Quinta-feira, 30.09.10

Em novembro, no mesmo período, no mesmo lugar

José Mário Silva e Paul McCartney

 

 

No início de novembro, exatamente entre os dias 04 e 07 estarão circulando por Porto Alegre RS Brasil, o escritor português José Mário Silva e o músico vegetariano, o beatle Paul McCartney. Certamente eles percorrerão locais diversos na cidade (ou não) e um deles estará bem mais acessível para conversar com as pessoas, na Feira do Livro, nas ruas, em livrarias, em locais públicos abertos e gratuitos e será bastante fácil obter um autógrafo.

 

 

 

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Quarta-feira, 29.09.10

Leitores existirão sempre, ainda que poucos

 

 

 

 

 

De livros e editores


António Lobo Antunes

A cabeça de um escritor é um sítio inabitável, cheio de sombras negras que se devoram umas às outras, remorsos, fantasmas, dores, insignificâncias em que não reparamos e ele repara, sensações, luzes, criaturas sem nexo. Usam o papel para ordenar este caos, vertebrar o desespero, dar ao ilógico uma coerência lógica e mostrar o nosso retrato autêntico em cacos de espelho, fundos de poço trémulos, superfícies convexas em que temos de emagrecer por nossa conta. Não se pode estender a mão a quem lê, tem de se caminhar sozinho num nevoeiro aparente em que, a pouco e pouco, as coisas se arrumam nos seus lugares. Em nenhum bom livro há personagens e história: quando muito aparência de personagens e história, usadas para tornar mais clara a vertigem do que somos. Tudo se passa no interior do interior e portanto não devia haver cursos de escrita criativa


(um paradoxo nos termos)


mas de leitura criativa. Conheço menos bons escritores do que bons leitores, um bom leitor é uma espécie muito rara. Um autor do século dezanove dedicava os seus trabalhos aos felizes poucos, expressão roubada a Shakespeare


(we few, we happy few, we band of brothers)


capazes de nadarem ao seu lado em águas muito escuras e de regressarem à tona de mãos cheias. Um livro é mais uma orelha que uma voz onde, no fim de contas, é o bom leitor quem conversa. O livro escuta. As páginas são ouvidos pacientes que nos guiam através da liberdade do silêncio, onde as nossas frases se reflectem e regressam com um sentido novo. O bom leitor só recebe na medida em que dá e a qualidade da obra depende desta troca constante, do fluxo e refluxo das emoções partilhadas. Temos de ser um agente activo do livro, fazê-lo nosso até que se torne, como queria Rilke de quem não sou admirador, excepto em raras passagens das Elegias, sangue, olhar e gesto. Se não for assim é uma comédia de enganos, um passatempo inócuo como quase tudo o que em Portugal se impinge, porque a maior parte dos editores ou são ignorantes ou são vigaristas, oferecendo ao público pacotilha impressa: um bom editor, tal como um bom leitor, é mais raro que um bom livro.

 

Uma editora comercialmente bem sucedida é má, ou então tem de fazer compromissos. A casa alemã onde estou, por exemplo, possui um catálogo honesto, dividido em duas partes, literatura e best-sellers. O argumento temos de pôr as pessoas a ler é idiota: o que temos é de ensinar as pessoas a ler.

 

Até Lenine compreendia isto, ao afirmar que a arte não tem de descer ao povo, é o povo que tem de subir à arte. Claro que não é apenas um problema português, é um problema universal. Pasmo com as listas dos tops:

ficção, dizem elas, quando a ficção não existe a não ser nas obras rasteiras. Se me dissessem que escrevia ficção sentia-me insultado: ficção que tolice, é o mundo inteiro que a gente mete entre as capas de um livro.


Vende menos? Decerto, mas há-de vender sempre. Se tivermos lado a lado, à nossa frente, Camões e o jornal, a tendência imediata é pegar no jornal, mas o jornal desaparece amanhã e Camões fica. Chamo jornalismo, explicava Gide, ao que é menos interessante amanhã do que hoje. E depois a Arte não é um desporto de competição: o editor que ponha numa cinta, por exemplo, cem mil exemplares vendidos, ou julga falar de sabonetes ou não é um editor. Se o livro for bom há-de vender muito mais do que isso: quanto terá vendido Ovídio até hoje? É apenas uma questão de tempo, porque os bons leitores existirão sempre, ainda que poucos. O que me aborrece na Arte são os comerciantes que giram em volta dela, sem lhe tocar, porque tiram o seu alimento do efémero. Faz pouco comecei uma biblioteca na empresa onde estou.


Tolstoi foi o primeiro: ao receber o livro impresso reparei que as últimas três páginas eram propaganda a lixo. Como se pode, no fim de um livro de Tolstoi, fazer aquilo? Desonestidade? Ignorância? Não faço ideia de quem é o responsável mas devia ter sido fuzilado no berço: Tolstoi de mistura com livros de cozinha e ficções. Recomecei a colecção: até agora não repetiram a indignidade. Pergunta:


Como vão os livros da biblioteca?


Resposta:


Pingam


e ainda bem que pingam. Se vendessem às grosas é que eu ficava alarmado. Os bons livros são para pingar eternidade fora: o Mondego começa gota a gota; a água suja basta virar o balde e encharca-nos. A água do balde acaba logo. O Mondego não tem princípio nem fim.


Pingam:


e que maravilha pingarem. À força de pingarem hão-de engrossar irrestivelmente, enquanto os baldes se enferrujam, amolgados, num canto do jardim.


E o que interessa
(volto à Gide)
o amanhã? A gente vive no hoje, pá, o Horácio que se dane. Que se dane a Coroa, o que vale a pena são as coroas e essas já cá cantam. O problema é que, se alguma nova editora aborda a minha agência, não começa por falar em dinheiro: fala nos nomes do catálogo. Todos eles pingam. Mas dão prestígio a uma Casa. Respeito demasiado o meu trabalho para o deixar à venda numa loja dos trezentos.


António Lobo Antunes

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Terça-feira, 28.09.10

Pare, Ouça, Respire

La partida del tren


José María del Rey Morató


Recurso literario y realidad


Como se sabe, “la partida” de tren es un momento de acción. El ferrocarril deja de estar detenido, quieto: sus  ruedas comienzan a girar sobre los rieles para llevarlo a otro lugar.


Pero la escritora Clarice Lispector (Ucrania, 1925 - Rio de Janeiro, 1977) en su cuento famoso, utiliza esa “partida” como disparador de las actitudes, los recuerdos y las palabras de los personajes.


En primer lugar, Lispector reclama – desde el título de la obra: “La partida del tren” –, la atención del lector.


En seguida vuelve a mencionarla en el primer párrafo: “Cuando la locomotora se puso en movimiento, se sorprendió un poco…”.


Fue entonces cuando el tren de pronto dio una sacudida y las ruedas se pusieron en movimiento”. Dice a sus lectores cuarenta y tres líneas después, en la página 2.


Pero debemos seguir leyendo hasta la página 9 para enterarnos que: “Cuando finalmente el tren se puso en movimiento”. En el cuento se vuelve a la realidad exterior y objetiva luego de terminado el relato, sobre el final del texto.


Porque esa “partida del tren” ha sido postergada en la escritura – una y otra vez –, mientras que para los protagonistas del cuento, ella estuvo presente todo el tiempo para ellos, como factor determinante de sus posturas, expresiones, palabras y – sobre todo – pensamientos.


Los pensamientos son más rápidos y se proyectan hacia varias direcciones, mientras que un ferrocarril, en comparación, es lento y se mueve en una sola dirección. No obstante, la presencia de la idea de la “partida del tren”, aunque demore en concretarse, determina los pensamientos, la acción psicológica.


Los protagonistas son, por orden de aparición, Angela Pralini, de 37 años, que puso fin a su tercera relación afectiva, y se evade hacia un establecimiento rural. Deja los siete whiskeys que era capaz de tomar en un rato todos los días por día y se trepa a la esperanza de volver a beber leche natural, de vaca, tibia, recién ordeñada. Sueña con andar a caballo y extraña el perro que deja en la ciudad.


Y María Rita Alvarenga Chagas Souza Melo, 77, que añora un pasado en que era alguien y disfrutaba sus riquezas. Ahora, viuda, deja atrás una hija, profesional y fría que la deposita en el ferrocarril, como un paquete, que será recogido en otra estación, horas más tarde, por un hijo productor rural, una persona simple, que la quiere un poco más. “Cuando finalmente el tren se puso en movimiento” (penúltima página de este cuento de 10 hojas), ya pasó todo lo que había que decir en este “cuento”.


La magia de Clarice Lispector – renovadora de la narrativa brasileña – utilizó esa “partida” como un recurso literario cuya fuerza nos llevó a viajar en la dimensión del pensamiento algo más que por sobre los rieles.


José María del Rey Morató

 

 



Publicado pelo Jornalista Vaz - Luiz Carlos dos Santos Vaz

 

Imagem: Fotografia de Luiz Carlos dos Santos Vaz

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Da natureza das coisas

Árvores e pássaros - Paisagem natural

 

 

 

 

 

 

Mario Castello - Natureza / Oca e árvores - Fotografia (São Paulo SP Brasil), 2010

publicado por ardotempo às 14:18 | Comentar | Adicionar

LINHA TORTA

 

 

Poema em linha torta

 


De todos os lados armam-se de teorias

futuristas cansados

tecnologias que cantam

com a ingenuidade

forjada dos pilantras

ou com a estupidez assanhada

dos paspalhos.

 


Debatem o fim da lira por todos os lados

locupletam-se com artigos

em revistas indexadas

descolam um pouco de sexo

entre o furor inerme das

comunicações de 20 minutos

tempo mais que suficiente

para os que esqueceram

Garcilaso.

 


Anunciam eufóricos a descoberta

da interatividade

tão antiga

vejam só

quanto o bom Homero.

 


Alfabetizam-se com histórias

em quadrinhos

rebatizadas com novos

e lustrosos

nomes importados:

romances gráficos

orientais mangás,

alegam ser capazes de ler na tela

300 páginas,

mas não vencem uma quadra

de Quevedo.

 


Estão por toda a parte

e vão vencendo,

falam mais alto

amasiam-se

lubrificam-se à voz procaz

dos suplementos literários.

 


Arre!

estou farto

da maçada de lhes dar combate.

 


Pobre de quem ergue versos e é

classe média

(valha-me a complacência do IBGE),

pois antes poderia ser maldito,

decadentista

amigo de Braque.

 


Hoje,

renderei no máximo

uma monografia,

louvada não por sua coragem

mas por seguir à risca

as normas da ABNT.

 


Pedro Gonzaga

 

Publicado no blog Pedro Gonzaga

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Segunda-feira, 27.09.10

O medo do mesmo

Fotografia

 

 

 

Mario Castello - O medo / Em frente ao Riviera - Fotografia (São Paulo SP Brasil), 2010

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Da paciência, do silêncio e do recato

Sensíveis hieróglifos - MARIANA IANELLI


Entrevista concedida a Rogério Pereira - Jornal RASCUNHO, Curitiba PR Brasil

 

Aos 30 anos, Mariana Ianelli é uma das mais destacadas vozes da poesia contemporânea.

 

Estreou em 1999, com Trajetória de antes. Agora, com Treva Alvorada, chega ao sexto livro. Nesta entrevista concedida por e-mail, Mariana fala de sua trajetória poética, da composição da nova coletânea, do panorama da poesia brasileira e de dois temas que lhe são muito caros: a morte e Deus, entre outros assuntos.


