Terça-feira, 07.12.10

O beijo ensaiado

A alma encantadora das ruas


Roberto Kaz


Em 1950, Françoise Bornet, uma jovem atriz, trocava beijos com o namorado, em Paris, quando foi abordada pelo fotógrafo Robert Doisneau (1912-1994). Qual um tarado diante do objeto de fetiche (no caso, o instante perfeito), Doisneau pediu que o beijo se repetisse, para um ensaio fotográfico encomendado pela revista americana "Life". Françoise declarou, anos depois, ter adorado: "Nós estávamos acostumados a beijar. Fazíamos isso o tempo todo".


Doisneau levou o casal, então, para três locais de Paris: a Place de la Concorde, a Rue de Rivoli e o Hôtel de Ville, pedindo que os dois se entrelaçassem com volúpia. Resultou, daí, "O Beijo do Hôtel de Ville" - foto-ícone do romantismo parisiense dos anos 1950. A imagem integra o livro "Paris Doisneau", publicado em 2009 na França, pela Flammarion, e relançado no mês passado, no Brasil, pela Cosac Naify. A publicação traz cerca de 500 imagens de atrizes, bêbados, açougueiros, crianças, cães, mercados, praças, pontes -todas com a cidade luz ao fundo.


O crítico de fotografia Eder Chiodetto, curador do Clube de Fotografia do MAM-SP, diz que Doisneau, como Henri Cartier-Bresson, é "um ícone da escola francesa que fez carreira na calçada".


Chiodetto acredita que a imagem do beijo, embora encenada, nada deva à realidade. "Doisneau soube orquestrar algo que existia. Era um momento de otimismo, após a Segunda Guerra Mundial. De fato, namorava-se muito nas ruas de Paris." Para casais apaixonados mundo afora, a fotografia foi alçada a símbolo do amor romântico. Para a jovem do beijo, rebaixada a uma longínqua memória. O namoro foi desfeito poucos meses após o retrato.

 

 

Roberto Kaz - Publicado na Folha de São Paulo/ UOL

publicado por ardotempo às 20:21 | Comentar | Adicionar

SVEGLIA, de Edson Migracielo

 

Lançamento de livro - Bamboletras

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O lançamento do livro SVEGLIA, do escritor Edson Migracielo, que ganhou Menção Honrosa no Prêmio Nacional SESC 2009, será lançado nesta quinta-feira, dia 9 de dezembro, às 19h na Livraria Bamboletras, em Porto Alegre, RS.


Publicado pela editora 7letras, o livro é um romance sobre a liberdade, mas tem uma característica particular: a história é contada sem pausas, em um parágrafo único, no qual diálogos, descrições e devaneios se misturam.


A intenção do autor é valorizar o ritmo e o som da obra, "um delírio da linguagem em transe de escrita", segundo ele.


Trecho do livro:


Chegou num cavalo, com sede. Arfava. Ao redor do pescoço pendia num barbante uma chave pendurada e pelo menos visíveis não eram as asas que proclamava ter. Bradou: água! Quero mais que me ver! Quero me lambuzar no sangue do tempo! Quero nascer! Água! Água! Arfava. Gostava de consumir-se no seu fardo que pertencia a cada um a seu modo e no caso dele era o mistério. O mistério em que refestelava-se levava-o imune pelo  mundo, e ele precisava aceitar como um prêmio aquela dor. Porque era dor também um fardo como o mistério, como o segredo vivo da morte, carregar-se assim como um iluminado e sem chamar a atenção como um passageiro. As pessoas eram roubadas e não percebiam, achavam que ele era apenas condescendente. Mas ele via nos encontros e nos sucessos os efeitos, e os tomava por causas num pressentimento de trás para a frente que era como divertir-se. Com as mais diversas máscaras cuspia atravessado em algumas caras. Como uma invenção móvel e imprecisa, assim moldava-se a cada vez distinto. Pois queria amar mas o amor quanto maior mais implacavelmente o dissolvia no grande pavor de um nada. Mas o céu restava. O céu estava sempre lá e as estrelas vinham à noite e nenhum espelho devolvia com fidelidade seu genuíno suspiro quando alguma delas caía. O fogo ardia num transe e ele pegava-se emprestado algumas chamas altas, para queimar-se. Para cumprir o misterioso fardo de consumir-se. As bolhas das queimaduras estouravam conforme as revoluções da lua e ele era novo. Bastava começar a caminhar e ele já era um rosto sem o sim e o não que conhecia, e cultivava, um rosto fabricado pelo futuro de todos, andando na rua entre mil outros. Famílias e descaminhos atiçavam-lhe a imagem e ele dizia muito, escrevia, ele acabava falando demais e deixava-se perpassar por flechas quando muito mais fácil teria sido abandonar os personagens. Mas não é fácil viajar sem a vida ou mesmo miseramente distante dela. E o fumo, e um café forte cujo cheiro já era uma promessa, café feito às pressas para abraçar a insônia. Para abraçar as máscaras, removê-las atentamente do papel cuidando que suas letras permanecessem unidas como na palavra Sveglia. E assim como a verdade, Sveglia também é sempre o filho trazido do cemitério onde ventava muito quando acordei. Receei que o sono do início fosse querer me levar outra vez: mas eu lembrava mesmo de quando estivera lá dentro, no escurinho líquido, atado por um cordão de carne?

