Sábado, 18.12.10

Georges Bernanos

Uma literatura do desespero


Mariana Ianelli


No ano em que Paul Éluard publicava Capital da Dor e André Gide Os Moedeiros Falsos, um romance de estreia iria alvoroçar o meio literário francês vendendo 6 mil exemplares da primeira edição em apenas um dia. O estrondoso sucesso de público e a atenção da crítica que despertou Sob o Sol de Satã, do então desconhecido Georges Bernanos, em 1926, vieram prenunciar a consagração de um autor marcado pelas angústias de um espírito cristão no seio da modernidade. Sete títulos representativos da trajetória de Bernanos, que foi também jornalista, começam agora a ganhar as livrarias brasileiras, por iniciativa da Editora É, que inaugura a Coleção Georges Bernanos com o relançamento de Sob o Sol de Satã, há pelo menos uma década fora de catálogo, na tradução do poeta Jorge de Lima.


O itinerário sobrenatural que se configura nesse romance, protagonizado pelo padre Donissan, futuro santo de Lumbres, apresenta de maneira exemplar os embates de alma e corpo contra o mal a que todos os personagens de Bernanos de algum modo estão submetidos. Ambientado nos campos do norte da França, paisagem da infância do escritor, Sob o Sol de Satã traz em seu prólogo a história de Mouchette, uma adolescente atormentada, presa da luxúria e da destruição, que não consegue vencer a tentação do desespero, contra a qual luta o padre Donissan na primeira parte do livro. São duas potências contrárias, duas faces que se atraem e que se enfrentam dentro dos personagens e também entre eles: a necessidade da fé e o apelo do vazio, o poder da esperança e a contaminação do tédio, Deus e o Diabo em uma guerra encarniçada cujo desfecho, reconciliador dos opostos, na segunda parte do livro, só pode ser sinônimo da morte.


O próprio Bernanos, dois meses antes de sua estreia literária, em carta a Vallery-Radot, dizia estar “entre o Anjo luminoso e o Anjo obscuro”, observando a ambos “com a mesma fome raivosa de absoluto”. Pois é também assim que seus personagens se miram uns aos outros, uma face duplicando-se na outra, como Sob o Sol de Satã se duplica, após um período de dez anos, no Diário de um Pároco, romance que está na lista das próximas publicações. A imagem atlética do padre Donissan mostra o seu inverso na figura macilenta do pároco da aldeia, a perdição de Mouchette tem seu contraponto na salvação da senhora condessa, o encontro com o Diabo no ponto obscuro de uma estrada reflete-se agora na visão luminosa da Virgem e o beijo que o santo de Lumbres recebe do seu adversário transmuda-se no beijo amigo que o pároco de Ambricourt recebe de um soldado. O que envolve os personagens de Bernanos nesse jogo dialético é uma mesma noite satânica, uma potência de destruição que ensombrece a todos, induzindo-os à falta de amor e à perda da alma.


Existem conflitos e lugares carregados de simbolismo que são recorrentes na obra do escritor. Entre eles, a errância solitária dos padres por estradas enlameadas, o intervalo entre noite e manhã como um espaço de metamorfose existencial, e o lugar do confessionário, um dos mais emblemáticos, com seus tabiques de madeira “impregnados de vergonhas”, onde aquele que dá a paz não a encontra em si, tal como as páginas aflitas do diário de um pároco relatam seu testemunho de almas perturbadas em uma anunciação do Juízo Final. É importante dizer que também pertencem a um território de confissão os diversos olhares trocados entre os personagens de Bernanos, olhares que leem uns nos outros os pensamentos não verbalizados, a fixidez da luxúria, a mentira, a vontade de suicídio, aquela parte humana povoada de sombras cuja revelação involuntária põe a alma a nu diante do “olhar primeiro de Deus”.


A figura feminina tem igualmente papel relevante, pois além de encarnar a artimanha e a perversão, no caso da menina Mouchette, que se decompõe em Chantal e Seraphita no Diário de um Pároco, representa a inocência corrompida pelo mal. A figura do soldado, por sua vez, tão cara a Bernanos, tem na imagem de Joana d’Arc a representação máxima do heroísmo cristão. Tais personagens ressurgem na obra do escritor em A Nova História de Mouchette, romance escrito durante a Guerra Civil Espanhola, e Joana, relapsa e santa, ensaio biográfico sobre Joana d’Arc, dois outros títulos a serem lançados em breve.


Quanto aos temas sempre presentes para Bernanos, destacam-se a miséria enquanto fonte do desespero, alimentada por Satã, e a pobreza enquanto fonte da esperança, princípio de realeza de um povo errante, descendente de Cristo. O texto “Vida de Jesus”, que, tal como Um Sonho Ruim, permaneceu inédito até a morte do autor, fala da cristandade da pobreza. Para o escritor, a exploração do homem pelo homem perdura nos costumes, dentro de um “circuito infernal” que escamoteia a injustiça, que é parte da condição humana, ao tentar dispersar a força dos pobres e converter sua altivez em servilismo, se possível transformando-os em pequenos funcionários.