Rogério Pereira: Você diz que cada um de seus livros compõe um percurso. Ao chegar a Treva Alvorada, a sexta reunião de poemas, como você avalia a composição deste percurso, iniciado em 1999, aos 20 anos, com Trajetória de antes?


Mariana Ianelli: Enquanto um livro está sendo escrito, existe uma lógica interna que não aparece e, nesse caso, tentar o cálculo perfeito seria tão ingenuamente ambicioso quanto querer premeditar uma vida. Digo isso pensando não exatamente no percurso de uma década, mas em ciclos, cada livro uma vida. Agora, reavaliando esse caminho, vejo que os títulos falam de um lugar (Trajetória de antes, Almádena), de um estado de espírito (Duas chagas, Fazer silêncio), de uma duração (Passagens, Treva Alvorada). Há temas que sempre ressurgem, mas a cada livro o olhar é outro, um olhar novo, nascente, porque a vida é outra. Assim acontece um ciclo de nascimento e morte, morte e renascimento.


RP: Treva Alvorada foi escrito em 2009 durante os meses de enfermidade e morte de seu avô, Arcangelo Ianelli. Como foi todo o processo de escrita dos poemas em um momento tão delicado, em que a vida nos parece ainda mais incerta?


MI: Foi um período dificílimo, de guerra interna, de sofrimento, um desses momentos em que nenhum subterfúgio funciona. Nessa hora ficamos sozinhos com as palavras. Na realidade, Treva Alvorada começou a ser escrito no final de 2007 e terminou meses depois do falecimento do meu avô, em 2009. Os poemas assimilaram essa despedida, é verdade, mas não há uma referência explícita ao meu avô no livro senão na dedicatória e nos poemas da oitava parte. Ou seja, o que foi uma circunstância pessoal se transfigurou em uma vivência poética, houve uma redescoberta dessa morte, porque a realidade concreta pode ser também a grande metáfora de uma realidade invisível. No livro, os poemas acabaram agrupados em nove partes.

 

Na primeira parte, foi um despojamento de projetos, de expectativas; na segunda parte, um apelo ao outro, um pacto amoroso com o outro, na promessa, na renúncia ou em um último abraço; na terceira parte, foi um questionamento da fé, da esperança, daquilo que nos resta quando sobrevém a ruína; na quarta parte, a figura do soldado, aquele que se vê no campo de batalha, outro que é prisioneiro, e o desertor, espelho do filho pródigo; na quinta parte, a Quimera, o Narciso, a Esfinge, mitos que se aproximam uns dos outros, me parece, por um despertar que envolve sacrifício; na sexta parte, o assentimento na morte, a descida ao fundo da noite, onde começa a alvorada; na sétima parte, poemas que visitam algumas passagens bíblicas, como a parábola do filho pródigo, a peste das casas, a destruição de Sodoma, a origem dos Moabitas; na oitava parte se concentram os poemas dessa experiência pessoal de morte do meu avô, a provação de um homem levado ao limite das suas forças, um homem como Jó, ou Hércules em seus trabalhos; na última parte, poemas que falam para Deus, ou que desembocam em um desarmamento final, em um consentimento lírico. Resumidamente, o caminho foi esse.


RP: No texto de apresentação de Treva Alvorada, você escreve que “a paisagem que se delineia, agora, espera seu redescobrimento”. Você acredita que os poemas serão outros quando absorvidos pelo leitor? O que você pretende causar neste leitor?


MI: Penso que o sentido de um poema depende de um leitor comovido e essa comoção, esse transporte, vem de uma experiência pessoal, por isso acredito sim que cada leitor faz o seu mergulho, o seu percurso de leitura, cada um é peregrino do seu próprio labirinto. Eu mesma redescobri os poemas de Treva Alvorada depois de terminado o livro.

 

Por exemplo, o fato de o primeiro poema se chamar Exílio e o último Na casa do pai não foi algo que eu tivesse planejado, foi um itinerário que se formou no fim de tudo. E, quando terminamos um livro, já estamos em outra parte, é como se deixássemos uma gruta cheia de hieróglifos. Então um dia alguém entra ali, acende um fogo e descobre todas aquelas imagens. Os poemas esperam por isso, por essa visita, esse fogo que está com o leitor.


RP:  A morte está no centro de Treva Alvorada. De que maneira você lida com este tema no dia a dia, já que “É inútil desafiar o pó / E, contudo, desafia-se”?


MI: A morte está presente para mim todos os dias e em todos os livros. Morremos tantas vezes, enfrentamos tantas passagens que a última delas não faz mais que romper um último vínculo. Conviver com essa perspectiva educa a atenção, a palavra passa a ter um outro peso, é preciso prestar contas do que é dito, assumir um compromisso, uma vigilância, além de certa modéstia diante do que escapa ao nosso domínio. Todos desafiamos o pó construindo, criando, sabendo admirar, é um pacto pela beleza que nos põe do lado da vida. Não é a presença da morte enquanto desolação, esterilidade, mas aquele intervalo de criação entre tarde e manhã, um vazio que está ali como embrião de coisas vivas.


RP: De que maneira a literatura (e em especial a poesia) tornou-se protagonista em sua vida? Quando você decidiu ser escritora?


MI: Desde os quinze anos a poesia me acompanha. Tive uma adolescência, digamos, mais recolhida, então, com o tempo, inevitavelmente a literatura foi ganhando espaço. Além de prazerosa, tornou-se necessária, uma espécie de tempo interior que foi se alargando. Trajetória de antes e Duas chagas foram resultado desse meu primeiro contato, ainda muito intuitivo, com a poesia. Passagens, que veio na seqüência, de certa maneira é uma síntese dessa experiência inaugural, aquele que poderia ter sido o meu primeiro livro.


RP: Há uma profusão de poetas espalhados Brasil afora. O que tem a dizer a poesia contemporânea brasileira? E o faz com qualidade?


MI: Há centenas de poetas, realmente, alguns muito bons, já com prestígio, outros que ainda esperam ser reconhecidos. O que às vezes parece faltar à poesia é um arrebatamento que não seja somente intelectual, algo parecido com aquela sinceridade pungente que levou o jovem Vinicius de Moraes a dizer em um poema: “Afugenta o infinito que me chama/ Que eu estou com muito medo, minha mãe”. Falta um pouco essa coragem, essa entrega a alguma coisa comovente, desobrigada de uma exibição de inteligência. A metalinguagem, por exemplo, expôs os alicerces da poesia como um enorme esqueleto. Agora, me parece, seria o caso de dar vida a esses ossos, fazer o espírito entrar neles.


RP: Nestes tempos dos mais apressados, interligados e insones, a poesia e sua lentidão são o necessário contraponto? É possível cobrar isso da poesia?


MI: A poesia não se submete à pressa, seu tempo é outro, é o tempo da liturgia, como diria Cristina Campo. Acontece que vivemos em uma época de violenta desatenção, de falta de silêncio, de tirania da eficácia, uma época em que o espalhafatoso se tornou uma das mais emblemáticas expressões da nossa angústia. Quando parece não haver mais o que dessacralizar, dessacralizamos o tempo. Talvez nada seja tão subversivo hoje quanto fazer durar, ter paciência. Creio que a pergunta é, na verdade, se podemos cobrar da poesia imediatez, rendimento, participação nesse ritmo convulsivo.


RP: Deus percorre as páginas de Treva Alvorada com uma presença robusta e importante. O que Deus significa para você? Ele é imprescindível a sua vida?


MI: Acho que basta uma imagem. Quinze anos atrás, uma menina chamada Cassiana, que era minha colega de classe, morreu. Eu me lembro de entrar em uma sala lotada de crianças e ver aquela menina tão bonita, ali, impassível, no meio das flores. Era uma beleza insuportável de se ver. Para mim, esse é o rosto de Deus.


RP: A poesia lhe satisfaz plenamente a necessidade criadora ou está em seus planos dedicar-se também à prosa: conto, romance ou crônica?


MI: Estou começando a escrever crônicas, é um gênero que me encanta porque flerta com a poesia, tem esse olhar mágico sobre o instante. Já o conto e o romance têm outro tempo, outro foco, e, nesse território, eu me contento em ser uma boa leitora.


RP:  Quais autores nunca lhe abandonaram? Como é a sua rotina como leitora?


MI: Leio sempre Drummond, Hilda Hilst, Marguerite Duras, Wislawa Szymborska. Minha rotina geralmente envolve algum tipo de pesquisa, algum estudo, e, como um livro chama para a roda muitos outros, acabo alternando a leitura de poesia, ensaio e romance. Costumo também traçar alguns roteiros, mas é difícil segui-los à risca porque as descobertas, os interesses vão se ramificando.


RP: Que tipo de literatura não a atrai de maneira alguma? Quais pecados literários são imperdoáveis?


MI: Ficção científica e literatura policial, confesso, não me atraem. Pecados literários existem vários, mas os imperdoáveis, para mim, são os trocadilhos, o uso do silêncio como mero recurso, a inovação pela inovação, o construto.


RP: Hoje, discute-se muito o impacto que as novas plataformas de leitura (em especial os e-readers) podem ter sobre os leitores e a literatura. Você acredita que o mundo digital também dominará a literatura? O livro de papel está com os dias contados?


MI: Não acredito nessa concorrência. Vejo as plataformas digitais como um novo suporte, de caráter utilitário, digamos, emergencial. O livro como objeto tem outra natureza, é sensual, tem densidade, cheiro, textura, e todos esses prazeres fazem parte da intimidade da leitura, não são descartáveis nem substituíveis, sem contar que o texto impresso tem outro peso, no papel a palavra se cristaliza.


RP: Você é mestre em Literatura e Crítica Literária e publica resenhas em jornais e revistas. Como você avalia o espaço para a literatura na grande imprensa e a qualidade da crítica literária nela publicada?


MI: O espaço para a literatura na grande imprensa, de um modo geral, é escasso. A crítica, em boa parte também por falta de espaço, acaba sendo tímida, limitada a vôos mais curtos. Convencionalmente falando, não temos mais a figura do crítico, temos escritores e jornalistas que assumiram esse papel, o que pode ser enriquecedor em termos de uma abordagem criativa, por outro lado, pode ser perigoso, porque a crítica corre o risco de ficar condicionada às convicções literárias de seu autor.


RP: No poema Entusiasmo, lê-se: “A morte vacila um passo/ E nos concede uma hora”. O que você faria se a morte lhe concedesse apenas mais uma hora?


MI: Seria como um parto do espírito. Iria me ocupar dessa hora, simplesmente.


RP: Há no Brasil uma quantidade imensa de oficinas literárias. A maioria está voltada à prosa. Você acredita na eficácia destas oficinas? Elas podem ensinar algo a quem deseja escrever poesia?


MI: Creio que as oficinas podem ajudar na sensibilização do olhar, instigar perspectivas, além de dar uma orientação sob o ponto de vista técnico. Acredito, porém, que existem sutilezas que não se ensinam, que o escritor precisa descobrir por ele mesmo, errando, na dupla acepção do termo, na errância e no equívoco, porque é aí que o poeta encontra sua voz própria, quando ninguém o auxilia, quando há somente ele e um abismo.


RP: Que conselho você daria a quem ambiciona dedicar-se à literatura como poeta?


MI: Antes de tudo, paciência, “não forçar o poema a desprender-se do limbo”, como diria Drummond, porque o tempo da precipitação poética não se submete a prazos preestabelecidos. Depois, o diálogo com outros escritores, poetas, ou simplesmente bons leitores, não importa que esses interlocutores sejam poucos, importa que sejam interlocutores verdadeiros. E o paraíso de uma biblioteca, claro, onde um poeta pode estar sozinho, mas nunca estará desacompanhado.


