Domingo, 14.11.10

O jabuti sem carapaça e o leite talhado

A Editora Record e o Prêmio Jabuti

 

Carta do editor Sergio Machado à Câmara Brasileira do Livro sobre a atribuição do Prêmio Jabuti a Chico Buarque, pelo seu romance Leite Derramado.


"O Grupo Editorial Record – composto pelas editoras Record, Bertrand, Civilização Brasileira, José Olympio, Best Seller e Verus – decidiu que não participará da próxima edição do Prêmio Jabuti para claramente manifestar sua discordância com os critérios de atribuição do Livro do Ano de ficção e não-ficção. Tais critérios não só permitem como têm sistematicamente conduzido à premiação de obras que não foram agraciadas em seleções prévias do próprio prêmio como as melhores em suas categorias.

 

Como editores preocupados com a Cultura e a ampliação da leitura no Brasil, nós entendemos que um prêmio literário visa a estimular a criação literária reconhecendo-a pelo critério exclusivo da qualidade. Não aceitamos – principalmente em um país como o nosso, onde quase sempre o mérito é posto em segundo plano – que o principal prêmio literário atribuído pelo setor editorial possa ser conferido a um livro que não esteja entre aqueles considerados os melhores em seus respectivos gêneros.Infelizmente, a edição de 2010 do Jabuti não foi a primeira em que essa situação esdrúxula ocorreu.

 

Em outra oportunidade, o mesmo agraciado deste ano preferiu não comparecer à entrega do prêmio, talvez por não se considerar merecedor da distinção. Grande constrangimento na cerimônia. Em 2008, a situação se repetiu, com o agravante de o então vencedor da categoria Melhor Romance do Jabuti ter conquistado também todos os outros prêmios literários conferidos no Brasil. O episódio causou tal estranheza e mal-estar que foi grande a repercussão na imprensa. Na época, passamos a acreditar que seriam feitos os necessários ajustes na premiação para que esses equívocos parassem de ocorrer.

 

Vimos, porém, que os critérios equivocados continuaram em vigor em 2010, com a diferença somente de o autor agraciado desta vez aceitar a láurea. Tomamos então a decisão de não mais compactuar com a comédia de erros. As normas do Jabuti desvirtuam o objetivo de qualquer prêmio, pondo em desigualdade os escritores que não sejam personagens mediáticos. Para não mencionar fato ainda mais grave: quando é evidente que a premiação foi pautada por critérios políticos, sejam da grande política nacional, sejam da pequena política do setor livreiro-editorial. Como a inscrição das obras concorrentes ao Jabuti é um ato voluntário de cada Editora participante, e feito de forma onerosa, optamos não mais participar da premiação, até que as medidas necessárias para a correção de seu rumo sejam adotadas".


Aos seus autores, Sérgio Machado enviou por e-mail a seguinte mensagem:


"O Grupo Editorial Record decidiu que não mais participará do Prêmio Jabuti até que as regras e critérios de escolha do Livro do Ano sejam modificadas. Como editor responsável e orgulhoso de ter em catálogo o melhor da literatura nacional, não posso admitir que nossos autores sejam submetidos a recorrentes situações de constrangimento e injustiça. Enviei , hoje, à Câmara Brasileira do Livro e à Comissão do Prêmio Jabuti a carta comunicando esta decisão. Deixo claro que a posição da editora não impede que cada autor se inscreva individualmente no prêmio, o que é perfeitamente possível e legítimo. Só não queremos participar institucionalmente de um processo equivocado que dá margem a distorções vergonhosas".

publicado por ardotempo às 19:35 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

O gênero confrontado com o fogão profissional

Trecho de O JANTAR - de Naira Scavone

 

 

 

 

 

 

No senso comum, cozinha, comida e alimentação automaticamente associam-se ao gênero feminino e aos papéis sociais normatizados, como mãe, esposa, empregada, etc. Porém, quando falamos em gastronomia ou pensamos em restaurantes famosos ou jantares especiais e requintados, a associação que se faz é com a figura clássica do chef de cozinha, com sua doma (jaleco bordado, muitas vezes, cheio de prêmios) e chapéu alto.


O homem vem dominando a gastronomia profissional ou a “gastronomia especial” ao longo de toda a nossa história. Quando falamos numa cozinha aparentemente mais qualificada ou encarada como profissão, imediatamente ela é associada aos homens. Assim, essa hegemonia construiu um senso comum acerca do gênero no exercício da profissão que, consequentemente, também tem exercido poder na definição do bom gosto e na construção da alta gastronomia. Só para exemplificar, uma forma peculiar de demonstração de poder masculino na área consistiu em batizar as receitas ou pratos com nome de homens nobres ou homens da classe alta. Eventualmente, esse ato acabava por dar autoria da receita à pessoa, como o caso do molho maionese, atribuído ao duque de Richelieu, em 1756, ou o molho béchamel, invenção de um dos cozinheiros de Luís XIV que  homenageou o financista Luis Béchamel, marquês de Noitel.


