Segunda-feira, 29.11.10

Olhos remotos

 

Os desaparecidos

 

Mariana Ianelli

 

Os olhos remotos com que nos olham as pessoas da galeria dos desaparecidos.

 

Falo daquelas fotos que vêm no verso dos cupons de pedágio, como para lembrar o meio de estrada em que todos eles se perderam um dia. Fotos que datam da época em que pela última vez foram vistos, há seis meses, dois anos, duas décadas. Meninas que, pela expressão brejeira, inevitavelmente me levam a pensar num destino terrível. Meninos que hoje, se estão vivos, são homens feitos. E também aqueles que eram já mulheres e homens feitos quando sumiram.

 

Deve existir nessa galeria pelo menos um par de olhos autodenunciadores, olhos que já sabiam. Entre os que desapareceram por acidente, por loucura ou por tragédia, existirá pelo menos um, imagino, que partiu sabendo o que fazia. Alguém que não pôde evitar a encruzilhada depois da qual nada voltaria a ser como antes. Alguém que deixou o seu passado ardendo em uma cidade qualquer e que seguiu adiante, sem olhar para trás, como admoesta o anjo.

 

Um pai de família, uma pacata dona de casa, um senhor de negócios, um artista, enfim, alguém que deixou para trás sua impecável biografia e que reapareceu para o mundo na pele de um agricultor, um tropeiro, um eremita. Alguém, não importa mais com que rosto: um outro. Para quem essa antiga foto no rol dos desaparecidos hoje incomodaria tanto quanto os que são procurados pela polícia, por terem cometido o crime de desertar, de abandonar uma história, um ofício, uma família, por terem partido porque urgia partir, assumir um recomeço total. Os olhos remotos com que nos olham essas pessoas que um dia atravessaram uma linha fronteiriça e que, descontando a má sorte, fizeram a viagem que poucos de nós ousariam fazer, a viagem sem rastro, a narrativa apócrifa de uma vida mais rica pelo que perdeu, mais livre pelo que encontrou.

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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publicado por ardotempo às 18:19 | Comentar | Adicionar

Impossibilidades

 

Morte com data certa

 

Ferreira Gullar

 

Ele a viu, pela primeira vez, numa fotografia.

 

No mezanino da escola, na parede oposta à dos janelões, havia uma série de fotos que documentavam alguns momentos memoráveis daquele estabelecimento formador de quadros políticos que teoricamente iriam mudar a face do mundo. Não obstante, ali se realizavam reuniões festivas de que participavam diretores, professores, alunos e tradutores. Lina era uma tradutora e, sem sombra de dúvidas, a mais linda de todas. Ela ocupava, em primeiro plano, o canto esquerdo da foto, os cabelos presos na nuca e um sorriso que lhe iluminava o rosto redondo de menina. Calçava botas de cano alto e uma saia justa que lhe deixava à mostra os joelhos. Era como uma fada jovem, numa aparição de encanto, naquele universo político-ideológico.

 

Suspirou, certo de que aquela mulher estava fora de seu alcance, fora do alcance mesmo de seus olhos. Seria, talvez, uma visitante, que ali aparecera como convidada em alguma das festas. Viu a tal foto na primeira semana de sua chegada ao instituto, quando os cursos mal se iniciavam e as turmas ainda estavam incompletas. Poucos dias depois, as aulas começavam e foi aí que a viu em pessoa, lanchando na "stalovaia" da escola. Ela estava numa mesa próxima, tomando café e conversando com um grupo que falava espanhol. Em determinado momento, seus olhos se cruzaram, mas ela logo se voltou para alguém, disse-lhe alguma coisa ao ouvido e riu discretamente.

 

De noite, na cama, antes de dormir, lembrava-se dela, daquele sorriso, daqueles cabelos ruivos presos na nuca. Soube depois que era tradutora encarregada dos coletivos de alunos de língua espanhola, todos latino-americanos. Como os brasileiros se enturmavam com estes, também se davam com ela e foi assim que, certa tarde, na mesma lanchonete, ela sentou-se na mesa em que ele estava com um casal carioca. Foram apresentados e ela não pareceu dar maior importância ao fato, embora ele tivesse a impressão de que o seu olhar de algum modo a perturbava. Por sorte, algumas semanas depois, houve uma festa promovida pelo coletivo argentino, com tangos e tudo o mais, e nessa noite ele a tirou para dançar. Disse-lhe ao ouvido que a achava linda ("ótin craciva") e ela empalideceu.