Entrevista publicada em RASCUNHO - Publicação gentilmente autorizada por Rogério Pereira

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Camisa Brasileira - O livro

Vestiários


Em breve, o livro das imagens secretas do futebol.

 

 

 


Trata-se  de um livro de arte, de fotografias de autoria de Gilberto Perin, com o texto de  Aldyr Garcia Schlee – um majestoso ensaio fotográfico sobre um universo pouco conhecido acerca das atividades e do comportamento dos milhares de trabalhadores do futebol, os que jogam e os que os apóiam. Não é o do espaço dos astros televisivos do super-espetáculo regido pelo rico mercado dos clubes-empresas, dos formidáveis anunciantes, dos empresários e dos artistas a quem a fortuna sorriu. É outra gente, mais numerosa, mais frágil, para quem os dramas humanos estão evidenciados e que são capazes de nos emocionar e comover com  a sua humildade e de sua humanidade. É outro espaço, é outro o tempo, são grandes as carências, as limitações materiais – mas talvez seja mais genuína a paixão que o esporte, distanciado dos holofotes do negócio-futebol, desperte em torcedores desses times e clubes espalhados pelo Brasil inteiro.

 

 


Um livro que desvenda e revela com imagens e texto, um universo que ninguém mais vê.

 

 

 

 


Fotografias de Gilberto Perin

Texto de autoria de Aldyr Garcia Schlee

Edições ARdoTEmpo

 

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Domingo, 26.09.10

Impressões digitais


Historia universal de la huella


Enrique Vila-Matas


El individualismo ha producido pocos individuos. Pero a la individualista historia del descubrimiento de las huellas dactilares en Occidente no le faltan personajes bien singulares, que parecen prestos para ser facturados directamente hacia una novela que trataría de la historia universal de la huella. Que esa historia haya producido algunos individuos bien únicos (Juan Vucetich, Alphonse Bertillon, Jan Evangelista Purkinje, Henry Faulds, Francis Galton, entre otros) no deja de ser un dato que encaja a la perfección con la extrema singularidad de toda huella dactilar. Como se sabe, no hay ninguna igual a la otra.

De terror tendrá que ser la novela que se ocupe del rastro humano que vamos dejando. Y no hay duda de que la última huella del mundo dará pánico. Pero, ¿será huella si no la ve nadie?


Lo primero que sorprende de esa historia universal es lo mucho que tardamos los occidentales en descubrir que los dedos de la mano podían servir para identificar a las personas. En comparación con China y Japón, la diferencia de años fue de más de 1.200. Porque en Europa no se empezó a pensar en todas estas cuestiones hasta 1880. Tras haber leído Fingerprints, de George Wilton, Robert Musil reflexionó sobre este retraso occidental con respecto a China y Japón, aunque no mencionó que ya en las antiguas Babilonia y Persia se usaban las impresiones dactilares: "Un ejemplo de cómo el desarrollo de la cultura no siempre logra reencontrar por otras vías en un plazo de tiempo razonable lo que pierde o descuida".


Cultura nuestra de la pérdida, del constante y mortal olvido. Puede, por ejemplo, que un día desaparezcan de la faz de la tierra todos los libros de la era de la imprenta y de la digital y no quede memoria alguna de ellos. Y que una buena mañana, dentro de unos cuantos siglos, aparezca un segundo Gutenberg, que entusiasme con su invento a la aburrida humanidad de esos días. Y puede también que surja entonces alguien que escriba como Defoe sin saberlo y haga que regrese para el mundo de los lectores la huella del salvaje Viernes en la playa desierta de Crusoe.


Cuando en 1888 apareció en Londres Jack el Destripador, estaba vigente allí un equivocadísimo método antropométrico (un invento para identificar culpables del policía francés Bertillon) que regía para todo Occidente y que consistía en la medición de varias partes del cuerpo y la cabeza, marcas individuales, tatuajes, cicatrices y características personales del sospechoso. Bertillon tuvo con su invento un fugaz gran éxito, hasta que le llegó la hora del más estrepitoso fracaso cuando se encontraron dos personas diferentes que tenían el mismo conjunto de medidas. No sobrevivió a la vergüenza de su gran ridículo. Y pasó a odiar a Juan Vucetich, un modesto policía argentino de la ciudad de La Plata, que en 1891 llevó a cabo las primeras fichas dactilares del mundo. Tras haber verificado su método con 600 reclusos de la cárcel de La Plata, en 1894 la policía de Buenos Aires acogió oficialmente el sistema de Vucetich, y no tardaron nada en adoptarlo enseguida el resto de las policías de Occidente.


O sea, que todo empezó en La Plata, esa ciudad simple y provinciana que Bioy Casares retrató con agudeza en La aventura de un fotógrafo en La Plata. El policía Vucetich, hombre de grisura inimaginable, acostumbrado a pensar solo en huellas, es todo un personaje para una buena novela. Cuando en 1913 visitó París para saludar a la policía francesa, el arrogante Bertillon le ninguneó, le hizo el más completo vacío. Demasiado apegado a su obsesiva egolatría, Bertillon no supo reconocer el interés de la dactiloscopia, el nuevo método de identificación que había reemplazado el sistema que él había inventado. Y aquí cabe preguntarse cuántas veces se habrá repetido esta historia en la que el arrogante creyó que los demás eran idiotas y, al final, resultó que el idiota era él. Sin duda, Bertillon habría sido un buen personaje para Flaubert. Y el policía Vucetich, con la cabeza llena de huellas en sus errantes paseos junto al Sena, un buen personaje para Ricardo Piglia. He conocido algunos Bertillones en mi vida. Se consideran tan superiores a los colegas de sus respectivas profesiones que ni detectan en sí mismos su cada día más manifiesta tontería o decadencia.


En Fingerprints Wilton describe a los héroes grises del mundo de las impresiones dactilares. Algunos de ellos, nos dice Musil, fueron ejemplo de mala suerte en el ámbito intelectual. Jan Evangelista Purkinje, por ejemplo, que investigó las relaciones existentes entre los surcos epiteliales y el sentido del tacto, pero -fue un ejemplo de lo que es la decencia checa- no pensó en la utilización de sus conclusiones en el campo de la medicina legal y criminal. Fue todo un personaje, un hombre íntegro. Se contentó con ser en 1833 el descubridor de las glándulas sudoríparas. Qué destino.


Henry Faulds fue otro ejemplo de mala suerte intelectual. En 1880 escribió a la prestigiosa revista Nature proponiendo un método para tomar las huellas digitales. Pero no consiguió despertar el menor interés en Scotland Yard. Faulds parece salido de Plegarias atendidas de Truman Capote, aunque solo sea por la gran fiesta que dio en su casa dos días después de que The New York Times se riera en estos términos de la impericia británica para detener a Jack el Destripador: "Hay pánico en Londres. Pero es que Scotland Yard es, probablemente, la policía más estúpida del mundo". En los días que siguieron a aquella gran fiesta, una resaca interminable le hizo a Faulds dedicarse a contar en voz alta lo que denominaba la Historia universal de la huella, ese gran relato del que nunca se ha sabido nada pero que dejó suficiente huella para originar estas líneas.


Enrique Vila-Matas - Publicado em El País

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Sábado, 25.09.10

Protagonista verde

Avenida Paulista:

 

1.000.000 de automóveis,

2.000.000 de pessoas,

museus, antenas, metrô, ônibus

milhares de emissões de sinais,

toneladas de monóxido de carbono,

uma árvore.

 

 

 

Mario Castello - Avenida Paulista - Fotografia (São Paulo SP Brasil), 2010

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Contraponto e antídoto aos modismos contemporâneos

Retorno ao sagrado


Rachel Gutiérrez - Rio de Janeiro, RJ


Carlos Drummond de Andrade terminou sua famosa Elegia com os versos:

 

Amor, quem contaria?

E já não sei se é jogo, ou se poesia”.

 

Mariana Ianelli, cujo novo livro é, em grande parte, uma elegia para seu avô, o artista plástico Arcangelo Ianelli, encontrou em outros versos de Drummond a epígrafe: “Vazio de quanto amávamos,/ mais vasto é o céu. Povoações/ surgem do vácuo./ Habito alguma?”. E os 45 poemas que compõem Treva Alvorada estão distribuídos em nove “povoações” habitadas, sim, por densa e intensa poesia.

 

Aqui, se jogo há é o que começa no oximoro do título e na capa, que reproduz um quadro da fase abstrata do pintor, triunfo da cor que se expande no escuro que a emoldura. Depois, é o jogo do claro/escuro da vida e da morte, ou o da evocação de mitos longínquos em contraste com a noite, “que durou anos”, um longo percurso de agonia e despedida. Nos últimos versos do último poema, outro começo se anuncia: “E terei me esquecido/ E terei me recordado/ Na idade certa de dizer,/ Se tempo houvesse:/ Aqui não se morre mais”.

 

Circularidade de uma experiência espiritual tão próxima de East Coker, segundo poema dos Quartets, do cristão T. S. Eliot, que termina com “In my end is my beginning”, quanto do misticismo tibetano, que diz, num provérbio, “todo mundo morre, mas ninguém está morto”. Poesia densa porque concentrada, onde as palavras são circundadas pelo silêncio do não dito, como o finito é envolto de infinito e a vida, a nossa finitude, limitada pelo tempo imensurável do passado e do futuro. Poesia intensa porque especulativa, intelectiva, meditativa.

 

Na era do entretenimento, da mera diversão, quando se foge da morte, da solidão e da busca de sentido, quando a exposição do escatológico e a banalização da violência vem se perpetuando assustadoramente, a poesia corre o risco de tornar-se mero jogo, performance ou engenhosa e pouco séria construção. Ora, quando significativa, a poesia é feita de som, de sentido e de silêncio. Mas nosso tempo é de estridências, de ruídos sem sentido e de ausência total de silêncio. Contrapondo-se a isso, Mariana Ianelli intitulou um de seus mais belos livros Fazer silêncio, onde encontramos nos versos do poema Legado (Obstinada chama dos antepassados,/ Capítulo um desta ficção de realidades), como em Perspectiva (Durou o instante de uma chama/ Mas ficou para a posteridade), e no primeiro dos Poemas para epitáfios, de outro livro, Passagens, (Porque o culto da alvorada persevera/ Tu não desaparecerás), prenúncios da temática principal de Treva alvorada.


Senhor das cores


Na primeira Povoação, o eu lírico da poeta ora encarna o eu do avô, artista múltiplo, que evoca outros tempos — “quando não havia ainda/ A necessária mortalidade das coisas,/ e (...) sobravam direções —, ora se distancia e observa consternado o intermitente definhar de um corpo (que) “ousa viver um dia”. Na segunda, e na terceira, onde a morte já espreita e “se mete/ Pelas frinchas, pelas guelras”, diz-se também que “em um minuto o passado elabora/ O museu do futuro”. Não podemos imaginar como foi a infância de Mariana Ianelli no convívio com esse avô senhor das cores e das formas, dos materiais mágicos da pintura e da escultura, mas sabemos que sua poesia é esculpida com palavras cuidadosas, pensativas, matéria e forma do trabalho de uma artista. “Quando canto,/ Sonho que flutuo sobre um pélago,/ Sonhar é o meu trabalho” (de Cântico). “Ser poeta significa estar na alegria”, diz Heidegger, em Approche de Höelderlin. Mesmo quando fala da morte, o poeta canta e aprendemos com Bachelard que o tempo da poesia é vertical, um mergulho para o alto, ou uma vertigem das profundezas. É no mistério das profundezas que são geradas as imagens e as metáforas. “Um sorvedouro/ Onde a paz dos contrários/ Treva alvorada./ Fecundado flutuas./ É a lei da graça”, como conclui o poema da sexta Povoação, que dá título ao livro.A evocação dos mitos torna mais compreensível o mistério da vida, o sentido da história, a condição do homem.

