Pescadores de Jaguarão
Na curva do rio Jaguarão
Camafunga - Marcelo Freda Soares - Pescadores do rio Jaguarão - Fotografia - Blog do Camafunga (Jaguarão RS Brasil / Uruguai)
Na curva do rio Jaguarão
Camafunga - Marcelo Freda Soares - Pescadores do rio Jaguarão - Fotografia - Blog do Camafunga (Jaguarão RS Brasil / Uruguai)
Numa rua verde
Quem mora numa rua verde?
Quem mora assim, no espaço deste espectro?
Quem é que debruça sorrisos na sacada esverdeada?
Esgares em verde-água e, lampejos de olhar em verde-nada?
A rua é incondicionalmente verde.
Substancialmente verde
no meio,
justo,
um!
só!
Publicado em Lisboa, Portugal, por George Sand (blog Chez George Sand)
O Jantar, na Livraria da Vila - Itaim - 18 de dezembro
O delicioso, substancial e provocativo ensaio O JANTAR, de Naira Scavone levanta questões e respostas importantes sobre a alta gastronomia brasileira.
Qual a razão primordial para que o espaço da cozinha profissional seja ainda dominado pelos chefs masculinos (apesar da recente moda das chefs mulheres e, especialmente, da tradição secular da cozinha caseira cotidiana ser predominantemente de fatura feminina)? Qual a justificativa para o desenvolvimento de um novo gosto gastronômico a partir da presença de chefs estrangeiros em restaurantes e hotéis internacionais no Brasil (especialmente os franceses e os italianos)? Porque a gastronomia de experimentação e de vanguarda é sempre de fora (Espanha, Japão, Itália e França) e quase nunca a partir de uma cozinha de origem brasileira, resultando esta mais ancorada no conservadorismo para ser respeitada na sua qualidade intrínseca? Qual a razão para a “descoberta” de certos ingredientes brasileiros (pimenta-rosa, carambola e mandioquinha, por exemplo) como sofisticados, exóticos e apreciáveis, estar na palavra de chefs estrangeiros e não como proposta de chefs brasileiros? Qual o papel das revistas especializadas na formação do gosto no atual momento da gastronomia brasileira?
Lançamento na Livraria da Vila Itaim - Rua Mário Ferraz, nº 414 (11) 3073-0513 - Itaim-Bibi São Paulo, no dia 18 de dezembro, das 15h até às 19h30, com a presença da autora, Naira Scavone, do chef Aires Scavone e do fotógrafo Mauro Holanda, autor das várias imagens publicadas no livro.
Imagem: Mauro Holanda
Os desaparecidos
Mariana Ianelli
Os olhos remotos com que nos olham as pessoas da galeria dos desaparecidos.
Falo daquelas fotos que vêm no verso dos cupons de pedágio, como para lembrar o meio de estrada em que todos eles se perderam um dia. Fotos que datam da época em que pela última vez foram vistos, há seis meses, dois anos, duas décadas. Meninas que, pela expressão brejeira, inevitavelmente me levam a pensar num destino terrível. Meninos que hoje, se estão vivos, são homens feitos. E também aqueles que eram já mulheres e homens feitos quando sumiram.
Deve existir nessa galeria pelo menos um par de olhos autodenunciadores, olhos que já sabiam. Entre os que desapareceram por acidente, por loucura ou por tragédia, existirá pelo menos um, imagino, que partiu sabendo o que fazia. Alguém que não pôde evitar a encruzilhada depois da qual nada voltaria a ser como antes. Alguém que deixou o seu passado ardendo em uma cidade qualquer e que seguiu adiante, sem olhar para trás, como admoesta o anjo.
Um pai de família, uma pacata dona de casa, um senhor de negócios, um artista, enfim, alguém que deixou para trás sua impecável biografia e que reapareceu para o mundo na pele de um agricultor, um tropeiro, um eremita. Alguém, não importa mais com que rosto: um outro. Para quem essa antiga foto no rol dos desaparecidos hoje incomodaria tanto quanto os que são procurados pela polícia, por terem cometido o crime de desertar, de abandonar uma história, um ofício, uma família, por terem partido porque urgia partir, assumir um recomeço total. Os olhos remotos com que nos olham essas pessoas que um dia atravessaram uma linha fronteiriça e que, descontando a má sorte, fizeram a viagem que poucos de nós ousariam fazer, a viagem sem rastro, a narrativa apócrifa de uma vida mais rica pelo que perdeu, mais livre pelo que encontrou.
Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve
Morte com data certa
Ferreira Gullar
Ele a viu, pela primeira vez, numa fotografia.
No mezanino da escola, na parede oposta à dos janelões, havia uma série de fotos que documentavam alguns momentos memoráveis daquele estabelecimento formador de quadros políticos que teoricamente iriam mudar a face do mundo. Não obstante, ali se realizavam reuniões festivas de que participavam diretores, professores, alunos e tradutores. Lina era uma tradutora e, sem sombra de dúvidas, a mais linda de todas. Ela ocupava, em primeiro plano, o canto esquerdo da foto, os cabelos presos na nuca e um sorriso que lhe iluminava o rosto redondo de menina. Calçava botas de cano alto e uma saia justa que lhe deixava à mostra os joelhos. Era como uma fada jovem, numa aparição de encanto, naquele universo político-ideológico.
