Sábado, 25.09.10

Protagonista verde

Avenida Paulista:

 

1.000.000 de automóveis,

2.000.000 de pessoas,

museus, antenas, metrô, ônibus

milhares de emissões de sinais,

toneladas de monóxido de carbono,

uma árvore.

 

 

 

Mario Castello - Avenida Paulista - Fotografia (São Paulo SP Brasil), 2010

publicado por ardotempo às 22:42 | Comentar | Adicionar

Contraponto e antídoto aos modismos contemporâneos

Retorno ao sagrado


Rachel Gutiérrez - Rio de Janeiro, RJ


Carlos Drummond de Andrade terminou sua famosa Elegia com os versos:

 

Amor, quem contaria?

E já não sei se é jogo, ou se poesia”.

 

Mariana Ianelli, cujo novo livro é, em grande parte, uma elegia para seu avô, o artista plástico Arcangelo Ianelli, encontrou em outros versos de Drummond a epígrafe: “Vazio de quanto amávamos,/ mais vasto é o céu. Povoações/ surgem do vácuo./ Habito alguma?”. E os 45 poemas que compõem Treva Alvorada estão distribuídos em nove “povoações” habitadas, sim, por densa e intensa poesia.

 

Aqui, se jogo há é o que começa no oximoro do título e na capa, que reproduz um quadro da fase abstrata do pintor, triunfo da cor que se expande no escuro que a emoldura. Depois, é o jogo do claro/escuro da vida e da morte, ou o da evocação de mitos longínquos em contraste com a noite, “que durou anos”, um longo percurso de agonia e despedida. Nos últimos versos do último poema, outro começo se anuncia: “E terei me esquecido/ E terei me recordado/ Na idade certa de dizer,/ Se tempo houvesse:/ Aqui não se morre mais”.

 

Circularidade de uma experiência espiritual tão próxima de East Coker, segundo poema dos Quartets, do cristão T. S. Eliot, que termina com “In my end is my beginning”, quanto do misticismo tibetano, que diz, num provérbio, “todo mundo morre, mas ninguém está morto”. Poesia densa porque concentrada, onde as palavras são circundadas pelo silêncio do não dito, como o finito é envolto de infinito e a vida, a nossa finitude, limitada pelo tempo imensurável do passado e do futuro. Poesia intensa porque especulativa, intelectiva, meditativa.

 

Na era do entretenimento, da mera diversão, quando se foge da morte, da solidão e da busca de sentido, quando a exposição do escatológico e a banalização da violência vem se perpetuando assustadoramente, a poesia corre o risco de tornar-se mero jogo, performance ou engenhosa e pouco séria construção. Ora, quando significativa, a poesia é feita de som, de sentido e de silêncio. Mas nosso tempo é de estridências, de ruídos sem sentido e de ausência total de silêncio. Contrapondo-se a isso, Mariana Ianelli intitulou um de seus mais belos livros Fazer silêncio, onde encontramos nos versos do poema Legado (Obstinada chama dos antepassados,/ Capítulo um desta ficção de realidades), como em Perspectiva (Durou o instante de uma chama/ Mas ficou para a posteridade), e no primeiro dos Poemas para epitáfios, de outro livro, Passagens, (Porque o culto da alvorada persevera/ Tu não desaparecerás), prenúncios da temática principal de Treva alvorada.