 

No 13.º Trabalho de Hércules, da oitava Povoação, “Eis o velho empreendedor,/ O indomado. (...) Mas a chaga do herói não se mostra”. E quando é lembrada a Origem dos Moabitas, na sétima Povoação: “Ele penetra/ Os recessos de um livro,/ Abre a fonte lacrada”. Como Loth, o patriarca dos Moabitas que, muito idoso engendrou uma nova descendência, o avô Ianelli a todos fecunda e deixa um duplo legado: uma herança e uma história, suas obras e um exemplo de vida consagrada à arte. História de ricas povoações do espaço. Arte é espaço ocupado, vida acrescentada, criação demiúrgica que se instaura no tempo. No mito também há jogo de vida e morte, só o morto tem a vida completa, fábula contada, história. “A gente morre é para provar que viveu”, disse Guimarães Rosa. E Mariana, no penúltimo poema, Diante da paisagem: “Bendita vida, trigueira vida/ Pasmando o nada”. Pois “o mito é o nada que é tudo”, como entendeu Fernando Pessoa, aqui o nada da ausência, o vácuo, o “vazio de quanto amávamos” da epígrafe de Drummond.

 

 

 

Em A palavra, a poeta faz esta confidência:

 

Eu te procuro

Em tempos de rara cortesia”.

 

Tempos de Mariana Ianelli,

que assumiu matrilinearmente o sobrenome do avô:


O teu nome se descobre

Feito de estranhas vogais.


E logo adiante:


E o que era eterno se ausenta

Em tudo à espera

De uma nova eternidade.


A poesia de Mariana Ianelli contrapõe, aos modismos contemporâneos, às elaboradas assonâncias, profundas ressonâncias artísticas e culturais. Trata-se de um corajoso retorno ao sagrado e às essências da humana condição. E justamente por representar um contrapeso e um antídoto à nossa época é que a sua poesia é necessária. Daí sua extraordinária atualidade. Nesta homenagem ao avô, de quem segue o exemplo de dedicação integral ao próprio ofício, a poeta encerra o livro como a cor do quadro de Arcangelo Ianelli, que, em seu triunfo sobre a sombra, expressa a vitória da luz. 

Memorando


Não há grandes notícias.
Uma torre desapareceu,

O inverno expandiu-se

E a esperança ainda rói

O fundo de uma caixa

Procurando saída.
Com esculpido esmero

Vai se acabando uma família.
Um gesto qualquer se repete

No ensaio de ser abolido,

Remediar, abafar, corrigir,

Nada lembra o que antes foi só

Generosidade de coisa viva.
Não convém

O alvoroço dos pássaros,

A revanche da galhardia.

É inútil desafiar o pó

E, contudo, desafia-se.


 

© Mariana Ianelli - Treva Alvorada - Editora Iluminuras, São Paulo, 2010

Publicado em Rascunho (Curitiba PR Brasil)

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Sala de estar

Fotografia

 

 

 

 

Pierre Yves Refalo - Sala / Mercado das Pulgas / Mercado Paul Bert (Paris França), 2010

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As birras do pai

 

Janjão

 

António Lobo Antunes

 

 



Há quatro ou cinco dias, no intervalo do livro, abri um dos sete envelopes grandes e pardos que o meu pai deixou cuidadosamente numerados sob o meu nome, António, escrito na sua caligrafia bonita, um pouco inclinada para a direita, um pouco preciosa demais, um pouco petulante e que, de certa forma, o retrata inteiro, e encontrei os bilhetes-postais que o meu avô lhe mandava da guerra em França, com gravuras infantis estampadas que o tempo não tornou apenas mais atractivas, tornou encantadoras.

 

A maioria são redigidos a lápis, cheios de recomendações, promessas e pedidos de bom comportamento, o meu pai tinha dois anos, não sabia ler (era de certeza a minha avó que lhos lia) e começavam sempre por Querido Janjão. De repente o adulto que conheci toda a vida tornou-se uma criança que podia ser meu neto, fazia birras, não queria comer, "aborrecia a mãizinha" e eu a olhar aquilo com pasmo, a pensar num pai criança e num avô de vinte e sete anos, a pingar de ternura, e a desejar que em menino pingassem uma ternura igual sobre mim. Sempre senti um amor imenso pelo meu avô ao ponto de, ainda hoje, lhe beijar o retrato quando não estão a olhar.

 

Era o homem mais viril e corajoso que conheci, capaz de expansões de afecto que nunca esquecerei, o verdadeiro fundador de uma dinastia a que me orgulho de pertencer, mas o que me intrigou nos postais foi o facto de o meu pai haver sido o Janjão, nome que jamais ouvira em relação a ele. Para mim o seu nome foi sempre Pai e julgo que o conheço melhor agora, seis anos depois da sua morte. É curioso como foi mudando cá dentro neste tempo, compreendo-o melhor, perdoo-lhe sem dificuldade os defeitos mas continuo a não ser amigo dele, a ser apenas seu filho e é assim que quero que a nossa relação prossiga, porque há-de prosseguir, quer eu deseje quer não, até me fecharem uma tampa em cima e me mandarem para os Jerónimos com honras de Estado. A vida é um tribunal inesperado e o julgamento do pai pelo filho um acto impiedoso e terrível, encarando-o num ressentimento acusador. Sou consciente dos defeitos e limitações dele como sou consciente das suas qualidades, e a casa de Benfica, onde vivemos até adultos, os meus irmãos e eu, tornou-se um lugar vazio e triste sem a sua presença. Tudo mudou permanecendo igual mas a sua falta faz-me coxear, sem dar por isso, de compartimento em compartimento.


Está em todos e não está em nenhum, o Janjão, que se manteve, a vida inteira, embirrento, teimoso, egoísta, como o meu avô mansamente lhe dizia de França, nos seus postais antigos, ele que podia não ser muito inteligente mas sempre admoestou com doçura, característica que o Janjão não tinha.


E no entanto, ao escrever sobre o pai nos tais envelopes grandes e pardos, a sua habitual rigidez torna-se surpreendentemente terna, de uma ternura contida mas óbvia, que o Janjão não mostrava ou lhe era muito difícil mostrar, sob uma espessa fachada de intransigência severa. A minha mãe sustenta que o Janjão foi feliz, "o homem mais feliz que conheci porque só fez o que queria". Não estou bem de acordo com ela. Acho que só fez o que queria, sim, mas sempre senti nele o desejo secreto de fazer o que não queria se para tal o ajudassem, mostrando-lhe que não ficaria destruído se pudesse estar mais próximo dos outros, longe do feroz individualismo que usava para ocultar uma fraqueza quase infantil, de que o receio de se exibir tal qual era o impedia.
O facto de guardar preciosamente todos aqueles Janjões, que mais ninguém conhecia, tocou-me, quase me deu vontade de lhe pegar ao colo, garantir-lhe que havia, para ele, um lugar no mundo fora dos muros com cacos de vidro em cima, tantas vezes construídos de má-criação e violência, de que se rodeou.

 

Não o estou a julgar, Janjão, estou a falar de si com serenidade.


Em certos momentos, imensamente raros, esquecia-se do papel que tinha de representar e que talvez um postal, vindo da guerra no estrangeiro, ajudasse a prolongar um pouco. Claro que herdei alguma coisa dele: a solidão feroz, a capacidade de ser horrivelmente desagradável para os outros, os caprichos não tão incompreensíveis quanto isso, apenas defensivos, a agressividade injusta, o receio que me toquem demasiado fundo e fique tão sem pele, tão vulnerável, tão à mercê dos outros. Salvei-me através da escrita, matéria para a qual o Janjão, com grande dor sua, não tinha o menor talento.


O sonho secreto dele era ser artista mas faltava-lhe a sensibilidade, os meios de expressão, o que ele chamava "a faísca". Julgo que se orgulhava de mim e portanto, agora, não se encrespe comigo ao dizer-lhe, querido Janjão, que se o menino se portar bem e não aborrecer a mãizinha o paezinho, seu filho, manda-lhe um presente muito engraçado para o Janjão brincar até eu voltar à sua casa, bater à porta da sua sala, onde estava sempre sentado, com uma prancheta nos joelhos, e lhe dizer a sorrir Olá pai antes de roçar a bochecha na sua (nunca nos beijámos a sério) e ocupar o divã para falar consigo.


António Lobo Antunes

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Grises de Carla Gonçalves

A pintura de Carla Gonçalves

 


 

 

 

 

 

 

A pintura de Carla Gonçalves, pela atenção e recomendação de João Paulo Sousa - desde Portugal

Veja o site da pintora: Carla Gonçalves - Pintura

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publicado por ardotempo às 19:02 | Comentar | Adicionar

A jardineira da esperança

Jornal no café da manhã


A dor que me dá um pássaro coberto de petróleo. É um misto de cólera, vergonha e desalento quando vejo naqueles olhos mínimos a pena imensa que um pelicano tem do homem. No mesmo noticiário, a imagem do canal de rios da Louisiana prateado de peixes mortos. Num relance não me dou conta dos peixes, confundo o gigantesco tapete de escamas com uma estrada. A ilusão de ótica, nesse caso, é uma inconformidade dos olhos.

Agora o caso dos mineiros na jazida de San José, no Chile. Soterrados há quase dois meses, esses homens permanecem vivos e não fazem mais que esperar. Para lá desceram, a 688 metros de profundidade, e acidentalmente encontraram uma palavra cujo sentido nunca antes pareceu tão precioso. Em uma galeria de refúgio, a esperança custa a ser resgatada. São 33 homens no ventre da terra desejando voltar à luz.


Enquanto isso, em Cancún, um museu subaquático de esculturas começa a ser montado. Centenas de figuras de cimento, inspiradas em pessoas reais, estão sendo ancoradas no fundo do mar. Detenho-me em uma dessas figuras, uma garota deitada entre corais, intitulada “A Jardineira da Esperança”.

 

Dentro de alguns anos, pólipos e anêmonas cobrirão essa escultura e então suas formas talvez apenas vagamente lembrem um corpo humano. Aqui, a esperança instala-se nas profundezas e repousa.

 

Aqui, a ilusão de ótica é a maravilha dos olhos. Finalmente um bonito colóquio entre a natureza e o homem.

 

 

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

Imagem" "A jardineira da esperança" - Museu Aquático de Cancun - México

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Sexta-feira, 24.09.10

Música, livro, poemas, arte e autógrafos

Convite

 

A Edições ARdoTEmpo, o SESC-RS, as autoras Cleonice Bourscheid (poeta) e Anelise Scherer (artista) convidam para o belo Recital e para lançamento do livro AVE, FLOR em São Leopoldo RS, Brasil, durante a V Aldeia Capilé, com a presença e autógrafos das autoras.