Suspirou, certo de que aquela mulher estava fora de seu alcance, fora do alcance mesmo de seus olhos. Seria, talvez, uma visitante, que ali aparecera como convidada em alguma das festas. Viu a tal foto na primeira semana de sua chegada ao instituto, quando os cursos mal se iniciavam e as turmas ainda estavam incompletas. Poucos dias depois, as aulas começavam e foi aí que a viu em pessoa, lanchando na "stalovaia" da escola. Ela estava numa mesa próxima, tomando café e conversando com um grupo que falava espanhol. Em determinado momento, seus olhos se cruzaram, mas ela logo se voltou para alguém, disse-lhe alguma coisa ao ouvido e riu discretamente.
De noite, na cama, antes de dormir, lembrava-se dela, daquele sorriso, daqueles cabelos ruivos presos na nuca. Soube depois que era tradutora encarregada dos coletivos de alunos de língua espanhola, todos latino-americanos. Como os brasileiros se enturmavam com estes, também se davam com ela e foi assim que, certa tarde, na mesma lanchonete, ela sentou-se na mesa em que ele estava com um casal carioca. Foram apresentados e ela não pareceu dar maior importância ao fato, embora ele tivesse a impressão de que o seu olhar de algum modo a perturbava. Por sorte, algumas semanas depois, houve uma festa promovida pelo coletivo argentino, com tangos e tudo o mais, e nessa noite ele a tirou para dançar. Disse-lhe ao ouvido que a achava linda ("ótin craciva") e ela empalideceu.
Quando a festa acabou, ela, nervosa, sussurrou-lhe que a esperasse na estação do metrô. Pouco depois, tomavam o trem, desciam na estação perto da casa dela e, já de mãos dadas, penetravam num parque escuro e deserto àquela hora da noite. Puxou-o pela mão, sentaram-se num banco e ela, sorrindo, soltou os cabelos ruivos que lhe caíram encantadoramente sobre o rosto. Tentou beijá-la, mas ela se esquivou, ergueu-se do banco e o levou pela mão até à porta do edifício onde morava. Ali, beijou-o na testa e, com um adeusinho, sumiu no portão. Ele, de volta a seu quarto na "abchejite", mal acreditava no que acabara de viver. Ela era casada, vivia com o marido mas já não eram marido e mulher; é que, no socialismo, se o casal ganhara um apartamento, não tinha direito a outro, pouco importando se o casamento acabara ou não.
Na primeira noite em que ela o levou à sua casa, o marido ainda não havia chegado. Serviu-lhe um jantar, na cozinha, e ele, não podendo conter-se, declarou-se apaixonado por ela. Foi então que Lina lhe ofereceu a boca para um beijo que jamais esqueceria. O marido, Andrei, chegou lá pelas nove horas. Beberam vodca juntos e, como nevasse muito, aproveitou para dormir lá mesmo, no sofá da sala. De manhã, quando o marido se preparava para ir trabalhar, fingiu que ainda dormia e só se levantou depois que ele se foi. Aí entrou no quarto, jogou-se sobre Lina na cama e se amaram loucamente. Mas aquele amor tinha data certa para acabar: terminaria o curso e ele teria de deixar o país.
Na véspera da partida, foi para a casa dela e lá ficaram, os dois, de mãos dadas, beijando-se e chorando. Nem ele podia ficar nem ela podia mudar de país. Sem alternativa e para não perder o metrô, decidiu ir embora, sabendo que nunca mais a veria na vida. Mesmo assim, saiu e atravessou o parque, como um autômato. Na manhã seguinte, como um autômato, foi para o aeroporto, entrou no avião e partiu. Faz 37 anos e seis meses. Nunca mais se viram.
Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL
Obras desconhecidas de Picasso são descobertas na França
Uma coleção de 271 obras do pintor espanhol Pablo Picasso, até então desconhecidas, foram descobertas quando um eletricista francês aposentado tentou obter os certificados de autenticidade dos herdeiros do artista, segundo revela nesta segunda-feira (29) o jornal "Libération".
As obras são do início do século passado e estão estimadas em cerca de 60 milhões de euros (R$ 137,2 milhões), acrescenta o jornal.
Entre as obras descobertas estão algumas pouco comuns, como nove "collages cubistas" pintadas no início dos anos 1920, um período no qual muitas das obras do artista acabaram se perdendo.
Há também uma aquarela da fase azul, estudos pintados sobre tela e cerca de 200 desenhos.
A extraordinária descoberta aconteceu depois que o eletricista aposentado Pierre Le Guennec entrou em contato com Claude Picasso, filho do pintor espanhol e encarregado de administrar sua obra.
Segundo o "Libération", em janeiro Le Guennec enviou fotos dos quadros para que fossem autenticadas como obras de Picasso, mas diante da recusa do herdeiro de dar seu aval sem ver os originais, o eletricista foi ao escritório de Claude em setembro.