Senhor das cores


Na primeira Povoação, o eu lírico da poeta ora encarna o eu do avô, artista múltiplo, que evoca outros tempos — “quando não havia ainda/ A necessária mortalidade das coisas,/ e (...) sobravam direções —, ora se distancia e observa consternado o intermitente definhar de um corpo (que) “ousa viver um dia”. Na segunda, e na terceira, onde a morte já espreita e “se mete/ Pelas frinchas, pelas guelras”, diz-se também que “em um minuto o passado elabora/ O museu do futuro”. Não podemos imaginar como foi a infância de Mariana Ianelli no convívio com esse avô senhor das cores e das formas, dos materiais mágicos da pintura e da escultura, mas sabemos que sua poesia é esculpida com palavras cuidadosas, pensativas, matéria e forma do trabalho de uma artista. “Quando canto,/ Sonho que flutuo sobre um pélago,/ Sonhar é o meu trabalho” (de Cântico). “Ser poeta significa estar na alegria”, diz Heidegger, em Approche de Höelderlin. Mesmo quando fala da morte, o poeta canta e aprendemos com Bachelard que o tempo da poesia é vertical, um mergulho para o alto, ou uma vertigem das profundezas. É no mistério das profundezas que são geradas as imagens e as metáforas. “Um sorvedouro/ Onde a paz dos contrários/ Treva alvorada./ Fecundado flutuas./ É a lei da graça”, como conclui o poema da sexta Povoação, que dá título ao livro.A evocação dos mitos torna mais compreensível o mistério da vida, o sentido da história, a condição do homem.

 

No 13.º Trabalho de Hércules, da oitava Povoação, “Eis o velho empreendedor,/ O indomado. (...) Mas a chaga do herói não se mostra”. E quando é lembrada a Origem dos Moabitas, na sétima Povoação: “Ele penetra/ Os recessos de um livro,/ Abre a fonte lacrada”. Como Loth, o patriarca dos Moabitas que, muito idoso engendrou uma nova descendência, o avô Ianelli a todos fecunda e deixa um duplo legado: uma herança e uma história, suas obras e um exemplo de vida consagrada à arte. História de ricas povoações do espaço. Arte é espaço ocupado, vida acrescentada, criação demiúrgica que se instaura no tempo. No mito também há jogo de vida e morte, só o morto tem a vida completa, fábula contada, história. “A gente morre é para provar que viveu”, disse Guimarães Rosa. E Mariana, no penúltimo poema, Diante da paisagem: “Bendita vida, trigueira vida/ Pasmando o nada”. Pois “o mito é o nada que é tudo”, como entendeu Fernando Pessoa, aqui o nada da ausência, o vácuo, o “vazio de quanto amávamos” da epígrafe de Drummond.

 

 

 

Em A palavra, a poeta faz esta confidência:

 

Eu te procuro

Em tempos de rara cortesia”.

 

Tempos de Mariana Ianelli,

que assumiu matrilinearmente o sobrenome do avô:


O teu nome se descobre

Feito de estranhas vogais.


E logo adiante:


E o que era eterno se ausenta

Em tudo à espera

De uma nova eternidade.


A poesia de Mariana Ianelli contrapõe, aos modismos contemporâneos, às elaboradas assonâncias, profundas ressonâncias artísticas e culturais. Trata-se de um corajoso retorno ao sagrado e às essências da humana condição. E justamente por representar um contrapeso e um antídoto à nossa época é que a sua poesia é necessária. Daí sua extraordinária atualidade. Nesta homenagem ao avô, de quem segue o exemplo de dedicação integral ao próprio ofício, a poeta encerra o livro como a cor do quadro de Arcangelo Ianelli, que, em seu triunfo sobre a sombra, expressa a vitória da luz. 

Memorando


Não há grandes notícias.
Uma torre desapareceu,

O inverno expandiu-se

E a esperança ainda rói

O fundo de uma caixa

Procurando saída.
Com esculpido esmero

Vai se acabando uma família.
Um gesto qualquer se repete

No ensaio de ser abolido,

Remediar, abafar, corrigir,

Nada lembra o que antes foi só

Generosidade de coisa viva.
Não convém

O alvoroço dos pássaros,

A revanche da galhardia.

É inútil desafiar o pó

E, contudo, desafia-se.