 

 

 

 

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Quarta-feira, 22.09.10

José Mário Silva - Efeito Borboleta

Efeito Borboleta e outras histórias - Contos

 

Autor: José Mário Silva

 

ISBN nº 978-85-62984-04-4

 

124 páginas

 

Capa: Mario Castello

 

Valor: R$ 30,00

 

 

 

 

 

Apresentação de Mariana Ianelli, sobre o livro Efeito Borboleta, contos de José Mário Silva:

 

Penso nos contos de José Mário Silva e logo me vem à memória o espelho mágico de M. C. Escher.

 

Há sempre uma dimensão inaudita em suas histórias, uma realidade da ordem do inefável, na qual diferentes mundos se visitam, regidos pela lógica do sonho. Seus personagens são incógnitas dentro de um grande esquema, um grande tabuleiro cosmológico, por assim dizer, em que todo e qualquer movimento “precipita a desistência ou o desastre”.


Um simples bater de asas na Amazônia pode provocar um tornado no Texas. Perplexo diante das infinitas variantes dessa hipótese, um homem teme executar um só gesto. Nesse conto que dá título ao livro, a perplexidade que se anuncia ainda é outra. Este homem pode ser ele mesmo a borboleta enredada na malha do conto, a letra de uma palavra fatal que se vai formando secretamente, enquanto o personagem, no epicentro da narrativa, ignora sua inexistência. Aqui o leitor reconhecerá, sem dúvida, os labirintos borgeanos, os intermináveis elos de uma cadeia, o sonho dentro do sonho, a concentração dos tempos em um único instante, o ponto do espaço que contém todos os espaços. Mas antes interessa lembrar, de Borges, aquela máxima que serve de postulado para todas as artes, a de que “não sabemos se o universo pertence ao gênero realista ou ao gênero fantástico”.

 

A partir daí, ascendemos da literatura, e de suas inevitáveis intersecções temáticas, a um imenso e extraordinário “sonho apócrifo” nos contos de José Mário.


Astros, números e letras se dispersam, se reordenam e assim gira o caleidoscópio a que chamamos, por espanto e maravilha, gênero fantástico. Nessa cópula de mundos, a lente de um microscópio oferece à vista do poeta a imagemdas galáxias. De fato, José Mário é um poeta, um sonhador de insondáveis matemáticas, um encantador do pensamentoque desperta, no espaço da narrativa, este terceiro olho capaz de entrever nas linhas de uma impressão digital uma “topografia do ser”.


A forma breve que aparentemente delimita as histórias de Efeito Borboleta é mais um expediente de prestidigitador, o espetáculo em ato da fração de um minuto em que um homem revê sua vida e pressagia o exorbitante. Há sombras, muitas sombras no livro, há uma “escuridão ardendo atrás de cada porta”, a iminência do caos atrás da ordem dos planos, inclusive o literário. Nada escapa ao colapso da banalidade. O absurdo, quando prorrompe no elemento mais sutil, põe o leitor diante de um acontecimento que lhe é tão sinistro quanto familiar, como um tsunami, um atentado terrorista, ou mais uma estrela emergindo no mundo das celebridades: o surreal de uma época, nossa época, típico de um quadro de Bosch.


Nas 38 Miniaturas, imagens de alta concentração poética que fecham o volume, está a síntese da criação mágicade José Mário. Tal como o “caçador noturno” de um dos textos, dali regressamos admirados, com “meia dúzia de estrelas à cintura”. Uma aventura e uma vertigem, Efeito Borboleta contém o índice de um livro infinito. Para cada história somos transportados, ou melhor, tragados, por aquela força de atração para além da física que sabemos ser o mais simples - e o mais desejável - prazer da boa leitura.


Mariana Ianelli - Escritora, poeta e jornalista

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Terça-feira, 21.09.10

Julio Cortázar

Buenos Aires adormecida

 

João Ventura

 

 

 

 

 

Li já não sei onde que, quando tinha dez anos, Julio Cortázar viveu a inesquecível experiência de subir ao décimo andar de um edifício em Buenos Aires e dali observar a cidade adormecida.

 

Era, então, uma criança sensível, sem graça e estranha. A primeira metade da sua vida tinha-a passado com a sua família na Suíça, nas margens de uma guerra cujo alcance tardaria algum tempo a conhecer. No final da guerra, a sua família regressou à Argentina. Algum tempo depois, tinha, então, seis anos, o seu pai sairia de casa para não mais voltar, ficando, assim, a viver com a sua mãe, tias e a avó alemã, intuindo que a vida era algo mais do que as lições de piano e os livros de Julio Verne.

 

Era o único homem num território povoado de jasmins, pessegueiros e pianos, perto da estação de Ferrocarril Sud, no metasuburbio de Banfield, nos limites da zona portuária. Por essa altura, preferia os livros de Julio Verne aos jogos do clube local, o Atlético Bánfield, um dos pioneiros do futebol argentino, o que lhe causou alguns problemas de relacionamento com os seus colegas de escola, logo ultrapassados quando estes descobriram a sua assombrosa facilidade para escrever, com estilos apropriados, as composições escolares passadas pelos professores.

 

Dou, agora, com uma fotografia nocturna de Buenos Aires, tirada por Horacio Coppola, não sei se na mesma noite em que o pequeno Julio subiu ao décimo andar. Mas sei, porque leio nuns seus versos precoces, que a sua impressão foi tão intensa que desencadeou nele um tal estado de excitação donde só regressaria depois de escrever que «Ya la ciudad parece así, dormida/ una pradera noctural, florida/ por un millar de blancas margaritas».

 

 

 

João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades

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Domingo, 19.09.10

Muita miséria

Quebra de sigilo e outras bossas são coisas nossas


Ferreira Gullar

A sociedade brasileira assiste hoje à despudorada manipulação da opinião pública, que é a campanha de Dilma Rousseff para a Presidência da República.

 

Até alguns petistas não conseguem esconder seu constrangimento diante dos escândalos que surgem a cada dia e, sobretudo, do descaramento com que, de Lula a Dutra, os petistas pretendem, mais uma vez, passar por vítimas, quando são de fato os vilões. O PT não se cansa de jogar sujo. É de sua natureza sindicalista - do ruim sindicalismo - valer-se de todo e qualquer meio para atingir seus objetivos. E isso vai da falsificação dos fatos e a violação de sigilos fiscais à agressão física e a eliminação do inimigo, ainda que esse inimigo seja companheiro de partido.

 

É o caso, por exemplo, de Celso Daniel, então prefeito de Santo André, que foi assassinado, ao que tudo indica, por não compactuar com a corrupção dentro do partido. Lula e a alta cúpula petista jamais se empenharam na apuração do crime.

 

O mesmo procedimento se repete agora com o escândalo da quebra de sigilo fiscal de Eduardo Jorge, vice-presidente do PSDB, de outros membros do partido e da filha de José Serra, por gente do PT. Revelada a falcatrua, a Receita Federal calou-se e a direção petista sugeriu que se tratava de um factoide, mas a imprensa foi para cima, a coisa virou escândalo. A Receita tentou desclassificar a denúncia até o ponto em que não dava mais. Foi então que o secretário geral da Receita Federal, Otacílio Carpaxo, veio a público para, constrangido, garantir que não havia na quebra de sigilo qualquer propósito político. Era o prosseguimento da burla, conforme a dramaturgia petista: primeiro, negam o fato; confirmado, tratam de desqualificá-lo.

 

Sucede que quem praticou a violação eram petistas, o que também foi logo negado, numa nota em que o PT afirmava que aquela gente não pertencia a seus quadros. Como, porém, é mais fácil pegar um mentiroso que um cocho, a mentira foi posta à mostra: tanto Atella quanto Amarante eram do PT, o primeiro desde 2003 e o segundo desde 2001.

 

É fácil perceber por que os acessos aos dados fiscais foram feitos em cidades do interior de SP e MG, por petistas de confiança e sem projeção. Sempre haverá um Cartaxo, num cargo de chefia, para salvar a face dos verdadeiros vilões, mentores da campanha de Dilma. Mas mesmo ele não consegue explicar - se não havia propósito político na violação do sigilo - por que as vítimas da violação são dirigentes do partido de Serra, sua filha e genro.

 

Não há por que nos surpreendermos com isso, uma vez que agir à revelia da ética e da lei é um antigo hábito do Partido dos Trabalhadores. Os fatos o comprovam. Alguém duvida de que aquela montanha de dinheiro que a polícia flagrou, em 2006, com os "aloprados", num quarto de hotel em São Paulo, era para comprar um dossiê anti-Serra? Embora os implicados fossem todos petistas próximos a Lula (um deles, o churrasqueiro do presidente), nem ele nem ninguém do PT sabia de nada, porque, como sabemos nós, são todos gente íntegra, defensores da ética na política; a ética petista, bem entendido.

 

Outro exemplo dessa ética foi o mensalão que, num país sério, teria levado ao impeachment de Lula. Já aqui, pode ser até processado quem atribua a ele - que nunca sabe de nada - qualquer responsabilidade pela compra daqueles nobres deputados. Aliás, como em certas ocasiões, voto de deputado vale ouro, é até vantagem comprá-lo em reais. Tem razão, portanto, Lula, em se indignar com mais essa acusação infundada contra seu partido.

 

Por isso, com a fina ironia que o caracteriza, pulando e berrando num palanque, indagou: "Cadê esse tal de sigilo, que ninguém vê?". A graça é besta, mas ele sabe muito bem para quem fala. Por isso mesmo, quando a situação complica, como agora, põe a Dilma de lado e entra em cena, para confundir ou ameaçar, conforme lhe convenha.

 

Meu consolo é saber que, em menos de três meses, ele deixará a presidência. Garantiu que até lá vai fazer "muita miséria". Disso, não duvido, mas, após dezembro, não terei que vê-lo todos os dias na televisão, insultando a nossa inteligência.


Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo/ UOL

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publicado por ardotempo às 20:20 | Comentar | Adicionar

Oceano de sangue

Holocausto bovino

 

 

 

© Valter Vinagre - Série Sítio / Matadouro de Caldas da Rainha - Fotografia (Caldas da Rainha Portugal), 1997

Publicado no blog Arte Photographica

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Sábado, 18.09.10

Os que podiam tudo

 

 

ASAS ESCONDIDAS

 


Mariana Ianelli

 

 


 


Fujo a todas as reuniões de turma. Algo a ver com aquela parábola das sementes que caem entre espinhos. O terror de ver o que definhou nos outros, como em mim definhou a paixão pela biologia. O que terá sido feito daquele garoto, exímio no desenho e na música, e daquele outro, galo de rinha, que sempre desafiava os professores? Quero acreditar que nenhum deles perdeu a audácia, que continuam triunfantes no seu ímpeto de vida.

A célebre foto do colégio: os meninos desalinhados no topo da escada, ainda pouco à vontade com seus próprios tamanhos, tumultuando o cenário num ato de rebeldia contra a solenidade do instante. Um degrau abaixo, as meninas, tão loiras, tão bonitas, diabolicamente sorridentes, maliciosas no seu ar de primavera, cada uma encarando a lente do fotógrafo como uma sibila mira outra sibila. Mais abaixo, a fileira dos melancólicos, dos meninos velhos atrás dos óculos, enfrentando a câmera com aquela ponta de angústia de quem já se vê ali do outro lado, no extremo oposto da história. Lá em cima, à direita, comandando o encouraçado, o antiquíssimo professor de matemática, que um dia simplesmente desistiu de ensinar à nossa turma o logaritmo.