Acompanhado por sua mulher, o homem, que vive em Côte d'Azur, mostrou as 175 obras inéditas, entre elas dois cadernos que contêm um total de 97 desenhos.
Após comprovar que não se tratava de falsificações, o herdeiro se perguntou como haviam chegado nas mãos de Le Guennec e dias depois apresentou uma denúncia à brigada especializada em obras de arte para evitar perder a coleção.
Os agentes atuaram com rapidez, abriram uma investigação e confiscaram as obras, que estão guardadas nos arredores de Paris.
Segundo o jornal, Le Guennec declarou à polícia ter trabalhado como eletricista de Picasso nas diferentes residências que o pintor teve em Côte d'Azur, e afirmou que foi o artista e sua esposa Jacqueline que lhe deram as obras.
No entanto, em declarações ao "Libération", Claude disse considerar a versão do aposentado sem fundamento, visto que seu pai não tinha o costume de dar presentes em bloco e, quando o fazia, sempre buscava registrar a doação.
"É certo que Pablo Picasso era bastante generoso. Mas datava, assinava e dedicava sempre suas doações, porque sabia que poderiam ser vendidas em momentos de dificuldades", assegurou.
Além disso, o advogado de Claude acrescentou que ninguém recebeu das mãos de Picasso um presente tão significativo em volume e tão importante em conteúdo artístico.
Por fim, o "Libération" questiona se o eletricista não esperou tantos anos para trazer as obras à tona como forma de se beneficiar da prescrição de um suposto crime de roubo.
(Autenticadas todas elas já estão, a questão agora é definir judicialmente se o eletricista poderá manter a sua posse e propriedade)
Publicado no UOL
Ano para reconhecer Schlee
HOMEM FORJADO no território por natureza incerto da fronteira, o escritor, tradutor e professor Aldyr Garcia Schlee acostumou-se a labutar em silêncio e a produzir sua obra em um ritmo próprio e compassado, alheio (“à margem”, como ele mesmo define) ao sistema literário e suas pressões de mercado. Basta notar que, em quase meio século de carreira, o número de seus livros individuais não chega a uma dezena. Por isso, é o próprio escritor o primeiro a apontar o quanto o último ano marcou em sua trajetória uma pequena revolução, iniciada em 2009, com o elogiado Os Limites do Impossível, e coroada na Feira do Livro de Porto Alegre com publicação do épico romance Don Frutos e com o reconhecimento do prêmio Fato Literário – Schlee foi escolhido na categoria “personalidade”, com 52% dos 123 votos do Júri Oficial.
– Me surpreendi muito com a premiação. Achei, sem querer afetar modéstia, que a premiada seria a Lya Luft, a quem conheço há muitos anos. Ainda estou tentando entender como foi que obtive tantos votos. Se fosse eleição política, eu teria vencido no primeiro turno – brinca o autor, que completa 76 anos no próximo dia 22.
Antes de lançar, na Feira de 2009, Os Limites do Impossível – uma narrativa de estrutura ambígua pode ser lida como um romance formado de histórias curtas independentes ou uma coletânea de contos com uma unidade temática –, Schlee vinha de um silêncio de quase uma década. Seu livro anterior havia sido a coletânea Contos de Verdades (2000), que teve uma precária distribuição devido à complicada situação financeira em que se encontrava sua editora da época.
– Foi um livro que não repercutiu fora de um pequeno círculo de leitores. A trajetória de um livro não se completa com o seu ponto final, é parte fundamental dela também o conjunto de leituras que ele ganha depois de ir a público, e esse livro, lamentavelmente, não completou ainda essa trajetória – lamenta.
Mas uma década de silêncio não significou uma década de inatividade. Schlee dedicou boa parte dela, ao contrário, à pesquisa e à redação febril de sua obra mais ambiciosa, Don Frutos, monumental romance histórico que reconstitui, em mais de 500 páginas, a passagem por Jaguarão, terra natal do autor, do caudilho uruguaio Dom José Fructuoso Rivera (1784 – 1854), primeiro presidente constitucional do Uruguai.
É um romance sonhado por quatro décadas, desde que Schlee, ainda um jovem professor da Universidade Federal de Pelotas, topou, ao fazer uma pesquisa, com a informação de que Rivera havia morrido em Jaguarão. A obra só começou a ganhar feição, contudo, depois que o autor obteve a valiosa ajuda de um amigo uruguaio, o pesquisador Amílcar Brum, que o auxiliou a coletar a imensa massa de informações sobre a vida e os tempos do caudilho. Além de uma narração barroca e suntuosa, Schlee sustenta seu romance com a transcrição de documentos, cartas, notas de expediente, panfletos de época, alguns reais, outros fictícios. O livro ficou pronto antes mesmo de Schlee começar Os Limites do Impossível, mas só ganhou publicação este ano, pela editora ARdoTEmpo.