publicado por ardotempo às 18:52 | Comentar | Adicionar

A paixão do discurso

Llosa versus Foucault


Através de Pedro S. Pereira, da Ohio State University, chegou-me às mãos o texto escrito por Pedro Meira Monteiro, investigador brasileiro a trabalhar nos EUA, sobre uma palestra que Mario Vargas Llosa proferiu na sua universidade (Princeton), poucos dias após a atribuição do Prémio Nobel de Literatura 2010.

 

É um texto instigante, que reage com inteligência ao ataque feito por Llosa a Foucault e ao desconstrucionismo.

 

Aos dois Pedros, agradeço a gentileza do contacto e a permissão para partilhar esta resposta com os leitores do Bibliotecário de Babel:

 

O anti-Foucault

 

Uma das muitas virtudes do pensamento conservador é lembrar, aos que temos a veleidade de afirmar-nos imunes à cantilena da conservação, que o nosso discurso é sempre guiado por fantasmas. De fato, não há voz que se sustente sem espectros. Quando falamos, a potência muitas vezes inconfessável que nos move é aquela que trabalha por materializar, diante de nós mesmos e dos que nos ouvem ou leem, um fantasma.

 

Anteontem, em Princeton, Mario Vargas Llosa, recém-laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, proferiu uma palestra intitulada “Breve discurso sobre la cultura”. Em sua fala, o alvo era, sem nenhum pejo ou temor, a figura “sofística” de Michel Foucault.

 

Incomoda profundamente, a Vargas Llosa, que a figura da Autoridade tenha sido profanada pela geração de 68, a qual, iludida, teria feito tábula rasa da “cultura” (que ele cuidadosamente utiliza no singular). Até aí, nada de propriamente surpreendente, já que a postura conservadora do escritor peruano é bastante conhecida. O que me surpreendeu foi ver um módulo do pensamento conservador, que eu tive a oportunidade de estudar em detalhe em outro momento, reaparecer, quase intacto, diante dos meus olhos incrédulos.

 

Quando escrevi sobre o visconde de Cairu – um economista do início do século XIX no Brasil – , flagrei-lhe, em meio ao mais empedernido conservadorismo, algo que então considerei quase genial: a capacidade de apaixonar-se quando expende seus argumentos contra um alvo. A questão é menos simples do que parece: é que um conservador existe siderado pela necessidade de reagir à soltura dos instintos e dos corpos.

 

(Por isso, em geral, o conservador é aquele que sabe, com razoável ou inquebrantável segurança, o que é a “barbárie”.)

 

No caso de Cairu, a soltura dos corpos se revelava plenamente na loucura da massa torpe e ignara (a Revolução Francesa), e nos avanços subsequentes do “dragão corso” (Napoleão Bonaparte) pela Europa. Eis o paradoxo: o autor, que cautelosamente reage aos indivíduos que se deixam tomar pelas paixões, deixa-se ele mesmo tomar pela paixão do discurso, lançando-se aos mais incríveis golpes de efeito poético, comparando, por exemplo, as revoltas provinciais no Brasil imperial a uma “explosão” de vontades mal concertadas, mais perdidas e enfurecidas que “os átomos de Epicuro” soltos no espaço.

