Domingo, 12.09.10

Este JANTAR está excelente, bom para pensar

O JANTAR

 

 

 

Um jantar lida com apetites, aguça sentidos, mexe com corpos.

 

À mesa de refeições, comida e bebida são dispostas, muitas vezes, não apenas para saciar fome e sede, mas como razão ou pretexto de encontros. Ali podem acontecer reuniões memoráveis, saborosas, divertidas, plenas conversas e debates, carregadas de afetos e de disputas.  O jantar mistura muitos ingredientes, alimentos, sensações, idéias, emoções. Em torno da mesa se fazem jogos de sedução e de poder, há afinidades e competições. Um espaço ‘bom para pensar’ a sociedade e a cultura.

 

Num tempo em que comida e gastronomia viraram moda, multiplicam-se ‘chefs’  e celebridades, ‘experts’ e especialistas que, na televisão, nas livrarias e até no cinema, com propósitos por vezes quase antagônicos, falam de mesas e de dietas, de prazeres e de restrições, enquanto se propõem a ensinar a escolher, preparar, combinar e harmonizar alimentos e bebidas. Este livro não fica alheio a este mundo, no entanto, se propõe a olhá-lo por outra perspectiva.

 

Naira trata de comidas e bebidas, de ervas, especiarias, vinhos e licores, mas não traz receitas nem regras, não ensina modos de preparo ou etiquetas. Ela analisa a mesa de jantar, ou melhor, a gastronomia, como um artefato da cultura. E, uma vez que ‘existe gastronomia quando há possibilidade de escolhas’, tal como lembra, se dispõe a examinar algumas destas escolhas. A preferência por produtos, por formas de preparo ou de apresentação; a decisão sobre quem prepara, quem tem a primazia de sentar à mesa; a eleição das horas e das regras das refeições; a distinção das mesas dos nobres e das mesas populares, dos alimentos finos ou vulgares; a valorização do que é local ou do que é raro, da cozinha dos antepassados ou dos estrangeiros –  as múltiplas e complexas escolhas que indicam e marcam posições de sujeitos, lugares sociais, gêneros, identidades. Nenhuma destas escolhas é, absolutamente, ‘inocente’, antes disso, elas são todas, de algum modo, cúmplices de sutis e, por vezes, arraigadas relações de poder.

 

Este livro se inscreve numa perspectiva dos Estudos Culturais, com um olhar particularmente voltado para as trocas de gênero e nacionalidades que se fazem e se reiteram no âmbito da gastronomia. Naira trata do disciplinamento e das transformações dos gostos, analisa autoridades e restrições de homens e mulheres na cozinha e na mesa, observa tradições e modas, regionalismos e importações, misturas e tendências. Mostra como a comida participou (e participa) da construção da identidade brasileira, questiona mitos, discute a dinâmica dos gêneros em torno do fogão e das mesas. Ao olhar acadêmico agrega sua experiência como docente de uma escola de gastronomia e, assim, constrói um texto ‘leve’ e provocante que, simultaneamente, instiga a pensar e faz sorrir. Como num jantar bem realizado, aqui o tempero é sutil e os sentidos são despertados. Vale a pena provar deste texto.

 

© Guacira Lopes Louro - Apresentação de O JANTAR, de Naira Scavone - Edições ARdoTEmpo

Imagens de Mauro Holanda

 

publicado por ardotempo às 19:02 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

A realidade forjada

Quando o fim lembra o começo

 

Ferreira Gullar

 

O fim do "Jornal do Brasil" - que há duas semanas deixou de circular em papel - nos leva, a nós que nele trabalhamos, a lembrar dos anos passados em sua Redação, a lembrar dos colegas e dos momentos que nos marcaram.


As lembranças são muitas e diversas, porque muitos ali batalharam, e em diferentes momentos. Há os que, como eu, atuaram no JB da avenida Rio Branco, o antigo JB, que renasceu das cinzas para se tornar um jornal moderno e vibrante; outros, pelo contrário, viveram já a fase de declínio, quando a Redação foi transferida para o prédio novo da avenida Brasil.


Transferência que, na opinião de muitos, foi uma rematada maluquice, não apenas pela grana gasta para erguer aquele prédio enorme e feio, como por fazê-lo numa área pouco valorizada da cidade, de difícil acesso e fora de mão.


De minha parte, eu, que trabalhei no prédio antigo, mal me imagino tendo de ir diariamente para aquele ponto da avenida Brasil e sair de lá altas horas da noite. Mas, quando essa transferência se deu, eu já havia sido demitido havia muitos anos.


Fui demitido em 1962, por efeito da greve de jornalistas que marcou o renascimento da consciência reivindicatória de nossa profissão, depois de 50 anos quietinha, sem nada reivindicar.