Não sei quantos hoje são pais de meninos iguais a eles ou quantos já se esqueceram de que podiam tudo. Sei de dois que ficaram eternos naquela foto. Um garoto moreno, de sobrancelhas cerradas, rosto árabe, quase um homem, ali à esquerda no topo da escada e, mais abaixo, uma menina de cabelos pretos, riso aberto, peito alto, ambos iluminados, congelados no tempo, com suas asas escondidas atrás das costas.


Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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publicado por ardotempo às 18:54 | Comentar | Adicionar

A recuperação da palavra

El fondo eterno (Walter Benjamin)


Enrique Vila-Matas


Viajé a Sarzana, en La Spezia, al norte de Italia, y, nada más despegar el avión, me di cuenta de que me había dejado en casa los somníferos y también el ensayo de Walter Benjamin que había previsto releer durante el trayecto. Ese ensayo, Sobre algunos temas en Baudelaire, abría mi vieja edición de Ensayos escogidos, de la editorial Sur. Hacía treinta años que no lo leía y había pensado darle un vistazo durante el trayecto aéreo y ver después qué podía decir sobre lo que me había sugerido su relectura. Recordaba, un tanto obsesivamente, la primera frase, que me había llamado la atención hacía treinta años, quizás porque no la comprendí del todo entonces y fui alimentando, con el tiempo, la idea de que algún día, ya más maduro o simplemente más leído, sabría comprenderla a la perfección: "Baudelaire confiaba en lectores a los que la lectura de la lírica pone en dificultades".


En el avión, sin tener a mano el resto del ensayo benjaminiano, poco podía hacer para entender en su totalidad aquella frase. Aun así, jugué a resolver su enigma. Estaba claro que en la frase había una confianza en un tipo de lector activo, parecido a ese tipo de escritor exigente en el que Roberto Bolaño percibía una disposición intelectual que le llevaba a ver, en todo giro del destino, un problema de ajedrez o una trama policiaca a clarificar.


Jugué a resolver el enigma, pero no me quité de encima el problema de fondo, el hecho inamovible de que Sobre algunos temas en Baudelaire se había quedado sobre la mesa del comedor junto a los somníferos que estaba seguro que tanto necesitaría por la noche, pues llevaba años seguidos tomándolos sin falta y ya no me veía capaz de dormir sin ellos. Es más, temía que no tomarlos me dejara en manos de sueños peligrosos, desaprensivos. Por suerte, mi viaje a Sarzana era de una sola noche. Iba a esa pequeña ciudad próxima al bello territorio de Cinque Terre para participar en el Festival de la Mente. Bonito nombre, me había dicho todo el mundo. De-la-Mente. Precisamente había aceptado ir allí por el nombre.


El taxi me dejó al atardecer en un hotel, la Locanda dell'Angelo, que estaba en pleno campo, a ocho kilómetros de Sarzana. Enterado de que, por un lamentable olvido, había viajado sin lecturas (ni somníferos), Marco Dotti, un amigo de Brescia, me dejó uno de los muchos libros que llevaba consigo: Lavori di scavo, una traducción de Inner workings (Mecanismos internos), de J. M. Coetzee.


Cuando llegó la hora, esperando que ese conjunto de ensayos me ayudara a dormirme, me retiré a mi habitación a esperar que al día siguiente tuviera mejor suerte en todo. Me daba pereza leer y encendí el televisor. Vi cinco veces seguidas los informativos de la bochornosa TVE Internacional, y aun así no percibí ni el menor atisbo de cansancio, de próxima llegada del sueño. Entonces, decidí recurrir al libro de J. M. Coetzee. En las primeras páginas, encontré un texto acerca de la obra de Walter Benjamin y pensé que era como si una mano invisible hubiera querido compensarme de haberme olvidado Ensayos escogidos en Barcelona. Antes de leer ese texto, me dediqué a la despiadada caza de tres mosquitos atrapados en el interior del cuarto y no precisamente silenciosos. Todo eso, en contra de lo que esperaba, no me dejó nada fatigado, sino lo contrario. Por completo desvelado, los ojos como platos, entré finalmente en el ensayo de Coetzee sobre Benjamin.

 

Leí que éste había explorado a fondo el pensamiento místico judío y que era de 1916 su ensayo clave, Sobre el lenguaje en general y sobre el lenguaje de los hombres. En él, Benjamin sostenía que una palabra no es un signo, un sustituto de otra cosa, sino el nombre de una Idea. En Proust, en Kafka, en los surrealistas, la palabra se aparta del significado en el sentido "burgués" y retoma su poder elemental y gestual. La palabra como gesto es "la forma suprema en que la verdad se nos puede presentar en una época despojada de la doctrina teológica". En los tiempos de Adán, la palabra y el gesto de nombrar eran lo mismo. Desde entonces, el lenguaje habría experimentado una gran caída, de la que Babel, según Benjamin, sería sólo una etapa. La tarea de la teología consistiría en recuperar la palabra, en todo su poder mimético originario, de los textos sagrados en los que ha sido conservada.


¿Pueden todavía las lenguas caídas, en la totalidad de sus intenciones, acercarnos al lenguaje puro? Comprendiendo de golpe que, en el fondo, toda mi vida, sin ser consciente de ello, había estado intentando reconstruir un discurso desarticulado (el discurso original), recordé a mi amigo Paco Monge, que un día me dejó esta nota: "¿Por qué no pensar que, allá abajo, también hay otro bosque en el que los nombres no tienen cosas?".


¿Los nombres son o fueron Ideas? ¿Pensó en eso Monge cuando me dejó -creo que incluso me legó- la nota? ¿Había leído a Benjamin o, como parece más plausible, se dejó guiar por sus habituales intuiciones? La noche en la Locanda dell'Angelo era increíblemente silenciosa, sólo alterada por el rumor del miedo, de mi propio miedo, de un miedo inconcreto, tal vez un simple terror a no dormirme nunca. Me dormí. Avanzaban en el sueño, con pasos muy presurosos, dos amigos, Sergio Pitol y Raúl Escari. Caminaban, eléctricos, por los callejones de un viejo núcleo urbano, posiblemente europeo. La lluvia, en cambio, no ofrecía dudas: era mexicana. Entraron en un aula de estudios y Sergio comenzó a escribir signos que yo nunca había visto, los escribía con gran velocidad en una pizarra de un color verde extraordinariamente potente. La pizarra se transformó en una puerta encajada en un arco ojival árabe, una puerta de un verde aún más potente y sobre la que Pitol inscribía, ralentizando el ritmo de su mano, la poesía de un álgebra desconocida: fórmulas y misteriosos mensajes de aire cabalístico, judío, aunque quizás el aire fuera sólo musulmán, musulmán de la China, o simplemente italiano, de los tiempos de Petrarca; poesía de un álgebra extraña, sin patria, que me remitía al centro del misterio del mundo. Cuando desperté, atribuí el sueño a lo que Marco Dotti me había dado a leer la noche anterior. Pero la sensación de haber estado muy cerca de un mensaje esencial - del que Pitol conocería su extensión más profunda- me fue dejando marca indeleble.


Recuperar la palabra, me dije pensando en Benjamin y me pregunté si éste seguiría sosteniendo en el mundo de hoy que el acto de leer tiene el potencial de convertirse en una especie de experiencia onírica que da acceso a un inconsciente humano común, sede del lenguaje y de las Ideas. Y más tarde, ya cuando en el taciturno atardecer de ese día dejé atrás el Festival de la Mente y quedó también atrás la Locanda dell'Angelo y emprendí el largo regreso a mi ciudad, volví a acordarme de Sergio Pitol y de su poesía cabalística en la puerta ojival y me acordé también de una amiga de otro tiempo que se pasaba la vida interesada por el enigma de ciertos arcos. Y me pareció que el balance de las últimas horas pasaba por reconocer que había encontrado una forma alternativa de releer o de descifrar aquel ensayo de Benjamin olvidado en Barcelona, aquel ensayo que sin duda me esperaba en casa, pero que ahora sabía que no releería, porque lo daba por bien releído, aunque supiera que, por error, había terminado leyendo el ensayo de al lado: un ensayo del que me era imposible olvidar la puerta ojival en la que, como sabe muy bien Pitol, un día se reencarnarán todas las viejas palabras, las antiguas Ideas, el fondo eterno.


Enrique Vila-Matas - Publicado em Babelia / El Pais

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Sexta-feira, 17.09.10

Parca camuflagem

 

Foster Dulles

 

Luis Fernando Verissimo

 

Não pude ir à sabatina dos candidatos à Presidência feita por colunistas e leitores do GLOBO na semana passada, mas mandei perguntas por e-mail.

 

Respondendo à minha pergunta sobre se, caso ele fosse eleito, a política externa brasileira voltaria a ser a que era antes do governo Lula, mais alinhada com os Estados Unidos, Serra disse que teria uma política própria, presumivelmente diferente da política do Fernando Henrique também. Mas antes fez um preâmbulo, lembrando o livro "O senhor embaixador", em que, segundo Serra, meu pai se revela um admirador de John Foster Dulles, secretário de Estado americano que foi o grande estrategista da Guerra Fria com a União Soviética, famoso pela sua doutrina do brinkmanship, ou a arte de levar as confrontações até a beira de uma guerra quente, sem dar o passo fatal.

 

"No caso da família Verissimo houve uma alternância", disse Serra, pois o filho, eu, "passou para o lado contrário em matéria de questão externa".

 

Não entendi: o lado contrário do que, da Guerra Fria? Posso garantir que não sou pelo alinhamento da nossa política externa com a União Soviética contra o Foster Dulles, mesmo se conseguíssemos encontrar os dois ainda vivos, e mesmo que meu desejo valesse alguma coisa. Como eu, o Serra deve ter lido "O senhor embaixador" há algum tempo. Não surpreende que não se lembre bem do que leu.

 

Foster Dulles foi, sim, uma figura admirável, do ponto de vista puramente literário. Incorporava um certo tipo de aristocracia americana que durante algum tempo fez do Departamento de Estado o seu feudo fechado e do anticomunismo sua principal faina intelectual. Depois este patriciado estanque foi substituído por tecnocratas tipo McNamara, que deram o passo fatal além da beira e empurram o país para o abismo do Vietnã. Nenhum tinha aquela empáfia de nascença que caracterizava Dulles e seus pares e mal camuflava sua arrogância.

 

 


 

Meu pai não admirava a política de Dulles, Serra. Um personagem do livro expressa sua opinião sobre Dulles como a fascinante figura literária que foi. "O senhor embaixador" foi baseado, em boa parte, na experiência do meu pai como diretor de assuntos culturais da União Pan-Americana, ligada à Organização dos Estados Americanos, em Washington, de 1953 a 1956.

 

A personalidade que, este sim, ele mais admirou no período foi Alberto Lleras Camargo, ex-presidente da Colômbia pelo Partido Liberal, que dirigiu a OEA até 54 e saiu do cargo fazendo um famoso discurso em que desancava a intromissão americana em assuntos internos da América Latina e propunha um novo relacionamento, não submisso, dos latinos com os Estados Unidos. Lleras Camargo foi o primeiro estadista latino-americano da sua estatura e com suas credenciais a dizer coisa parecida.

 

Recomendo ao Serra que, quando tiver tempo, leia "Solo de clarinete, vol. 1", livro de memórias do meu pai, para saber com que figuras ele realmente simpatizou, na época, e com quem concordava.

 

Luis Fernando Verissimo

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Quinta-feira, 16.09.10

A alta gastronomia brasileira existe?