– Duas grandes editoras chegaram a me solicitar o romance, eu enviei, e depois de um ano é que obtive resposta. Na primeira disseram que o livro era muito bom mas o “custo-benefício” não valia a publicação, ainda mais para um autor da minha idade. A segunda queria mutilar o livro da parte dos documentos – conta.
Tais episódios, contudo, ficaram para trás, ele garante. A repercussão obtida com a indicação e a premiação ao Fato Literário chamaram a atenção do público para o romance, principalmente na região da fronteira onde Schlee ambienta a maior parte de sua ficção. A versão em espanhol da obra deve ganhar publicação no Uruguai em breve, com tradução do próprio autor – que escreve indiscriminadamente seus livros tanto em português como em espanhol, o que pode explicar um pouco o ritmo sem pressa de sua produção literária. E sua surpresa no reconhecimento a ele ofertado como grande nome da cultura do Estado neste ano:
– Das dezenas de e-mails que recebi me parabenizando, um terço veio do Uruguai. O que para mim tem um grande significado. Sou mesmo um autor de um universo pequeno e próprio. Quando falo que produzo à margem é que sou limitado ao meu pequeno mundo de fronteira: Rio Branco, Melo, Tacuarembó e Treinta y Tres, no Uruguai, e Jaguarão. Fora disso, não sei nada.
Carlos André Moreira - Publicado em Zero Hora
Entre poetas em bronze
José Mário Silva, o escritor e poeta português, na Praça da Alfândega, desfrutando o silêncio das conversas sussurradas entre as estátuas de Drummond e Quintana (esculturas públicas de Xico Stockinger, em Porto Alegre RS Brasil)
Pintura e texto
Sérgio GAG - Noite Longa - Pintura - Óleo sobre tela (Santa Madalena / São Paulo SP Brasil)
Pedro
António Lobo Antunes
A mulher pôs a travessa na mesa, serviu-o, esperou que ele começasse a comer e disse
- Já não gosto de ti.
Por cima da cabeça dela, um pouco à esquerda, um quadro, representando barcos de pesca na areia de uma praia, que a tia do homem lhes deixara. Ao lado do quadro um prato chinês, preso com dentinhos de arame. A mulher serviu-se mas não começou comer. O homem reparou que tirara a aliança, e a mão pareceu-lhe mais bonita assim nua.
- Já não gosto de ti
repetiu ela. O jantar era peixe assado e uma ambulância passou aos gritos na rua. O homem teve a impressão que o andar estremecia com o ruído. Reparou também que a mulher apanhara o cabelo com o elástico e, contra o costume, não se maquilhara.
- Para poder chorar à vontade pensou. Pensou
- Detesta que a pintura lhe escorra pela cara abaixo
e demorou-se à cata de uma espinha que sentia no interior da boca e custava a encontrar com a língua.
- É a primeira vez que te vejo sem aliança
disse o homem, através do peixe e das batatas. Lembrou-se da mãe
- Engole primeiro e fala depois
sozinha no seu apartamento de viúva. Não jantava, essa: bebia chá e fazia uma torrada. Quase sem manteiga porque o colesterol andava alto. A mulher remexia o prato com o garfo, olhando-o sempre.
- Acho melhor separarmo-nos
disse ela, juntando as batatas com a faca
- Acho que a única solução é separarmo-nos
e o homem a lembrar-se da tia do quadro, de chapelinho quando saía às compras. De chapelinho sempre. Sem mencionar o broche. Morava com o gato. Talvez o melhor fosse comprar um gato. Perguntou
- Porquê?
e logo a seguir descobriu a espinha. Em vez de a depositar no talher, numa espécie de beijo, puxou-a com dois dedos.
- Que modos
ralhou a mãe ausente, e por pouco não sorriu à mãe, a concordar. Sentia uma espécie de cócegas no interior do peito, o coração, talvez.
- Não quero viver mais contigo
disse a mulher, e o homem teve a certeza de se encontrar com uma estranha. As cócegas no interior do peito aumentaram. O filho achava-se de férias com o irmão da mulher, e ele deu por si com saudades do filho.
- Queres viver com quem?
perguntou o homem, já salvo da espinha e com a boca livre. Livre o tanas: a vida inteira enrolada nos dentes.
- Tenho medo que me dê uma coisa
pensou ele a olhar o quadro dos barcos
- Tenho mesmo medo que me dê uma coisa
e a mulher afigurou-se-lhe, de súbito, um carrasco implacável.
- Podes não gostar de mim mas eu gosto de ti
disse o homem com o olho no quadro dos barcos, a recomendar a si mesmo não te enerves, não percas a cabeça, não faças cenas. A tia, de chapelinho, afagava-lhe o ombro
- Não é o fim do mundo, Pedro
anunciava ela no seu tonzito agudo
- Não é o fim do mundo.
Podia não ser o fim do mundo para a tia mas era o fim do mundo para o homem.
- É melhor que saias até domingo, antes que o miúdo volte
disse a mulher. Há quanto tempo andava ela a magicar aquilo?
- E para tua informação não quero viver com ninguém, quero ficar sozinha.