Além disso, a palavra “chefe”, definida originalmente no dicionário como um substantivo masculino, vem desacompanhada de uma palavra no feminino (ou da designação do artigo) para a mesma função, talvez porque por muito tempo não fosse necessária, já que mulheres não eram admitidas nesse contexto. Não é preciso muito esforço para constatar a hegemonia masculina na profissão.


Historicamente e na contemporaneidade, a maioria – para não dizer 90% – dos chefs de cozinha e escritores de alta gastronomia é constituída por homens. Assim como a História Geral foi, com certeza, uma história contada e construída por homens, a história da alta gastronomia também. Além da hegemonia masculina na profissão, sua relação com o gênero feminino teve, na sua origem e por muito tempo, uma conotação inferior. Vale lembrar que, por exemplo, quando as mulheres começaram a exercer a profissão de cozinheiras, recebendo pagamento por essa atividade, só eram empregadas por aqueles que não eram ricos o bastante para pagar um cozinheiro homem (na época, elas eram chamadas cordons-bleues); contudo, essa expressão tornou-se posteriormente sinônimo de comida excelente.


A grande maioria de escritores e chefs reconhece que a alta culinária francesa atingiu seu apogeu na segunda metade do século passado, que também foi o século da cuisine bourgeoise. Ariovaldo Franco (2004) diz que, por muito tempo, a cozinha burguesa foi objeto de desdém de alguns chefs. Contudo, cozi-nheiras talentosas e exigentes foram responsáveis pela construção e pela consolidação de uma “cozinha de base menos aparatosa e mais realista” (FRANCO, 2004). Esse comentário –“mais realista”– supõe mais econômica, o que novamente separa os tipos de cozinha: a glamourosa e a realista (a do chef de cozinha e a da cozinheira burguesa).


Se observarmos a história, perceberemos que sempre foi importante para os membros da nobreza e do novo mundo das finanças possuírem um cozinheiro. Isso era determinante na escala da distinção, representava poder, isto é, significava a possibilidade de oferecer aos convidados pratos que eles nunca tivessem provado, executados por um profissional com status.


Dessa forma, construía-se a ideia de que a cozinheira mulher possuía conhecimentos práticos e de tradição familiar e que os cozinheiros, os chefs, tinham, além da capacidade de invenção e reflexão sobre gastronomia, conhecimentos diferentes e superiores aos das cozinheiras, o que, consequentemente, lhes conferia maior status profissional.


Posteriormente, os cozinheiros homens não só detinham e transmitiam a profissão, como também acabariam se tornando os primeiros proprietários de restaurantes, emergindo aí uma nova classe social, a dos chefs e proprietários de restaurantes, com poder econômico e, essencialmente, com capital cultural de estimado valor. Esse fenômeno é observado principalmente após a Revolução Francesa, pois vários restaurantes contratam os chefs antes empregados pela monarquia, assim como alguns desses chefs abrem seus próprios estabelecimentos. A partir desse momento, o chef de restaurante oficialmente desempenhará o papel de criação gastronômica, e esta permanecerá predominantemente centrada em Paris.


© Naira Scavone - Trecho de O Jantar - Edições ARdoTEmpo, 2010

Sobremesa, criação da chef Ruth (Escola de gastronomia EGAS, Porto Alegre RS Brasil)

Imagem: Fotografia de Mauro Holanda

publicado por ardotempo às 18:53 | Comentar | Adicionar

Encontro de chefs, gourmets e leitores em São Paulo

Lançamento de O JANTAR em São Paulo

 

Para todos os convidados a O JANTAR - as chefs, os chefs, os gourmets, as leitoras e os leitores:

 

 

 

publicado por ardotempo às 17:05 | Comentar | Adicionar

Truques mágicos

Ah, se não fosse a realidade!


Ferreira Gullar


Dilma está eleita e, a partir de 1º de janeiro de 2011, será a presidente do Brasil. Nunca imaginou que isso pudesse acontecer, nunca sonhou com isso, nunca o desejou e, não obstante, terá em breve, nas mãos, o mais alto posto político do país.

 

Um milagre? Um passe de mágica? Se pensamos assim, o mago é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

 

Inicialmente, apesar de sua indiscutível popularidade, dava a impressão que superestimara seu prestígio, não iria elegê-la.

 

De fato, como acreditar que uma mulher que nunca se candidatara a nada, destituída de carisma e até mesmo de simpatia, fosse capaz de derrotar um candidato como José Serra, dono de uma folha de serviços invejável, tanto como parlamentar quanto como ministro de Estado, prefeito e governador? Não obstante, aconteceu. Para espanto meu e de muita gente mais, 56% dos eleitores preferiram votar em alguém que eles mal conhecem do que eleger um político conhecido de todos, contra o qual não pesa qualquer suspeita ou acusação desabonadora. E por que o fizeram? Porque o presidente Lula mandou.