 

© Mariana Ianelli - Treva Alvorada - Editora Iluminuras, São Paulo, 2010

Publicado em Rascunho (Curitiba PR Brasil)

publicado por ardotempo às 20:47 | Comentar | Adicionar

Sala de estar

Fotografia

 

 

 

 

Pierre Yves Refalo - Sala / Mercado das Pulgas / Mercado Paul Bert (Paris França), 2010

publicado por ardotempo às 19:51 | Comentar | Adicionar

As birras do pai

 

Janjão

 

António Lobo Antunes

 

 



Há quatro ou cinco dias, no intervalo do livro, abri um dos sete envelopes grandes e pardos que o meu pai deixou cuidadosamente numerados sob o meu nome, António, escrito na sua caligrafia bonita, um pouco inclinada para a direita, um pouco preciosa demais, um pouco petulante e que, de certa forma, o retrata inteiro, e encontrei os bilhetes-postais que o meu avô lhe mandava da guerra em França, com gravuras infantis estampadas que o tempo não tornou apenas mais atractivas, tornou encantadoras.

 

A maioria são redigidos a lápis, cheios de recomendações, promessas e pedidos de bom comportamento, o meu pai tinha dois anos, não sabia ler (era de certeza a minha avó que lhos lia) e começavam sempre por Querido Janjão. De repente o adulto que conheci toda a vida tornou-se uma criança que podia ser meu neto, fazia birras, não queria comer, "aborrecia a mãizinha" e eu a olhar aquilo com pasmo, a pensar num pai criança e num avô de vinte e sete anos, a pingar de ternura, e a desejar que em menino pingassem uma ternura igual sobre mim. Sempre senti um amor imenso pelo meu avô ao ponto de, ainda hoje, lhe beijar o retrato quando não estão a olhar.

 

Era o homem mais viril e corajoso que conheci, capaz de expansões de afecto que nunca esquecerei, o verdadeiro fundador de uma dinastia a que me orgulho de pertencer, mas o que me intrigou nos postais foi o facto de o meu pai haver sido o Janjão, nome que jamais ouvira em relação a ele. Para mim o seu nome foi sempre Pai e julgo que o conheço melhor agora, seis anos depois da sua morte. É curioso como foi mudando cá dentro neste tempo, compreendo-o melhor, perdoo-lhe sem dificuldade os defeitos mas continuo a não ser amigo dele, a ser apenas seu filho e é assim que quero que a nossa relação prossiga, porque há-de prosseguir, quer eu deseje quer não, até me fecharem uma tampa em cima e me mandarem para os Jerónimos com honras de Estado. A vida é um tribunal inesperado e o julgamento do pai pelo filho um acto impiedoso e terrível, encarando-o num ressentimento acusador. Sou consciente dos defeitos e limitações dele como sou consciente das suas qualidades, e a casa de Benfica, onde vivemos até adultos, os meus irmãos e eu, tornou-se um lugar vazio e triste sem a sua presença. Tudo mudou permanecendo igual mas a sua falta faz-me coxear, sem dar por isso, de compartimento em compartimento.


Está em todos e não está em nenhum, o Janjão, que se manteve, a vida inteira, embirrento, teimoso, egoísta, como o meu avô mansamente lhe dizia de França, nos seus postais antigos, ele que podia não ser muito inteligente mas sempre admoestou com doçura, característica que o Janjão não tinha.


E no entanto, ao escrever sobre o pai nos tais envelopes grandes e pardos, a sua habitual rigidez torna-se surpreendentemente terna, de uma ternura contida mas óbvia, que o Janjão não mostrava ou lhe era muito difícil mostrar, sob uma espessa fachada de intransigência severa. A minha mãe sustenta que o Janjão foi feliz, "o homem mais feliz que conheci porque só fez o que queria". Não estou bem de acordo com ela. Acho que só fez o que queria, sim, mas sempre senti nele o desejo secreto de fazer o que não queria se para tal o ajudassem, mostrando-lhe que não ficaria destruído se pudesse estar mais próximo dos outros, longe do feroz individualismo que usava para ocultar uma fraqueza quase infantil, de que o receio de se exibir tal qual era o impedia.
O facto de guardar preciosamente todos aqueles Janjões, que mais ninguém conhecia, tocou-me, quase me deu vontade de lhe pegar ao colo, garantir-lhe que havia, para ele, um lugar no mundo fora dos muros com cacos de vidro em cima, tantas vezes construídos de má-criação e violência, de que se rodeou.