O peixe começava a esfriar, o mundo inteiro gelado, uma segunda ambulância em gritos diferentes. Não eram só as cócegas no interior do peito, verificou o homem, as pernas tremiam-lhe, os braços tremiam-lhe. Até a garganta tremia
- Isabel
e a mão da mulher sem aliança, tranquila, poisada na toalha.
- Nunca simpatizaste com o quadro dos barcos, pois não?
perguntou ele, nunca simpatizaste com o quadro dos barcos e já não gostas de mim. A mulher não tocara no jantar. O homem poisou os talheres, lutando com as lágrimas. Acontecesse o que acontecesse ia a conseguir vencê-las. E limitou-se a desejar que a próxima ambulância o levasse consigo.
António Lobo Antunes
Música em São Paulo I
Itaci Batista - Dançando na rua / Dia da Consciência negra - Fotografia (São Paulo SP Brasil), 2010
Escritores Aldyr Garcia Schlee e José Mário Silva
Aldyr Garcia Schlee (Os limites do impossível / Contos Gardelianos e Don Frutos) - FATO LITERÁRIO 2010 e José Mário Silva (Efeito Borboleta) na 56ª Feira do Livro de Porto Alegre, 2010. (Porto Alegre RS Brasil)
Fotografia de Luiz Carlos Vaz (Jornalista Vaz)
No dia feriado, a efervescência dos acontecimentos
O galho estalou pela força dos ventos,
de cima para baixo
(provocado pelos helicópteros?)
O gigantesco galho da tipuana quebrou.
As imagens das flores no jardim estavam
alertadas pelo canto dos pássaros.
A voz sublime superou o ruído dos jatos,
dos helicópteros e o coral das aves.
Cento e vinte e cinco convidados,
das pessoas mais queridas.
O galho estalou.
O canto singular e perfeito
quebrou a rotina trivial,
conjurou as ausências,
perpetuou o tempo do som infinito,
inexplicou os gestos e as lacunas
nos sentimentos.
O caminhão de bombeiros chegou,
arruinou o ar com a fumaça
e a atmosfera com o ruído da barbárie,
da urgência e do pragmatismo.
O galho caiu.
Na Feira dos Livros, em Porto Alegre
Na 56ª Feira do Livro de Porto Alegre, na Praça da Alfândega, a estátua equestre impõe o recato de sua estética recoberta (Porto Alegre RS Brasil), 2010
Flores no jardim
A mostra de imagens de flores da paisagem brasileira, de aquarelas de Anelise Scherer e poemas de Cleonice Bourscheid, em ampliações fotográficas de Pierre Yves Refalo, sob as árvores do jardim do Museu da Casa Brasileira, em plena Av. Brig. Faria Lima, na capital paulista.
Arte sem arte
Ferreira Gullar
Não tenho a pretensão de estar sempre certo no que escrevo, nas opiniões que emito, muito embora acredite seriamente nelas.
Não foi à toa que, de gozação, me apelidaram de profissional do pensamento, por tanto atazanar os amigos com minhas indagações e tentativas de explicação. Por isso também volto a certos temas, desde que descubra, ao repensá-los, modos outros de enfocá-los e entendê-los.
Se há um tema sobre o qual estou sempre indagando é a situação atual das artes plásticas, precisamente porque exorbitaram os limites do que -segundo meu ponto de vista- se pode chamar de arte. Sei muito bem que alguém pode alegar que arte não se define e que toda e qualquer tentativa de fazê-lo contraria a natureza mesma da arte.Esse é um argumento ponderável e muito usado ultimamente, mas acerca do qual levanto dúvidas. Concordo com a tese de que arte não se define, mas não resta dúvida de que, quando ouço Mozart, sei que é música e, quando vejo Cézanne, sei que é pintura. Logo, a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de definir o que é arte não elimina o fato de que as obras de arte têm qualidades específicas que as distinguem do que não o é.
Do contrário, cairíamos numa espécie de vale-tudo, numa posição insustentável mesmo para o mais radical defensor do que hoje se intitula de arte contemporânea.
Isto é, o sujeito teria de admitir que uma pintura medíocre tem a mesma qualidade expressiva que uma obra-prima e que ele mesmo teria de se obrigar a gostar indistintamente de toda e qualquer coisa que lhe fosse apresentada como arte. Por mais insensato que possa ser alguém na defesa de uma tese qualquer, não poderia evitar que esta ou aquela coisa que vê ou ouve ou lê tenha a capacidade maior ou menor de sensibilizá-lo, emocioná-lo ou deixá-lo indiferente.
Creio não haver dúvida de que, seja ou não possível definir o que é arte, há coisas que nos emocionam ou nos fascinam ou nos deslumbram e outras que nos deixam indiferentes.Se se der ou não a tais coisas a qualificação de arte, pouco importa: é inegável que a "Bachiana nº 4" é belíssima e que um batecum qualquer não se lhe compara, não nos dá o prazer que aquela obra de Villa-Lobos nos dá.Do mesmo, um desenho de Marcelo Grassmann me encanta e um desenho medíocre me deixa indiferente. Mas um artista conceitual -ou que outras qualificação se lhe dê- responderá que esta visão minha é velha, ultrapassada, pois ainda leva em conta valores estéticos, enquanto a nova arte não liga mais para isso. Mas pode haver arte sem valor estético?