 

O velho ranzinza (o frei Caneca chamava-lhe “rabugento sabujo”) deixava-se tomar pelas mesmas paixões que pretendia controlar, e era pela soltura de sua imaginação, e de seus demônios, que vinham à página seus melhores momentos como escritor. O problema é que Cairu nunca foi um bom escritor.

 

Guardadas as diferenças e as proporções (Vargas Llosa é, naturalmente, um bom escritor), o autor peruano tem também o seu dragão, que não é corso, mas é ainda francês. Sua ira mal contida, derramada anteontem contra Foucault, chegou a momentos de incrível ousadia, como quando o espírito “sofístico” do filósofo de maio de 68 é lembrado em paralelo à degradação de seu corpo.

 

É que Foucault, sendo o emblema mesmo da geração de 68, e herói-intelectual daquela aventura tresloucada, entregou-se também aos desvios do corpo e da alma. Foi com pasmo que ouvi Vargas Llosa evocar as famosas e já folclóricas excursões do filósofo francês pelas saunas e bares gay de San Francisco, até o ponto de que sua morte com AIDS (referida também na palestra) ficasse no ar, como uma espécie de justiça poética e maldita, que recai sobre aquele que tragicamente negou o aspecto dissoluto de sua vida moral.

 

Houve outros momentos de pasmo para mim, como quando sua ira se estendeu a toda uma tradição do pensamento crítico no pós-68, e quando, dos teóricos pós-estruturalistas (De Man, Derrida), ouvimos as piores coisas, pelo menos até que, num estranho golpe de misericórdia, se dissesse que o que tal pensamento produziu não é muitas vezes mais que uma inútil e aparatosa “masturbação” (sic).

 

Eu respeito o pensamento conservador, e respeito especialmente aqueles que, como Vargas Llosa, têm a coragem de defendê-lo e de, ao mesmo tempo, sustentar publicamente sua voz, cultivando, ademais, a forma do diálogo. Há, contudo, pelo menos um equívoco grande naquilo que disse anteontem o ganhador do prêmio Nobel deste ano: em dado momento, ele reproduziu a já usada e cansada gracinha de que, diante de um texto de Derrida, nada ou pouco se compreende. Foi aí que pulei da cadeira, e vi meu próprio demônio diante de mim: não é verdade que ele nada tenha compreendido dos textos de Derrida! Que não compreendeu os textos em si, o seu “breve discurso” deixa claro. Mas ele compreendeu – e como conservador, compreendeu perfeitamente – que o gesto de desconfiança em relação ao sentido, que está no coração da aventura desconstrucionista, é o mais perigoso dos gestos, porque comporta a aposta no desejo e a possibilidade mesma do desvio. Mas desvio de quê? Rumo a quê? À cultura? Ou estamos todos perigosamente fugindo da cultura? Cultura de quem? Para quem?

 

Vargas Llosa não crê que, transviados, cheguemos à cultura. Por isso, o seu é o discurso da retenção, da contenção, e do recalque em relação aos poderes dissolventes do corpo, ou do Corpo.

 

É de fato uma enorme questão, que o “Breve discurso sobre la cultura” tem o mérito de trazer de novo à baila. Como acontece com quase todo conservador, o mais importante talvez não seja o que ele propõe, mas sim aquilo de que ele foge.

 

Pedro Meira Monteiro (Princeton University)

 

 

 

 

 

A forma como Llosa terá atacado Foucault, moralizando a partir da conduta sexual do intelectual francês, não deixa de ser estranha, se a analisarmos à luz do seu último romance: O Sonho do Celta. É que um problema semelhante se colocava na abordagem à personagem central do livro, Roger Casement.