Mas essa foi a minha segunda demissão, porque houve uma primeira, em 1959, que me pegou de surpresa, já que eu era amigo do editor-chefe e chefiava, eu próprio, o copidesque do jornal, quando, entre outras novidades, introduziu-se nele a técnica do lide e sublide. Fui demitido porque não aderi à conspiração que visava afastar da direção do suplemento literário meu amigo Reynaldo Jardim.


O suplemento, que lançara a poesia concreta, o movimento neoconcreto e esbanjava espaço em branco nas páginas, não contava com a simpatia de alguns poucos, que se valeram de uma atitude impensada do Reynaldo, para acabar com aquela farra. Só que eu disse não ao convite velado e, com isso, me tornei persona non grata. Um mês depois, ao voltar de uma viagem a São Paulo, soube que estava demitido.


Isso implicava em não ter como pagar o aluguel do apartamento e as despesas da família. Reynaldo me chamou e ofereceu-me uma solução: eu passaria a escrever para o suplemento literário, sob pseudônimo, já que a demissão implicava meu afastamento total do jornal, inclusive da página de artes plásticas que mantinha no SDJB. A proposta de Reynaldo, se não me restituía o total da renda mensal, salvaria ao menos o aluguel do apartamento.


Achei melhor não usar pseudônimo e bolei uma seção que se intitulou "Tabela" que consistia em comentar os artigos publicados nos suplementos literários de outros jornais. Era interessante porque, desse modo, ofereceríamos aos nossos leitores o essencial dos demais suplementos. Assim, apresentava sínteses de artigos de Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, Willy Levin, os comentava, ora discordando, ora concordando com o que afirmavam.
Sucede que eu tinha que encher uma página inteira para justificar o meu pró-labore, mais alto que o dos demais colaboradores, e nem sempre encontrava, nos suplementos, artigos suficientemente interessantes para comentá-los. Foi então que apelei para a imaginação.


Passei a inventar artigos e articulistas que nunca existiram e comentava o conteúdo desses textos inventados. Como era eu quem os inventava, tratei de inventá-los interessantes tanto quanto possível, mais polêmicos que os artigos verdadeiros. Foi um sucesso, choviam cartas à Redação de leitores que desejavam participar das polêmicas que eu propiciava. Assim a "Tabela" tornou-se uma das seções mais lidas do SDJB.


E fui em frente. Certo dia inventei a história de um poeta negro, que escrevia em francês e estava sendo considerado um novo Rimbaud. Escrevi: "Na revista "A Revista", o crítico Forjaz Forjan comenta o livro do poeta Fulano de Tal (não me lembro o nome que pus no vate inexistente), que está sendo considerado pela crítica francesa um gênio da poesia. Nesse artigo, ele cita uma declaração do próprio poeta que diz o seguinte: "Meus poemas são, na verdade, plágios. Agora, que a crítica me consagrou, devo declarar que fiz isso para demonstrar que o que se chama poesia é mais uma sacanagem dos brancos'".

 

Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL

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publicado por ardotempo às 14:36 | Comentar | Adicionar

"Não misture as bebidas"

Retrato de Igor Symanski Rey Gil

 

 

 

Imagem junto a "Auto Retrato", pintura em óleo sobre tela de Sérgio GAG (Centro Cultural CEEE Erico Verissimo)

- Fotografia pela artista Carla Osorio

publicado por ardotempo às 13:37 | Comentar | Adicionar

O JANTAR

 

 

O Jantar


Naira Scavone


Um ensaio acadêmico de análise comportamental sobre o surgimento da alta gastronomia no Brasil.

Ensaio leve, delicioso, provocativo e instigante sobre os costumes, a aceitação e o desenvolvimento da alta gastronomia entre os brasileiros.

 

Fotografias de Mauro Holanda

!68 páginas 4 x 4 cores

Preço: 30,00

ISBN 78-85-62984-03-7

PRONAC nº 08 9391

Edições ARdoTEmpo

 

publicado por ardotempo às 03:25 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

A teologia do petróleo

 

Retóricas do 11 Setembro

 

João Ventura

 

 


 

Foi há nove anos que a queda das Torres Gémeas, em Nova Iorque, inaugurou de forma tragicamente espectacular o novo milénio, trazendo consigo o regresso da História depois do seu «fim» proclamado por Francis Fukuyama e de um período em que se assistiu a uma espécie de «greve dos acontecimentos» - segundo a fórmula de Baudrillard - numa Europa e América sem guerras desde 1945. O espectáculo de fogo mortal, visível em tempo real em todo o planeta, superaria todas as ficções, tornando-se na grande metáfora de um mundo com anemia moral e alimentado pela hipocrisia e pela felicidade engarrafada, mas irremediavelmente ferido a partir do 11de Setembro de 2001.