Referindo-se ao tipo grotesco com que Bernanos retrata Anatole France em Sob o Sol de Satã, no personagem do escritor Antoine Saint-Marin, André Malraux atribui a caricatura a uma herança das “gárgulas de Léon Bloy”. De fato, Bernanos compartilha com Bloy das opiniões mais enérgicas e controversas sobre a caducidade das academias literárias, sobre o sacerdócio da pobreza e um mundo de tal modo dominado pelo tédio e pelo niilismo que somente uma literatura do desespero seria capaz de responder à linguagem moderna, que “encontrou um meio de fazer da palavra misticismo uma injúria”.


Polêmico em sua militância nos anos de juventude, quando chegou a defender a causa monarquista, Bernanos lutou como soldado durante a 1ª Guerra Mundial, experiência que foi assimilada para sua literatura e que atesta uma preocupação intensa com a realidade histórica e espiritual da época, a ponto de o escritor, anos mais tarde, acompanhar de perto, em Palma de Mallorca, os expurgos de Franco e o envolvimento da Igreja na Guerra Civil Espanhola, denunciados em seu longo ensaio Os Grandes Cemitérios sob a lua.


O final do ano de 1938 marca o início do autoexílio de Bernanos no Brasil, país que ele chamava de “terra da esperança”, onde viveu por sete anos, entre Minas Gerais e Rio de Janeiro, e onde compôs seu romance Senhor Ouine, originalmente intitulado A paróquia morta. Também nesse período o escritor colaborou para a imprensa com seus “artigos de guerra”, depois reunidos em Ensaios e escritos de combate, além de ter mantido estreito contato com escritores e intelectuais brasileiros, como Alceu Amoroso Lima e os poetas Murilo Mendes e Jorge de Lima. Na sua conferência “Adeus à juventude brasileira”, proferida em dezembro de 1944 na sede da União dos Estudantes, no Rio, o escritor conclama os jovens a retomar o espírito de liberdade semeado pela Revolução Francesa. Não por acaso, é também a Revolução Francesa o cenário no qual se passa Diálogos das Carmelitas, única peça de teatro e última obra de Bernanos, concluída na Tunísia, em 1948, poucos meses antes do seu falecimento.


Mariana Ianelli - Publicado em O GLOBO (Rio de Janeiro RJ Brasil)

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publicado por ardotempo às 23:05 | Comentar | Adicionar

A cerimônia do expurgo

 

O nosso lado escuro à solta


Mariana Ianelli


Sob o Sol de Satã está de volta às livrarias e não podia ter surgido em melhor época, depois de tantos anos fora de catálogo. Basta um laço de fita e deixá-lo debaixo do pinheirinho cheio de luzes no centro da sala. O lar familial, antes das festas, do vinho e da mesa farta, merece mesmo o beijo do diabo.


Como acontece todos os anos na Guatemala, na queima dos diablitos de papel, um evento que reúne centenas de pessoas para expurgar os males antes do ano novo, ou como fazem em vilarejos da Áustria, antes do Natal, homens fantasiados de demônios, que saem pelas ruas arrastando correntes e perseguindo as crianças mal-educadas, também nós podíamos começar por fazer uma limpeza dos nossos recintos particulares, aqueles que nós escamoteamos, atapetamos, como se a nossa casa fosse sempre muito hospitaleira, muito encerada e agradável, e não existissem todas aquelas sombras, aquelas carantonhas, o quarto das fúrias mantido atrás do armário. Pelo destempero em casa por culpa do trabalho, pelo ataque de nervos no trabalho por causa do cansaço, pelo cansaço e a sujeira sob o capacho, pelo nosso riso irônico e a nossa pose enfatuada, pelo gesto obsceno e as respostas arrevesadas, pelos excessos, as refregas, a palavra venenosa, pelo nosso dar de ombros e o mau humor dado de graça, podíamos promover esse desfile de demônios antes da reunião de irmãos, primos, tios e sobrinhos no Natal.


Seria um desfile entusiasmante, o nosso lado escuro à solta, tudo o que é inspiração das intenções mais rastejantes, a praga de suçuaranas, de espinhos, cobiça e azedume passando sem cerimônia num expurgo memorável. Depois ficaríamos horas e horas à mesa bebendo e conversando, com aquela pachorra das tensões aliviadas, alguém levantaria um brinde, como pede a data, e seria uma algazarra, uma surpresa boa, seria enfim alguma coisa completamente nova.


Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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publicado por ardotempo às 16:13 | Comentar | Adicionar

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