 

Homossexual não assumido, Casement vai aparecendo ao longo da narrativa em momentos de entrega aos seus instintos sexuais, umas vezes consumados, outras vezes apenas com a sua fantasia como palco. A importância do comportamento do cônsul (apenas uma das muitas facetas da sua personalidade) prende-se com um dos nós dramáticos da aventurosa história deste irlandês. Condenado à morte por traição, Casement tinha muitos intelectuais do seu lado, assinando petições para um indulto por parte do governo inglês. É então que surgem, publicados nos jornais, supostos fragmentos dos seus diários secretos; os Black Diaries, nos quais o cônsul teria registado, em registo minimalista mas muito gráfico, as suas aventuras eróticas com rapazinhos em África e na Amazónia. O efeito da publicação destes excertos foi devastador, não só para a sua reputação como para o esforço dos seus amigos para o libertarem da forca. Até hoje, os ditos Diários Negros continuam a ser um foco de intensa polémica. Há quem garanta que foram manipulados e truncados (em suma, forjados) pelos serviços secretos ingleses, para desacreditar de vez Casement, e há quem garanta, com testes grafológicos, que os diários são verdadeiros. Em O Sonho do Celta, curiosamente, Llosa assume uma posição intermédia. Fazendo-se valer das prerrogativas romanescas, mostra-nos um homem que regista no seu diário alguns encontros amorosos esporádicos com rapazes novos, sim, mas que imagina todos os outros, nomeadamente os que mais poderiam escandalizar a sociedade puritana do início do século XX. Mais do que a transcrição da sua vida erótica real, os diários seriam o mapa do seu desejo recalcado.

 

Em momento algum o narrador de Llosa deixa entender uma condenação explícita da sua personagem por razões morais. Pelo contrário, parece compreensivo diante do sofrimento e da angústia que aquela existência oculta decerto provocou em Casement.

 

Tendo isto em conta, custa-me efectivamente a entender o violento ataque a Foucault e a baixeza dos argumentos utilizados na conferência de Princeton. Mas, se as coisas se passaram da forma que Pedro Meira Monteiro descreve (e não tenho razões para duvidar da sua palavra), então prova-se mais uma vez que é sempre necessário separar o escritor do homem público que o encarna, porque a pequenez do segundo não deve pôr em causa a grandeza do primeiro.

 

José Mário Silva - Publicado em Bibliotecário de Babel

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publicado por ardotempo às 11:07 | Comentar | Adicionar

Começa quando se termina

 

El llanto enigmático

 

Enrique Vila-Matas

 

Hacia el final de un coloquio en Pamplona, en el formidable café Alt Wien, en el parque de la Taconera, una joven levanta la mano para decirme con mucha gracia que le ha interesado mucho todo lo que allí se ha hablado, aunque no ha entendido nada. Me parece fascinante. "Lo ideal", le digo, "sería que todo lo que has oído esta tarde aquí te acompañe al salir, lo ideal es que empiece en ti cuando todo esto termine".


Me doy cuenta al instante de que mi respuesta me ha devuelto a la entrevista a Antonio Lobo Antunes que he leído por la mañana en el avión. Le dicen al narrador portugués que, debido a que es difícil entrar en su escritura, agradecerían un consejo para un lector que se frustrara después de haber leído un libro suyo y no haber entendido nada. Y Lobo Antunes contesta:


-La primera vez que Téophile Gautier vio Las meninas de Velázquez dijo: "¡¿Pero dónde está el cuadro!?". Para mí es la mejor crítica de arte que leído en mi vida. Es el mejor elogio que se le puede hacer a una obra de arte.


Las palabras de Lobo me han llevado a recordar, esta mañana, las ocho o nueve tardes casi seguidas en las que, cuando tenía 15 años, vi en Barcelona la película El año pasado en Marienbad, siempre con el objeto de tratar de entenderla, ya que sentía que el filme me desafiaba y me hacía dudar de mi inteligencia, puesto que, por mucho que pusiera de mi parte, no lograba entenderlo nunca. Fueron días memorables en los que, al salir por las tardes del colegio de los jesuitas de la calle de Casp, subía paseo de Gràcia arriba a toda velocidad y me dirigía al cine Publi, dispuesto a ver por enésima vez la película y tratar por fin de comprender algo. Contaba con la inestimable complicidad del tío de un amigo, que era acomodador en esa sala y me dejaba pasar sin pagar. Ocho o nueve veces vi el filme y no lo entendí nunca, pero es que nunca. Luego, con el tiempo, perseguido por aquella experiencia de juventud, fui entendiéndolo de mil maneras distintas. Todavía hoy la película me entusiasma, aunque no es precisamente lo que le dije a su guionista y gran responsable del duro enigma, Alain Robbe-Grillet, la tarde en Barcelona en que le conocí y no pude evitar comentarle la cantidad de veces que había visto El año pasado en Marienbad con el objeto de tratar de entenderla.

