Este JANTAR está excelente, bom para pensar
O JANTAR
Um jantar lida com apetites, aguça sentidos, mexe com corpos.
À mesa de refeições, comida e bebida são dispostas, muitas vezes, não apenas para saciar fome e sede, mas como razão ou pretexto de encontros. Ali podem acontecer reuniões memoráveis, saborosas, divertidas, plenas conversas e debates, carregadas de afetos e de disputas. O jantar mistura muitos ingredientes, alimentos, sensações, idéias, emoções. Em torno da mesa se fazem jogos de sedução e de poder, há afinidades e competições. Um espaço ‘bom para pensar’ a sociedade e a cultura.
Num tempo em que comida e gastronomia viraram moda, multiplicam-se ‘chefs’ e celebridades, ‘experts’ e especialistas que, na televisão, nas livrarias e até no cinema, com propósitos por vezes quase antagônicos, falam de mesas e de dietas, de prazeres e de restrições, enquanto se propõem a ensinar a escolher, preparar, combinar e harmonizar alimentos e bebidas. Este livro não fica alheio a este mundo, no entanto, se propõe a olhá-lo por outra perspectiva.
Naira trata de comidas e bebidas, de ervas, especiarias, vinhos e licores, mas não traz receitas nem regras, não ensina modos de preparo ou etiquetas. Ela analisa a mesa de jantar, ou melhor, a gastronomia, como um artefato da cultura. E, uma vez que ‘existe gastronomia quando há possibilidade de escolhas’, tal como lembra, se dispõe a examinar algumas destas escolhas. A preferência por produtos, por formas de preparo ou de apresentação; a decisão sobre quem prepara, quem tem a primazia de sentar à mesa; a eleição das horas e das regras das refeições; a distinção das mesas dos nobres e das mesas populares, dos alimentos finos ou vulgares; a valorização do que é local ou do que é raro, da cozinha dos antepassados ou dos estrangeiros – as múltiplas e complexas escolhas que indicam e marcam posições de sujeitos, lugares sociais, gêneros, identidades. Nenhuma destas escolhas é, absolutamente, ‘inocente’, antes disso, elas são todas, de algum modo, cúmplices de sutis e, por vezes, arraigadas relações de poder.
Este livro se inscreve numa perspectiva dos Estudos Culturais, com um olhar particularmente voltado para as trocas de gênero e nacionalidades que se fazem e se reiteram no âmbito da gastronomia. Naira trata do disciplinamento e das transformações dos gostos, analisa autoridades e restrições de homens e mulheres na cozinha e na mesa, observa tradições e modas, regionalismos e importações, misturas e tendências. Mostra como a comida participou (e participa) da construção da identidade brasileira, questiona mitos, discute a dinâmica dos gêneros em torno do fogão e das mesas. Ao olhar acadêmico agrega sua experiência como docente de uma escola de gastronomia e, assim, constrói um texto ‘leve’ e provocante que, simultaneamente, instiga a pensar e faz sorrir. Como num jantar bem realizado, aqui o tempero é sutil e os sentidos são despertados. Vale a pena provar deste texto.
© Guacira Lopes Louro - Apresentação de O JANTAR, de Naira Scavone - Edições ARdoTEmpo
Imagens de Mauro Holanda