O JANTAR - de Naira Scavone

 

O leque de interesses da pesquisadora Naira Scavone não é trivial. Sua trajetória profissional perpassa a psicologia, a educação, os estudos femininos e a gastronomia; e agora desemboca neste livro (cuja “mise en place” se iniciou em seu  mestrado em Educação na UFRGS e se estendeu por anos a frente de uma escola de gastronomia, em Porto Alegre), capaz de combinar harmoniosamente todos esses ingredientes.

 

 

O que Naira oferece é uma refeição completa, da entrada ao café, passando por dois pratos principais substanciais e pela sobremesa. Mas que não se engane o gourmet desatento: neste livro não se encontram receitas ou técnicas culinárias; a matéria-prima com que o jantar é preparado aqui é o campo da alta gastronomia no Brasil de hoje, analisado a partir de um sólido referencial teórico conceitual, tanto quanto de uma longa vivência pessoal em meio a chefs e entusiastas do bem-comer.

 

 

 

Assim, o que está em pauta são as relações de poder e de gênero dentro da cozinha profissional, o imaginário da alta gastronomia disseminado pelas revistas especializadas e a construção de uma idéia de nação por via de uma certa “gastronomia brasileira”, dentre outros temas.

 

Já não bastasse a originalidade temática e de abordagem – afora artigos acadêmicos esparsos, são ainda raras no Brasil as publicações com foco na análise sociológica de nossa própria alimentação -, o que torna este livro algo especial é a ousadia e a argúcia com que sua autora enfrentou a empreitada.  Ainda que feito só de palavras, o jantar servido aqui tem a combinação bem calibrada (e rara) de temperos capaz de atrair a toda a gama de interessados em gastronomia.

 

Patrícia Gomensoro

 

 

Fotografias: Mauro Holanda

© Naira Scavone - O Jantar - Edições ARdoTEmpo, 2010

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Quimera - Desenho de Geri Garcia

Desenho a lápis

 

 

 

 

 

 

Geri Garcia - La Quimera - Desenho a lápis (El Padul / Granada  Espanha), 1954

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Terça-feira, 14.09.10

Aldyr Garcia Schlee - CONTO INÉDITO


LA FOLIE ET L’AMOUR

Aldyr Garcia Schlee

 


Desde muitos anos antes de eu nascer, meu tio tinha um aparelho mágico que não sei bem como chegara a suas mãos: se fora como um presente, trazido da Europa pelo padrinho de minha irmã, juntamente com uma máquina de escrever; se fora como algo surrupiado em Jaguarão do espólio do sr. Tomazzo Aimone, que era pai de meu próprio padrinho e que havia explorado em Pelotas uma casa de cinematógrafo.

 

Aquele mágico ou pelo menos misterioso aparelho servia para ver as coisas como elas seriam, se fosse verdade; mas era de mentira, pois embora as mostrasse como verdadeiras, só nos deixava a impressão disso ao fazer de conta que ali elas não eram de mentira e ao gerar a ilusão de que ali elas existiam realmente.

 

Faz tempo. Eu não era nascido, meu pai e minha mãe ainda nem se conheciam, o irmão mais velho de minha mãe já era moço e se dizia sacrílego. Terá sido quando o futuro padrinho de minha irmã voltou da Europa, trazendo como grande novidade a inesperada e inacreditável máquina alemã Adler, uma alta, grande e rara “typewrite machine” – a primeira em que eu viria um dia a escrever. Ou foi quando se quedaram abandonados em Jaguarão os restos dos despojos do cinematógrafo de seu Tomazzo Aimone. O certo é que meu tio tinha aquele aparelho desde antes de eu nascer; desde quando fora a Porto Alegre fazer concurso para calígrafo da polícia civil.

 

Era uma caixa, uma simples caixa de madeira ornamentada que, fantasticamente se abria de dentro para fora dela mesma e se armava para a gente olhar como por um binóculo e ter ali, diante das vistas, imagens deslumbrantes das mais famosas batalhas, dos mais importantes monumentos e dos mais distantes e exóticos lugares do mundo.


A Lápia, a Hercínea, a Tingitânea

O Touro de Perilo, Hercule et Omphale, a medusa de Caravaggio.

A batalha de Ourique, a de Badajoz, a do Salado.


Faz muito tempo. Meu tio recém fora levado pelo futuro padrinho de minha irmã a conhecer mulher, num prostíbulo da beira da praia, onde haveria de ser apresentado a uma china chamada Ignez, suficientemente louca para atendê-lo de graça como o primeiro e último homem do mundo, para iniciá-lo enfim nas mais inesperadas e surpreendentes formas de fornicação humana e animal. Ele ainda era guri, contam; mas foi preciso arrastá-lo à força daquele puteiro imundo, de onde não queria mais sair, onde insistia em ficar o tempo que fosse, sem arredar pé da louca Ignez.

 

Faz muito, muito tempo. Seria de se pensar que tudo aquilo poderia ser esquecido, que nunca mais seria lembrado, que nunca seria revelado (como nunca foi revelado à minha avó, para não se somar como mais um desgosto no rosário de desgostos em que ela rezaria a vida inteira pela salvação da alma de seu pobre filho, meu tio). Assim, o esquecimento, a deslembrança, o segredo acabaram borrando o suceder da vida de meu tio desde antes que eu tivesse nascido. De modo que fica difícil agora rememorar o olvidado. Restou durante algum tempo a rejeitada máquina de escrever; resta comigo o instigante e maravilhoso aparelho que acompanhou meu tio a vida inteira como se fosse coisa de mentira; e já não resta mais nada que possa ser lembrado.

 

Esqueceu-se tanta coisa vista que aquele aparelho quase se perdeu no tempo e, para muitos, é ou foi como se não houvesse existido; mas, sendo um velho objeto que servia para ver as coisas como foram ou deveriam ser, não se pode dizer que era de mentira – pois só o que se via, isso era mentira (não propriamente mentira, mas sim umas figuras, umas imagens, umas estampas caprichosamente coloridas pelo avesso, devidamente emolduradas sob rubrica francesa como “tableaux vivants” e que, postas diante de nossos olhos deslumbrados, revelavam-se imediatamente como se nunca tivessem deixado de ser o que deveriam ser e eram de verdade).


Les vues stéréoscopiques

Meu tio era como um quarto de século mais velho do que eu; e desde pequeno fora capaz de ultrajes, profanações e sacrilégios. Uma vez, chegara ao confessionário da Matriz e dissera ao padre, de maneira a ser ouvido pelas beatas em volta: não me arrependo de ser pecador – sabe? –; e, por isso, não me importo de te mandar daqui mesmo pra puta que te pariu. Antes havia metido a mão por baixo do vestido de veludo da Virgem – e descobrira, aos berros, que a santa era só uma armação de madeira por dentro, com pés, cabeça e mãos de louça! E desde muito vinha mastigando hóstias, mantendo-as na boca mastigadas, trazendo-as mastigadas para casa, num lenço – e rindo com naturalidade daquilo.

 

Pois um dia meu tio fora a Porto Alegre fazer concurso para calígrafo da polícia. Como o convenceram disso, não sei; como também não sei bem se viajou no vapor Juncal ou no Jenny Naval, se minha avó deu-lhe dinheiro bastante e se ele levou consigo o mágico estereoscópio e suas vistas – os seus quadros vivos. O certo é que foi a Porto Alegre aparentemente com uma única finalidade: a de fazer concurso para calígrafo da polícia civil.

Les tableaux vivants


Os quadros vivos eram montados em molduras de cartão grosso, com duas figuras aparentemente iguais postas lado a lado, num retângulo de uns 9 x 18 cm, coloridas e sombreadas manualmente pelo reverso, em diferentes camadas de papel de seda muito fino e transparente, de maneira tal que observadas através de um visor binocular, contra a luz, davam a impressão e per-mitiam a ilusão de uma única imagem, apresentando relevo e profundidade.Ainda tenho comigo apenas e exatamente trinta dessas vistas, das muitas dezenas que pas-savam pelo visor, uma a uma, e a cada vez reviviam-se ante nossos olhos e nossa imaginação. Já não sobra quase nada das coleções de dúzias e dúzias delas, que foram se extraviando, se extraviando, e se perderam definitivamente no esquecimento. Também ainda tenho comigo a surpreendente caixa do estereoscópio: ela permanece fechada – ao lado do montezinho de vistas desusadas, presas entre si por um elástico – sem abrir-se e desencantar-se, avolumando-se sobre si mesma num prodigioso aparelho; tem só um palmo de comprimento por meio de largura, com guarnição de prata lavrada nos quatro cantos da tampa, fecho igualmente de prata, com um aplique posto no centro, talvez para a gravação do monograma do proprietário (mas sem qualquer inscrição).


Porto Alegre, 1929


Meu tio fez concurso para calígrafo da polícia numa quinta-feira à tarde (chegara três dias antes, depois de dois de viagem num vapor desde Jaguarão). Havia mais onze candidatos numa sala escura fedendo a creolina, onde foram dispostas doze largas classes escolares duplas, com tinteiro embutido – ficando cada um numa classe, fazendo-se ditado de duas páginas de um detalhado inquérito policial; e, depois, dispondo-se de até uma hora para copiar o maior trecho, com o menor número de erros e a letra mais parelha possível do Canto III de “Os Lusíadas”.


Agora tu, Calíope, me ensina

o que contou ao Rei o ilustre Gama


Desde a chegada, meu tio metera-se em Porto Alegre nos puteiros da Pantaleão Telles, ruela que se espremia pelo costado da Matriz em direção à velha ponte de pedra, lá embaixo. Embora estivesse ali com a única finalidade de fazer concurso para calígrafo da polícia; e, embora eu não seja capaz de afirmar que ele tenha levado e utilizado o estereoscópio, duvido que não o aproveitasse para impressionar e empolgar as mulheres, acionando-o com indispensáveis gestos estudados tanto de precisão como de encantamento – e as imagino cercando-o, atraídas pela maquina mágica, surpresas e curiosas, arrepiando-se alvorotadas com suas inimagináveis figuras como dos mais longínquos lugares desconhecidos e perdidos do mundo ou do outro mundo – os mais distantes e exóticos lugares sabe lá de onde, seus mais importantes e fantásticos e inacreditáveis monumentos, suas mais sangrentas e famosas e inimagináveis batalhas...


Esta é a ditosa pátria minha amada

à qual se o Céu me dá que eu sem perigo torne,

com esta empresa já acabada,

acabe-se esta luz ali comigo.


Então meu tio tirava de sua mala de papelão moldado a caixa do estereoscópio, a surpreendente caixa do estereoscópio abrindo-se e desencantando-se, avolumando-se sobre ela mesma no prodigioso aparelho que ainda guardo comigo. E apresentava às putas em volta os “tableaux vivants” que, postos diante de seus olhos deslumbrados, através da mágica binocular contra a luz, revelavam-se imediatamente como se nunca tivessem deixado de ser o que deveriam ser e eram de verdade: mulheres desnudas, de rostos insinuantes e cabelos insolentes, de largas cadeiras e generosos seios, em poses sensuais e gestos lúbricos, a exporem despudoradamente suas partes íntimas diante de um cenário onírico dominado pela perspectiva infinita de colunas e mais colunas quebradas sob seus respectivos capitéis.