 

-¿Y la entendiste al fin? -me preguntó de inmediato Robbe-Grillet.


Me di cuenta de que me la jugaba, de que según lo que le respondiera iba a pensar que yo era un imbécil, de modo que opté por contestarle la verdad. Si quedaba en ridículo, al menos que fuera habiéndole dicho la verdad.


-No. Sigo sin entenderla - le dije.


Vi como la sonrisa de Robbe-Grillet se triplicaba, feliz supongo de haber comprobado que, tantos años después, El año pasado en Marienbad seguía causando trastornos y siendo una fuente de energía creadora, una inagotable fuente de interpretaciones.


Pensé en Pamplona en todo esto al evocar aquella respuesta de Lobo Antunes, que, como le apuntaba el propio periodista, parecía estar insinuando que a él le gustaba que, al terminar sus novelas, los lectores se preguntaran dónde estaba el libro.


-Exactamente -le contestaba Lobo-. Los libros que me gustan empiezan en mí cuando termino de leerlos.


La frase me recuerda ahora lo que hace años me dijera Mercedes Monmany acerca de los libros que uno escribe y pierde, pierde para siempre, porque se apoderan de ellos los lectores, que los continúan en el espacio y el tiempo, lejos ya de quien los escribiera. Esa es la clase de libros que más habría de interesarnos a todos escribir, aquellos que empiezan en los lectores cuando estos acaban de leerlos.

 

 

 

 


Creo que hay algo de lo que me olvido en demasiadas ocasiones, pero que en los últimos tiempos pierdo menos de vista: en el arte de narrar no es necesario que todo quede explicado. Parece que es algo que sabían muy bien los clásicos. La mitad, como mínimo, de lo que contamos debe quedar sin explicaciones que lo hagan demasiado comprensible. ¿O acaso vamos nosotros por la calle comprendiéndolo absolutamente todo?


Una historia que quede bien explicada carece de excesivo interés, es más informativa y periodística que narrativa. Hay una historia que cuenta Heródoto que contiene ciertas fórmulas para construir - si el talento es también nuestro aliado - narraciones perdurables. Es la historia del faraón Psamético. En ella se nos cuenta cómo, tras la caída de Menphis, 500 años antes de la era cristiana, Psamético fue capturado por el ejército persa junto con su familia. Según el relato, el cruel Cambises puso a prueba la entereza del faraón infligiéndole el más doloroso de los castigos al colocarle en un ángulo de una vía a través de la cual iba a pasar el desfile de la victoria; un lugar estratégico desde donde le hizo ver también a su hija convertida en sirviente y a su hijo, completamente vejado, marchar camino de una dura muerte. Dice Heródoto que Psamético no se conmovió ante la suerte de su familia y aguantó firme, con la mirada en el suelo, todo lo que tenía que ver y que tan solo al final de todo se desmoronó, se derrumbó cuando reconoció entre los prisioneros a uno de sus sirvientes, un hombre viejo y miserable. Entonces, rompió a llorar. El misterio de ese incomprensible llanto permanece todavía hoy. Montaigne trató de explicarlo, pero no logró convencerse ni a sí mismo, porque acabó abriendo aún más interpretaciones del misterio de aquel extraño comportamiento. "Lo seguro es que hoy un periodista lo daría explicado de inmediato", escribió Walter Benjamin a propósito de este relato de Heródoto en el que veía el modelo ideal de narración, el cuento que nunca se entrega. Desde luego ha llegado hasta nuestros días, ha llegado hasta aquí, y es una historia que nunca nadie se acaba de explicar, quizás porque empieza en nosotros cuando terminamos de leerla.


Enrique Vila-Matas

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publicado por ardotempo às 10:28 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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