Arte sem arte?
Essa pergunta me leva à experiência radical de Lygia Clark (1920-1988), sob muitos aspectos antecipadora do que hoje se chama arte conceitual.
Dando curso à participação do espectador na obra de arte -elemento fundamental da arte neoconcreta-, chega à conclusão de que pode ele ir além, de espectador-participante a autor da obra, bastando, por exemplo, cortar papel ou provocar em si mesmo sensações táteis ou gustativas. Assim atingimos, diz ela, o singular estado de arte sem arte.De fato, esse rumo tomado por alguns artistas resultou da destruição da linguagem estética e na entrega a experiências meramente sensoriais, anteriores portanto a toda e qualquer formulação.
Descartando assim a expressão estética, concluíram que se negar a realizar a obra é reencontrar as fontes genuínas da arte. E, se o que se chama de arte é o resultado de uma expressão surgida na linguagem da pintura, da gravura ou da escultura, buscar se expressar sem se valer dessa linguagem seria fazer arte sem arte ou, melhor dizendo, ir à origem mesma da expressão.
Isso nos leva, inevitavelmente, a perguntar se toda expressão é arte. Exemplo: se amasso uma folha de papel, o que daí resulta é uma forma expressiva; pode-se dizer que se trata de uma obra de arte? Se admito que sim, todo mundo é artista e tudo o que se faça é arte.
Já eu considero uma piada achar que todas as pessoas têm o mesmo talento artístico de Leonardo da Vinci e de Vincent van Gogh ou que esse talento seja apenas mais um preconceito inventado pelos antigos. As pessoas são iguais em direitos, mas não em qualidades.
Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL
Marguerite Duras
Mariana Ianelli
Um homem aborda uma escritora em um saguão para lhe dizer que aprecia menos o seu rosto de moça do que o seu rosto de agora, devastado.
Assim começa O Amante, de Marguerite Duras. A história que se segue, no período entreguerras, em Saigon, é uma leitura das linhas que sulcaram esse rosto. A história de um amor que se imprime na pele e que não se pode remover, apagar, como hoje fazem algumas mulheres, belas mulheres de rosto limpo, repuxado, sem história.
Marguerite tem 15 anos e meio quando vive o escândalo de uma paixão por um chinês 12 anos mais velho. Ela não sopesa o escândalo. Não sente vergonha nem desonra, apenas se lança, sente que deve se lançar, deitar-se com aquele homem, seu primeiro amante, em uma garçonnière no bairro de Cholen. Esse desejo desesperado, que transformou o rosto da escritora e ofuscou os outros amores de sua vida, está presente em todos os seus livros. Mas é somente depois de enfrentar um dificílimo período de desintoxicação alcoólica que Marguerite Duras dá à luz a versão original da história que singularizou a sua escrita.
Marguerite tem, nessa época, 70 anos, e quem lhe assiste na convalescença é Yann Andréa Steiner, seu último amante, 38 anos mais novo do que ela. Não parece ser por acaso que os extremos da vida literária da escritora sejam marcados por amores que contornam longas distâncias de tempo. Então releio um outro texto seu, um texto curtíssimo, As mãos negativas. Este é o nome que se dá às pinturas encontradas em cavernas pré-históricas da Europa Sul-Atlântica, pinturas vermelhas, amarelas, brancas e negras de mãos que foram decalcadas naquelas paredes de pedra há 30 mil anos. Mãos negativas, mãos que se deixam ver quando já não estão ali, mãos esquecidas do vazio de que são feitas.
Curiosamente, em um livro intitulado Yann Andréa Steiner, Marguerite diz: “Nunca se conhece a história antes que ela seja escrita. Antes que tenham desaparecido as circunstâncias que levaram o autor a escrevê-la”. Foi assim que, partindo da Indochina para a França, a jovem menina branca descobriu que havia amado o homem de Cholen. Era assim que Marguerite Duras amava Yann, confessando-lhe que não há beijo derradeiro. Quem sabe seja também este o segredo dos livros eleitos pela nossa sede de espírito. Uma identificação imediata, um amor através do tempo, não apenas o sinal de uma vida que esteve ali, mas o contorno de sua imortalidade, sua presença.
Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve
O edifício abandonado
Mario Castello - O arranha-céu Sampaio Moreira - Fotografia (São Paulo SP Brasil), 2010
Convite para Recital Ave, Flor
Com Fernando Mattos (viola) e Deisi Coccaro (soprano)
Temas Brasileiros (Eruditos e Populares)
com LAURA DE SOUZA (soprano) e Nancy Bueno (piano)
Exposição de Imagens Botânicas no jardim do MCB
De ANELISE SCHERER e poemas de CLEONICE BOURSCHEID
Lançamento de livro AVE, FLOR
De CLEONICE BOURSCHEID e ANELISE SCHERER
Edições ARdoTEmpo
ALDYR GARCIA SCHLEE
Autor de DON FRUTOS (2010) e de OS LIMITES DO IMPOSSÍVEL - Contos Gardelianos (2009)
Fotografia: Alexandre Schlee Gomes - 56ª Feira do Livro de Porto Alegre 2010
Dia 20 de novembro no Museu da Casa Brasileira - São Paulo
Das 11h às 14h - Sábado (20 de novembro)
Recital AVE, FLOR - com LAURA DE SOUZA (e a pianista Nancy Bueno)
De Fernando Mattos sobre os poemas de Cleonice Bourscheid
com Deisi Coccaro e Fernando Mattos
PROGRAMA
PARTE I AVE, FLOR (ciclo de canções)
Música: Fernando Mattos
Poesia: Cleonice Bourscheid
I. Poética
II. Lírios
III. Asa-de-anjo (Flor-do-céu)
IV. Mal-me-quer
V. Lição de poesia
SOPRANO: DEISI COCCARO
VIOLA: FERNANDO MATTOS
PARTE II TRIBUTO À NATUREZA
Diversos Compositores
R.Schumann
“Myrten” op. 25 (H.Heine)
Die Lotosblume , n°7
- Du bist wie eine Blume, n° 24
- Der Nussbaum, n°3
C.Guastavino
“Flores Argentinas”(León Benarós)
- El clavel del aire Blanco
- Qué linda la madreselva!
- Campanilla, adónde vás?
La Rosa y el Sauce
F.Mignone
Quando uma flor desabrocha (Toada)
H.Villa-Lobos
“Modinha carioca” (Cattulo Cearense)
- Tu passaste por este jardim
SOPRANO: LAURA DE SOUZA
PIANO: NANCY BUENO
Exposição no Jardim do Museu da Casa Brasileira
Imagens botânicas de ANELISE SCHERER
De 20 de novembro de 2010 a 16 de janeiro de 2011
Lançamento do Livro AVE, FLOR
Poemas de CLEONICE BOURSCHEID
Imagens de aquarelas botânicas de Anelise Scherer
Edições ARdoTEmpo
A Editora Record e o Prêmio Jabuti
Carta do editor Sergio Machado à Câmara Brasileira do Livro sobre a atribuição do Prêmio Jabuti a Chico Buarque, pelo seu romance Leite Derramado.
"O Grupo Editorial Record – composto pelas editoras Record, Bertrand, Civilização Brasileira, José Olympio, Best Seller e Verus – decidiu que não participará da próxima edição do Prêmio Jabuti para claramente manifestar sua discordância com os critérios de atribuição do Livro do Ano de ficção e não-ficção. Tais critérios não só permitem como têm sistematicamente conduzido à premiação de obras que não foram agraciadas em seleções prévias do próprio prêmio como as melhores em suas categorias.
Como editores preocupados com a Cultura e a ampliação da leitura no Brasil, nós entendemos que um prêmio literário visa a estimular a criação literária reconhecendo-a pelo critério exclusivo da qualidade. Não aceitamos – principalmente em um país como o nosso, onde quase sempre o mérito é posto em segundo plano – que o principal prêmio literário atribuído pelo setor editorial possa ser conferido a um livro que não esteja entre aqueles considerados os melhores em seus respectivos gêneros.Infelizmente, a edição de 2010 do Jabuti não foi a primeira em que essa situação esdrúxula ocorreu.
Em outra oportunidade, o mesmo agraciado deste ano preferiu não comparecer à entrega do prêmio, talvez por não se considerar merecedor da distinção. Grande constrangimento na cerimônia. Em 2008, a situação se repetiu, com o agravante de o então vencedor da categoria Melhor Romance do Jabuti ter conquistado também todos os outros prêmios literários conferidos no Brasil. O episódio causou tal estranheza e mal-estar que foi grande a repercussão na imprensa. Na época, passamos a acreditar que seriam feitos os necessários ajustes na premiação para que esses equívocos parassem de ocorrer.
Vimos, porém, que os critérios equivocados continuaram em vigor em 2010, com a diferença somente de o autor agraciado desta vez aceitar a láurea. Tomamos então a decisão de não mais compactuar com a comédia de erros. As normas do Jabuti desvirtuam o objetivo de qualquer prêmio, pondo em desigualdade os escritores que não sejam personagens mediáticos. Para não mencionar fato ainda mais grave: quando é evidente que a premiação foi pautada por critérios políticos, sejam da grande política nacional, sejam da pequena política do setor livreiro-editorial. Como a inscrição das obras concorrentes ao Jabuti é um ato voluntário de cada Editora participante, e feito de forma onerosa, optamos não mais participar da premiação, até que as medidas necessárias para a correção de seu rumo sejam adotadas".
Aos seus autores, Sérgio Machado enviou por e-mail a seguinte mensagem:
"O Grupo Editorial Record decidiu que não mais participará do Prêmio Jabuti até que as regras e critérios de escolha do Livro do Ano sejam modificadas. Como editor responsável e orgulhoso de ter em catálogo o melhor da literatura nacional, não posso admitir que nossos autores sejam submetidos a recorrentes situações de constrangimento e injustiça. Enviei , hoje, à Câmara Brasileira do Livro e à Comissão do Prêmio Jabuti a carta comunicando esta decisão. Deixo claro que a posição da editora não impede que cada autor se inscreva individualmente no prêmio, o que é perfeitamente possível e legítimo. Só não queremos participar institucionalmente de um processo equivocado que dá margem a distorções vergonhosas".