 

Não o estou a julgar, Janjão, estou a falar de si com serenidade.


Em certos momentos, imensamente raros, esquecia-se do papel que tinha de representar e que talvez um postal, vindo da guerra no estrangeiro, ajudasse a prolongar um pouco. Claro que herdei alguma coisa dele: a solidão feroz, a capacidade de ser horrivelmente desagradável para os outros, os caprichos não tão incompreensíveis quanto isso, apenas defensivos, a agressividade injusta, o receio que me toquem demasiado fundo e fique tão sem pele, tão vulnerável, tão à mercê dos outros. Salvei-me através da escrita, matéria para a qual o Janjão, com grande dor sua, não tinha o menor talento.


O sonho secreto dele era ser artista mas faltava-lhe a sensibilidade, os meios de expressão, o que ele chamava "a faísca". Julgo que se orgulhava de mim e portanto, agora, não se encrespe comigo ao dizer-lhe, querido Janjão, que se o menino se portar bem e não aborrecer a mãizinha o paezinho, seu filho, manda-lhe um presente muito engraçado para o Janjão brincar até eu voltar à sua casa, bater à porta da sua sala, onde estava sempre sentado, com uma prancheta nos joelhos, e lhe dizer a sorrir Olá pai antes de roçar a bochecha na sua (nunca nos beijámos a sério) e ocupar o divã para falar consigo.


António Lobo Antunes

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publicado por ardotempo às 19:36 | Comentar | Adicionar

Grises de Carla Gonçalves

A pintura de Carla Gonçalves

 


 

 

 

 

 

 

A pintura de Carla Gonçalves, pela atenção e recomendação de João Paulo Sousa - desde Portugal

Veja o site da pintora: Carla Gonçalves - Pintura

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publicado por ardotempo às 19:02 | Comentar | Adicionar

A jardineira da esperança

Jornal no café da manhã


A dor que me dá um pássaro coberto de petróleo. É um misto de cólera, vergonha e desalento quando vejo naqueles olhos mínimos a pena imensa que um pelicano tem do homem. No mesmo noticiário, a imagem do canal de rios da Louisiana prateado de peixes mortos. Num relance não me dou conta dos peixes, confundo o gigantesco tapete de escamas com uma estrada. A ilusão de ótica, nesse caso, é uma inconformidade dos olhos.

Agora o caso dos mineiros na jazida de San José, no Chile. Soterrados há quase dois meses, esses homens permanecem vivos e não fazem mais que esperar. Para lá desceram, a 688 metros de profundidade, e acidentalmente encontraram uma palavra cujo sentido nunca antes pareceu tão precioso. Em uma galeria de refúgio, a esperança custa a ser resgatada. São 33 homens no ventre da terra desejando voltar à luz.


Enquanto isso, em Cancún, um museu subaquático de esculturas começa a ser montado. Centenas de figuras de cimento, inspiradas em pessoas reais, estão sendo ancoradas no fundo do mar. Detenho-me em uma dessas figuras, uma garota deitada entre corais, intitulada “A Jardineira da Esperança”.

 

Dentro de alguns anos, pólipos e anêmonas cobrirão essa escultura e então suas formas talvez apenas vagamente lembrem um corpo humano. Aqui, a esperança instala-se nas profundezas e repousa.

 

Aqui, a ilusão de ótica é a maravilha dos olhos. Finalmente um bonito colóquio entre a natureza e o homem.

 

 

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

Imagem" "A jardineira da esperança" - Museu Aquático de Cancun - México

publicado por ardotempo às 14:15 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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