 

Quando a festa acabou, ela, nervosa, sussurrou-lhe que a esperasse na estação do metrô. Pouco depois, tomavam o trem, desciam na estação perto da casa dela e, já de mãos dadas, penetravam num parque escuro e deserto àquela hora da noite. Puxou-o pela mão, sentaram-se num banco e ela, sorrindo, soltou os cabelos ruivos que lhe caíram encantadoramente sobre o rosto. Tentou beijá-la, mas ela se esquivou, ergueu-se do banco e o levou pela mão até à porta do edifício onde morava. Ali, beijou-o na testa e, com um adeusinho, sumiu no portão. Ele, de volta a seu quarto na "abchejite", mal acreditava no que acabara de viver. Ela era casada, vivia com o marido mas já não eram marido e mulher; é que, no socialismo, se o casal ganhara um apartamento, não tinha direito a outro, pouco importando se o casamento acabara ou não.

 

Na primeira noite em que ela o levou à sua casa, o marido ainda não havia chegado. Serviu-lhe um jantar, na cozinha, e ele, não podendo conter-se, declarou-se apaixonado por ela. Foi então que Lina lhe ofereceu a boca para um beijo que jamais esqueceria. O marido, Andrei, chegou lá pelas nove horas. Beberam vodca juntos e, como nevasse muito, aproveitou para dormir lá mesmo, no sofá da sala. De manhã, quando o marido se preparava para ir trabalhar, fingiu que ainda dormia e só se levantou depois que ele se foi. Aí entrou no quarto, jogou-se sobre Lina na cama e se amaram loucamente. Mas aquele amor tinha data certa para acabar: terminaria o curso e ele teria de deixar o país.

 

Na véspera da partida, foi para a casa dela e lá ficaram, os dois, de mãos dadas, beijando-se e chorando. Nem ele podia ficar nem ela podia mudar de país. Sem alternativa e para não perder o metrô, decidiu ir embora, sabendo que nunca mais a veria na vida. Mesmo assim, saiu e atravessou o parque, como um autômato. Na manhã seguinte, como um autômato, foi para o aeroporto, entrou no avião e partiu. Faz 37 anos e seis meses. Nunca mais se viram.

 

Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL

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publicado por ardotempo às 18:00 | Comentar | Adicionar

As mãos leves do eletricista de Picasso

Obras desconhecidas de Picasso são descobertas na França


Uma coleção de 271 obras do pintor espanhol Pablo Picasso, até então desconhecidas, foram descobertas quando um eletricista francês aposentado tentou obter os certificados de autenticidade dos herdeiros do artista, segundo revela nesta segunda-feira (29) o jornal "Libération".


As obras são do início do século passado e estão estimadas em cerca de 60 milhões de euros (R$ 137,2 milhões), acrescenta o jornal.
Entre as obras descobertas estão algumas pouco comuns, como nove "collages cubistas" pintadas no início dos anos 1920, um período no qual muitas das obras do artista acabaram se perdendo.


Há também uma aquarela da fase azul, estudos pintados sobre tela e cerca de 200 desenhos.


A extraordinária descoberta aconteceu depois que o eletricista aposentado Pierre Le Guennec entrou em contato com Claude Picasso, filho do pintor espanhol e encarregado de administrar sua obra.


Segundo o "Libération", em janeiro Le Guennec enviou fotos dos quadros para que fossem autenticadas como obras de Picasso, mas diante da recusa do herdeiro de dar seu aval sem ver os originais, o eletricista foi ao escritório de Claude em setembro.


Acompanhado por sua mulher, o homem, que vive em Côte d'Azur, mostrou as 175 obras inéditas, entre elas dois cadernos que contêm um total de 97 desenhos.


Após comprovar que não se tratava de falsificações, o herdeiro se perguntou como haviam chegado nas mãos de Le Guennec e dias depois apresentou uma denúncia à brigada especializada em obras de arte para evitar perder a coleção.


Os agentes atuaram com rapidez, abriram uma investigação e confiscaram as obras, que estão guardadas nos arredores de Paris.


Segundo o jornal, Le Guennec declarou à polícia ter trabalhado como eletricista de Picasso nas diferentes residências que o pintor teve em Côte d'Azur, e afirmou que foi o artista e sua esposa Jacqueline que lhe deram as obras.


No entanto, em declarações ao "Libération", Claude disse considerar a versão do aposentado sem fundamento, visto que seu pai não tinha o costume de dar presentes em bloco e, quando o fazia, sempre buscava registrar a doação.


"É certo que Pablo Picasso era bastante generoso. Mas datava, assinava e dedicava sempre suas doações, porque sabia que poderiam ser vendidas em momentos de dificuldades", assegurou.


Além disso, o advogado de Claude acrescentou que ninguém recebeu das mãos de Picasso um presente tão significativo em volume e tão importante em conteúdo artístico.


Por fim, o "Libération" questiona se o eletricista não esperou tantos anos para trazer as obras à tona como forma de se beneficiar da prescrição de um suposto crime de roubo.

 

(Autenticadas todas elas já estão, a questão agora é definir judicialmente se o eletricista poderá manter a sua posse e propriedade)

 

Publicado no UOL

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publicado por ardotempo às 17:43 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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