome completo do desaparecido, ela me informou que o pianista deveria estar inconsciente ou morto, uma vez que não conseguia contatá-lo . (É que esse tipo de comunicação se faz de mente a mente).

 

Em seguida, para meu espanto, advertiu: "Diga a essa mocinha, namorada dele, que está aí com o senhor, que trate de ir embora para o Brasil, enquanto é tempo".

 

Como ela podia saber da moça? Mistério que a razão não explica. No dia seguinte, me deu a notícia final: Tenório Júnior tinha sido espancado até a morte por policiais, numa boca de fumo, onde fora comprar cocaína. Disse isso a Vinicius, que chorou.

 

Enquanto isso, sua namorada baiana recorria às entidades do candomblé para ver se o separava da rival argentina. Como os pais de santo não conseguiram resolver o problema, viajou para o Rio, entrou no apartamento do poeta e, lá, sobre a cama de casal, fez rezas e depositou fetiches, que também de nada adiantaram.Vinícius trouxe a argentina para o Rio e com ela viveu um intenso, ainda que efêmero, romance.

 

Mas foi numa visita que me fez, ainda em Buenos Aires, que lhe mostrei o autorretrato e, como ele disse ter gostado, dei-lhe de presente. Nunca mais vi o quadro, que ele trouxe para o Brasil. Se o deu alguém, não sei.A verdade é que, recentemente, minha amiga Guguta Brandão me informou que o cineasta Ruy Solberg era o atual proprietário do quadro e decidira dá-lo a mim de presente. E o fez num almoço com muitos amigos, na casa de Vera e Zelito Viana, há umas três semanas.

 

Quase uma solenidade, que me comoveu. Foi como se uma estrela, que se extraviara, voltasse do fundo da vida e me pousasse nas mãos. "Ao ouvir você na Flip, pensei: tenho que devolver o quadro ao Gullar, que é seu legítimo dono", disse-me ele. Gente fina, esse Ruy Solberg. E Zelito, de gozação: "Se fosse eu, não devolvia".

 

Outro dia foi a revista de Artaud, que voltou a minhas mãos, agora o autorretrato. Continua a chover na minha horta...


Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL

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publicado por ardotempo às 12:56 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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