 

E não foi só o pessoal mal informado que recebe Bolsa Família, não. Empresários, banqueiros e intelectuais famosos também apoiaram sua candidatura, porque Lula mandou. Mas não estou aqui para chorar sobre o leite derramado e, sim, para tentar ver o que pode acontecer em consequência disso.

 

Advirto o leitor de que não parto do princípio de que vai dar tudo errado, que o governo de Dilma Rousseff está condenado ao fracasso. Nada disso. Como muita gente, diante desse fato inusitado, nunca visto na história brasileira, pergunto: e agora?

 

Sempre se faz tal pergunta quando um presidente da República, seja ele quem for, assume o mandato. Ocorre que, pela primeira vez, pouco se sabe da pessoa eleita e, mais que isso, eleita porque alguém mandou. A pergunta que está na cabeça de todos - dos que votaram contra e dos que votaram a favor - é: quem vai governar, ela ou Lula? É uma questão razoável, não só porque ela nunca governou nem mesmo um município, como porque Lula, sabendo disso, deve temer pelo que venha a fazer. E temerá, com razão, já que o fracasso dela, como governante, será debitado inevitavelmente na conta dele, responsável pela mágica que a pôs na Presidência da República. Estará, assim, criada uma situação também inédita na história do poder central do Brasil: como Dilma não é responsável por ter sido eleita - e ocupar o lugar que só não é do Lula porque a lei não permite uma segunda reeleição -, talvez não possa fazer no governo senão o que for aprovado por ele.

 

Isso lembra, até certo ponto, a situação vivida por Cristina Kirchner, eleita presidente da Argentina graças à popularidade do marido, Néstor Kirchner, recentemente falecido. Enquanto vivo, era ele quem governava, sem maiores vexames para ela, uma vez que, casados, podiam até na cama discutir e acertar as medidas governamentais que ela tomaria no dia seguinte. Já o caso de Lula e Dilma será mais complicado, pois ninguém imagina que ele deixe dona Marisa dormindo em São Bernardo para instalar-se na alcova da presidente Dilma, no palácio da Alvorada.

 

Nem se acredita, tampouco, que optem por um relacionamento clandestino para, em encontros secretos, disfarçados - ele de peruca loura e ela vestida de homem, bigode e barbas -, discutirem a volta da CPMF ou o que fazer com o MST. Fora daí, o jeito seria divorciar-se e casar com Dilma, mas tendo o cuidado de deixar claro que se tratou de uma paixão repentina, fulminante, e não de um romance secreto que só então veio à tona. Tal solução tem o perigo de manchar a reputação dos dois, por oferecer aos maldosos a chance de sussurrar que a candidatura de Dilma teria origens sexuais. É risco demais, não dá. A alternativa, então, talvez seja Dilma nomeá-lo chefe da Casa Civil, lugar antes ocupado por ela. Minha dúvida é se Lula, que se acredita o maior estadista brasileiro de todos os tempos, aceitaria função tão subalterna, especialmente depois dos escândalos que envolveram Erenice Guerra, a substituta de Dilma no cargo. É problema dele. Apenas constato que, se é fácil, com truques mágicos, fazer acontecer o impossível, difícil é resolver os problemas reais.


Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo/ UOL

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publicado por ardotempo às 12:38 | Comentar | Adicionar

Nem sempre estamos prontos

Do breu da toca do ouriço

Invejo o ouriço-preto, que hiberna durante três meses todo ano. Que bom seria tirar licença de existir de vez em quando, discretamente desaparecer por uns dias sem por isso ganhar fama de melancólico.

Porque nem sempre estamos prontos. O telefone está tocando, alguém vem para uma visita, e simplesmente não estamos prontos. Então imagino se, diante da insistência, atrás da porta ou do outro lado da linha, como que saindo do breu da toca do ouriço, uma voz se desculpasse de não ser aquela voz conhecida, de ser, em vez disso, um sopro, um marulho de folhas no vento, qualquer coisa que se ouve a distância, no intervalo entre dois tempos, e logo desencadeando o que poderia ser um imprevisto, antes não fosse a condição da alegria, penso que maravilha se essa voz, nada mais que um sopro, um sussurro atrás da porta ou do outro lado da linha, encantasse aquele que estivesse ouvindo e silenciasse tudo em volta. Porque às vezes o pouco que nos basta é o que mais falta, um brevíssimo intervalo, uns dias de restinga, silêncio para honrar a velha máxima de dar tempo ao tempo e só depois voltar à tona, responder como é devido, com aquela voz cristalina de quem não se desculpa mais porque já recobrou o ânimo, a prontidão, a presença de espírito e, sobretudo, aquela ponta de impaciência que convenientemente dá corda à rotina.


Um intervalo assim evitaria alguns deslizes, uma palavra fora de contexto, um gesto irrefletido, o descomedimento no calor da hora, pequenos rompantes assassinos. Talvez evitasse mesmo erros tremendos, os erros sem conserto, o descuido de um momento que marca uma vida, a famosa ladainha do que poderia ter sido e que não foi, esta sim, nossa grande melancolia.


Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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publicado por ardotempo às 12:14 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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