Trecho de O JANTAR - de Naira Scavone
No senso comum, cozinha, comida e alimentação automaticamente associam-se ao gênero feminino e aos papéis sociais normatizados, como mãe, esposa, empregada, etc. Porém, quando falamos em gastronomia ou pensamos em restaurantes famosos ou jantares especiais e requintados, a associação que se faz é com a figura clássica do chef de cozinha, com sua doma (jaleco bordado, muitas vezes, cheio de prêmios) e chapéu alto.
O homem vem dominando a gastronomia profissional ou a “gastronomia especial” ao longo de toda a nossa história. Quando falamos numa cozinha aparentemente mais qualificada ou encarada como profissão, imediatamente ela é associada aos homens. Assim, essa hegemonia construiu um senso comum acerca do gênero no exercício da profissão que, consequentemente, também tem exercido poder na definição do bom gosto e na construção da alta gastronomia. Só para exemplificar, uma forma peculiar de demonstração de poder masculino na área consistiu em batizar as receitas ou pratos com nome de homens nobres ou homens da classe alta. Eventualmente, esse ato acabava por dar autoria da receita à pessoa, como o caso do molho maionese, atribuído ao duque de Richelieu, em 1756, ou o molho béchamel, invenção de um dos cozinheiros de Luís XIV que homenageou o financista Luis Béchamel, marquês de Noitel.
Além disso, a palavra “chefe”, definida originalmente no dicionário como um substantivo masculino, vem desacompanhada de uma palavra no feminino (ou da designação do artigo) para a mesma função, talvez porque por muito tempo não fosse necessária, já que mulheres não eram admitidas nesse contexto. Não é preciso muito esforço para constatar a hegemonia masculina na profissão.
Historicamente e na contemporaneidade, a maioria – para não dizer 90% – dos chefs de cozinha e escritores de alta gastronomia é constituída por homens. Assim como a História Geral foi, com certeza, uma história contada e construída por homens, a história da alta gastronomia também. Além da hegemonia masculina na profissão, sua relação com o gênero feminino teve, na sua origem e por muito tempo, uma conotação inferior. Vale lembrar que, por exemplo, quando as mulheres começaram a exercer a profissão de cozinheiras, recebendo pagamento por essa atividade, só eram empregadas por aqueles que não eram ricos o bastante para pagar um cozinheiro homem (na época, elas eram chamadas cordons-bleues); contudo, essa expressão tornou-se posteriormente sinônimo de comida excelente.
A grande maioria de escritores e chefs reconhece que a alta culinária francesa atingiu seu apogeu na segunda metade do século passado, que também foi o século da cuisine bourgeoise. Ariovaldo Franco (2004) diz que, por muito tempo, a cozinha burguesa foi objeto de desdém de alguns chefs. Contudo, cozi-nheiras talentosas e exigentes foram responsáveis pela construção e pela consolidação de uma “cozinha de base menos aparatosa e mais realista” (FRANCO, 2004). Esse comentário –“mais realista”– supõe mais econômica, o que novamente separa os tipos de cozinha: a glamourosa e a realista (a do chef de cozinha e a da cozinheira burguesa).
Se observarmos a história, perceberemos que sempre foi importante para os membros da nobreza e do novo mundo das finanças possuírem um cozinheiro. Isso era determinante na escala da distinção, representava poder, isto é, significava a possibilidade de oferecer aos convidados pratos que eles nunca tivessem provado, executados por um profissional com status.
Dessa forma, construía-se a ideia de que a cozinheira mulher possuía conhecimentos práticos e de tradição familiar e que os cozinheiros, os chefs, tinham, além da capacidade de invenção e reflexão sobre gastronomia, conhecimentos diferentes e superiores aos das cozinheiras, o que, consequentemente, lhes conferia maior status profissional.
Posteriormente, os cozinheiros homens não só detinham e transmitiam a profissão, como também acabariam se tornando os primeiros proprietários de restaurantes, emergindo aí uma nova classe social, a dos chefs e proprietários de restaurantes, com poder econômico e, essencialmente, com capital cultural de estimado valor. Esse fenômeno é observado principalmente após a Revolução Francesa, pois vários restaurantes contratam os chefs antes empregados pela monarquia, assim como alguns desses chefs abrem seus próprios estabelecimentos. A partir desse momento, o chef de restaurante oficialmente desempenhará o papel de criação gastronômica, e esta permanecerá predominantemente centrada em Paris.
© Naira Scavone - Trecho de O Jantar - Edições ARdoTEmpo, 2010
Sobremesa, criação da chef Ruth (Escola de gastronomia EGAS, Porto Alegre RS Brasil)
Imagem: Fotografia de Mauro Holanda