A vida nova depois do 11-S, simultaneamente maculada e redentora, tem dado origem a uma repetição dos discursos sobre o acontecimento, visando a sua «legibilidade», à luz de interesses variados e, muitas vezes, antagónicos, legitimadores da resposta ocidental à «barbárie» de um Islão desfigurado, perseguida pelo «profeta electrónico» Bin Laden, cujas aparições acontecem na única realidade do nosso tempo, a televisão. Que caminhamos agora entre os vestígios de uma catástrofe cuja onda de choque continua a repercurtir-se no mundo já o sabemos. Só não sabemos é se a catástrofe ficará por ali, sepultada junto ao ground zero nova-iorquino, agora irremediavelmente ameaçado pelo novo skiline mercantil em construção no mesmo lugar ou se continuará, como uma onda de choque imparável, a desmoronar cidades e vidas longe daquele epicentro.


Haverá, ainda, redenção possível depois de tanta ruína? Se, num estado próximo do sonambulismo, W. G. Sebald caminhasse depois do 11-S sobre os mesmos tijolos calcinados, talvez voltasse a dizer: «Demasiados edifícios ruíram, amontoou-se demasiado entulho, são intransponíveis os sedimentos e as moreias» [Os Anéis de Saturno, Teorema, p. 172].


Mas será que o 11-S, nas suas causas e efeitos, constituiu uma cesura radical na narrativa moderna? Ou não terá sido antes mais um episódio de esbanjamento trágico do potencial redentor da humanidade? Foi, seguramente, um regresso ao fundamentalismo religioso incentivado pelo «choque das civilizações» (Samuel Huntington, O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Gradiva, 1999) ou «choque dos preconceitos» - como corrigiu Edward Said (Orientalismo, Cotovia, 2004] -, marcado pela tendência para a «teologização do político» e para a «instrumentalização política da religião» [Alain Badiou, Circunstances, Éditions Léo Scheer, 2004] tão presente nos discursos maniqueístas dos protagonistas desta tragédia global. Seja como for, cesura ou continuidade histórica, neste tempo de ebulição catastrófica, ganham adeptos as teorias salvícas que vão hipostasiando um «nós» ocidental contra um Islão desfigurado pela violência fundamentalista, fazendo-nos, assim, roçar um abismo cujo fundo negro desconhecemos. Multiplicam-se, por isso, os discursos que visam a «legibilidade» do 11-S à luz dessas mesmas teorias que conduzem a um perigoso resvalar para territórios de liberdade condicionada no mundo ocidental, refém, sempre, da maldição moderna do petróleo.


Eis a retórica dominante na efeméride negra do 11-S, como se o acontecimento apenas pudesse ter «legibilidade» através de um discurso legitimador da resposta americana enviesada, não tanto contra o terrorismo, mas contra um «inimigo providencial» [Carl Schmidt, Théologie politique, Gallimard, 1969] , em cujas fileiras se contam já milhares de vítimas inocentes, iraquianas sobretudo, mas também soldados das forças internacionais, enquanto deixa os sequazes de Bin Laden à solta no Afeganistão e no Paquistão. Ou, num sentido oposto, nos discursos negacionistas de uma certa esquerda, anacrónica, e também ela maniqueísta, só que invertendo os polos do bem e do mal.


E qual retórica da literatura sobre o 11-S? Tem sido ela capaz de retraçar o acontecimento dando conta da consternação do «mundo ocidental» pós 11-S? No epicentro da catástrofe, vários escritores americanos publicaram romances sobre a vida depois do 11-S. «Ela falou da torre […] claustrofobicamente, o fumo, os corpos desmembrados, e compreendeu que podiam falar daquelas coisas somente entre eles» - escreve Don DeLillo em Falling Man, um romance circular a várias vozes : a de um sobrevivente do atentado, a de sua mulher e de um terrorista. E Claire Messud, em The Emperor’s Children: «aquele imenso buraco parecia una extensão da sua própria dor». E Jay McInerney, em Good Life. E Jonathan Safran Foer, em Extremely Loud & Incredibly Close/Extremamente alto & incrivelmente perto (Quetzal, 2007).


Claro que mesmo nesta literatura estamos, ainda, diante de visões hipostasiadas de um «nós» que exclui os outros, enraizadas na experiência ocidental do acontecimento, visões parciais, portanto, mas que nem por isso deixam de constituir outras formas de retraçar o acontecimento, preferindo a ficção à interpretação, a experiência individual do acontecimento à sua explicação alegórica, a sua subjectivação discursiva à sua «legibilidade» compulsiva, sem cair na tentação didáctica, mas, como cabe à literatura, expondo-nos destinos tiritantes que poderiam ser os nossos, num mundo caminhando alegremente para um «pôr-do-mundo» cada vez mais desvanecido e alheado [Peter Sloterdijk, Weltfremdheit / Alheamento do mundo (Relógio d´Água).

 

João Ventura - Publicada no blog O leitor sem qualidades

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publicado por ardotempo às 01:56 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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