 

 

 

 

 

 

Cada uma das mulheres do prostíbulo precisava então se despir toda e tentar repetir da melhor maneira que pudesse o mesmo gesto obsceno e provocador daquela que ela estava vendo pelo aparelho (isso tudo eu só imagino agora, pelo que sei que contavam e diziam de meu tio, e pelo que penso do que ele seria capaz – pois, infelizmente, não me restaram entre as “vues stéréoscopiques” mais que o montezinho de trinta, presas entre si por um elástico – nenhuma delas com ao menos a imagem de uma única mulher pelada; embora uma, extraviada como a número 3 e intitulada La Folie et l’Amour, propusesse as imagens de uma impossível mulher cor de rosa e de um provável tipo afeminado posando ambos com gestos imprecisos e cabelos dourados, entre pombas esvoaçantes ou asas de cisnes numa insuspeitada ribalta ou num improvisado picadeiro).


Meu tio dizia-se herege. Mas era desrespeitoso e ímpio, além de irreligioso, porque afrontava, insultava e ofendia quem quer que fosse, quando menos se esperava. Com um sorriso nos lábios era capaz de estragar uma festa, acabar com um velório, comprometer uma simples apresentação – fosse identificando um marido traído diante da mulher que o corneava, fosse anunciando secretas intimidades de quem estava sendo velado, fosse admitindo que não tinha prazer em conhecer quem lhe estendia a mão.


Nesta Chefatura de Polícia consta que N.N., brasileiro, pardo, de 23 anos de idade,

sem profissão fixa, residente à rua do Arvoredo, s/n,

foi identificado e compromissado nos termos constantes deste registro de investigação como depoente,

na condição de testemunha ocular da ocorrência anotada sob número 0117/29,

constante às folhas 34 e 35 do Livro de Ocorrências de numero 2-B desta Chefatura,

tendo respondido as perguntas de praxe


Meu tio fora expulso do seminário onde minha avó pretendia vê-lo transformado em padre e onde ele passava o dia lendo, lendo e contestando em aula o que fosse ante quem fosse; até comprovar-se que incluía em suas leituras os mais ten-tadores livros do index da Igreja – que manuseava às escondidas e distribuía fartamente entre os colegas (eu sei que depois, de volta a casa, ele até foi dado por doido: não tomava banho, não se arrumava, deixara a barba crescer à semelhança de Antonio Conselheiro e andava vagando pela rua arrenegado, a escarrar longe e a patear cachorros, sem cumprimentar ninguém).


1. se teve participação no ocorrido, disse que não;

2. se conhecia as pessoas envolvidas no ocorrido, disse que não;

3. se vinha passando pelo local do ocorrido, dis-se que sim;

4. se viu um homem atacando um outro com uma faca, disse que sim;

5. se sabe se era com uma faca ou facão, disse que não;

6. se sabe se a arma é a mesma que lhe foi apresentada nesta Chefatura, disse que não;

7. se chegou a ver que o agressor fugiu para um baldio, disse que sim;

8. se  sabia que a vítima resultou morta, disse que não;

9. se chegou a perseguir o agressor ou a ajudar a vítima, disse que não;

10. se ficou sabendo de algo mais no local do ocorrido, disse que não.


Não terá sido difícil para meu tio levar o estereoscópio em sua mala para Porto Alegre (o aparelho fechado, sabemos, tem só um palmo de comprimento por meio de largura, com guarnição de prata lavrada nos quatro cantos da tampa, fecho igualmente de prata, e um aplique posto no centro, mas sem qualquer inscrição). A mala de papelão moldado de meu tio, metida embaixo de muitas camas, antes e depois do concurso, terá disputado espaço com penicos cheios e panos sujos e frascos de desinfetantes (e baratas e ratos) em cada chineredo onde ele tratou de se meter a cada noite, tentando dispor de pousada e mulher, ainda que sem encontrar quem o acolhesse de graça ou lhe pagasse a despesa. Em Jaguarão era diferente: em pelo menos três dos nossos muitos puteiros, só pelo prazer do desfrute meu tio dispunha quando queria de ca-ma e mulher; uma destas, a velha e decadente louca Ignez, ainda lhe dava boa parte da féria do dia, para os vícios.


Ignez

 

Ignez da Silva Berneira

 


Meu avô bem que tentara colocar meu tio como seu ajudante no Banco Pelotense, ou de auxiliar de guarda-livros na Mesa de Rendas, ou de escriturário na Alfândega, ou de anotador na Ca-pitania dos Portos – afinal, tinha uma bela caligrafia! – mas meu tio só tinha cabeça para ler, ler e ler; e tanto no Porto como na Aduana e na Exatoria, até no Banco, deixava de fazer as devidas anotações, atrasava a escrita, trocava nomes e valores, escondendo na gaveta mais próxima o livro que mal-parava de ler. Era como se sonhasse com o mundo indizível das vistas maravilhosas.


Mas quem pode livrar-se, porventura,

dos laços que Amor arma brandamente

entre as rosas e a neve humana pura,

o ouro e o alabastro transparente?

 

O futuro padrinho de minha irmã, contudo, admirava meu tio por sua rara inteligência (aprendera francês utilizando apenas um manual de conversação, uma gramática, livros escolares e o dicionário), por suas variadas leituras (lera mais da metade da biblioteca do Clube Jaguarense), por sua boa caligrafia (copiava com letra admirável os trechos que mais lhe agradavam da melhor literatura) – e, vendo-o um dia limpo, enfim, e até falante, deu-lhe de presente a máquina de escrever que trouxera da Europa e falou-lhe em dactilografia. Meu tio, contudo, nunca acionou uma mínima tecla, nunca escreveu uma única palavra na poderosa Adler; jamais leu o manual de instruções em quatro idiomas que ensinava a manejar, lubrificar e manter limpa a imponente máquina negra.

 

q  w  e  r  t  y  u  i  o  p

a  s  d  f  g  h  j  k  l

z  x  c  v  b  n  m


Meu tio possuía uma letra magnífica: graú-da, arredondada, parelha, elegante, levemente inclinada à direita – e sempre primorosamente igual. Cada maiúscula, cada minúscula, fosse vogal, fosse consoante, abria-se e fechava-se sempre da mesma maneira nas suas correspondentes curvas e retas e no requinte de seus remates de pena. Era uma perfeição.

 

Pude constatar a excelência da letra de meu tio no dia em que arrombaram a porta do guarda-roupa do quarto do asilo de velhos em que ele morava (e morrera) e me alcançaram, além do precioso estereocópio, um amarelado caderno Vasquez de caligrafia com suas iniciais, resgatado entre roupas emboloradas e os mais triviais ou inesperados produtos comprados em Rio Branco. No guarda-roupa, havia ainda cubinhos de açúcar Rausa, pedras de anil Rekitt, duas garrafas de leite vazias (ambas de vidro verde, daquelas com boca larga e tampinha de cartão), um pacote de caixas de fósforos de cera Victoria, uma garrafa âmbar de Crush, uma lata de galletitas Cauci, um caixa de sabão Reuter, duas garrafas cheias de Malta Montevideana, uma garrafa vazia de mandarina Urreta, uma outra de pomelo Pomona, dois rolos de papel higiênico verde H-H, e uma lata de erva-mate Armiño.

Largada no chão, desprezada e sem uso, a velha máquina de escrever, coberta de pó.


Adler Werke – Frankfurt


Meu tio nunca chegara a ter um emprego decente. Sobrevivera e envelhecera fazendo de conta que não recebia uma permanente ajuda de vovó, além de parte da féria diária do prostíbulo da louca Ignez. Quando a louca morreu, fora instalado no asilo, onde teve livre a fantasia e pôde dela desfrutar como e quando queria. Jamais deixara, entretanto, de redigir com todo o capricho de sua letra impecável todas as cartas que o padrinho de minha irmã dirigia à amante que deixara no Havre e que lhe ditava seguida e pausadamente em francês (dizem até que meu tio, de posse do endereço da mulher, passara um dia a se corresponder com ela, entabulando uma ardente e paralela correspondência íntima cheia de indecente lubricidade).


Mas quem pode livrar-se, porventura,

dos laços que Amor arma brandamente

entre as rosas e a neve humana pura,

o ouro e o alabastro transparente?

Quem de uma peregrina fermosura

de um vulto de Medusa propriamente,

que o coração converte que tem preso,

em pedra não, mas em desejo aceso?


Meu tio havia permanecido em Porto Alegre o tempo que dava. Para que voltasse, fora necessário mandar-lhe um dinheiro extra – que lhe pudesse garantir a passagem de retorno no vapor e mais um dia de mínimos gastos, evitando-se que ele chegasse a melindrar dona Ercília, solteirona comadre de vovó, que vivia sozinha com seus ga-tos e suas rezas na rua Riachuelo e em cuja casa ele ameaçava meter-se, para ter onde comer e dormir – quem sabe também para espiá-la pelo buraco da fechadura, às gargalhadas, como já fizera em Jaguarão.


A. E. G.      Jaguarão

 

Depois, de volta, não houve aqui quem pudesse convencer meu tio a assumir o cargo de calígrafo da polícia.

 

Foi identificado e compromissado nos termos constantes deste registro

de investigação como depoente, na condição de testemunha ocular da ocorrência anotada

sob número tal, constante às folhas tais tais do Livro de Ocorrências, tal, tendo respondido ...
Não houve conselho que ajudasse, ameaça que intimidasse, promessa que resolvesse.
1. se teve participação no ocorrido, disse que não;

2. se conhecia as pessoas envolvidas no ocorrido, disse que não...


Meu tio fora aprovado em primeiro lugar no concurso para calígrafo da polícia.


se ficou sabendo de algo mais no local do ocorrido, disse que não.


Ele fora aprovado no concurso com mais outros quatro; e fora classificado em primeiro lugar (vovô recebera um telegrama anunciando o resultado).

 

Meu tio fora aprovado em primeiro lugar no concurso para calígrafo da polícia. Mas não quis saber de nada. Com a mesma mala de papelão moldado, com que chegara de volta de Porto Alegre, ele saiu de casa no mesmo dia em que soube o resultado do concurso. Foi-se para não voltar: preferira ficar por conta da pobre louca Ignez em seu puteiro – com a imponente e inútil máquina de escrever Adler, com as maravilhosas “vues stéréoscopiques”, com os deslumbrantes “tableaux vivants”, e como se partisse feliz com La Folie et l’Amour para os mais longínquos lugares desconhecidos e perdidos do mundo (ou do outro mundo).

 

Quem viu um olhar seguro, um gesto brando

Uma suave e angélica excelência,

Que em si está sempre as almas transformando,

Que tivesse contra ela resistência?

 

 

 

© Aldyr Garcia Schlee - "La Folie et l'Amour" - Conto, 2010

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Saudade dos tempos da Panair

SAO

 

Mario Castello - Centro de São Paulo - Fotografia (São Paulo SP Brasil)

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Retrato

Homenagem

 

 

 

 

 

Mario Castello - Retrato de José Mindlin e pintura de Lasar Segall - Fotografia (São Paulo SP Brasil)

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Segunda-feira, 13.09.10

Pintura de Geri Garcia

Prima Julia

 

 

 

Geri Garcia - Retrato de prima Julia - Pintura - Óleo sobre tela

(Padul/Granada Espanha), 1953

Mostra Vestigios da guerra / Expressões Misturadas -

Centro Cultural CEEE Erico Verissimo

Porto Alegre RS Brasil

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Domingo, 12.09.10

Este JANTAR está excelente, bom para pensar

O JANTAR

 

 

 

Um jantar lida com apetites, aguça sentidos, mexe com corpos.

 

À mesa de refeições, comida e bebida são dispostas, muitas vezes, não apenas para saciar fome e sede, mas como razão ou pretexto de encontros. Ali podem acontecer reuniões memoráveis, saborosas, divertidas, plenas conversas e debates, carregadas de afetos e de disputas.  O jantar mistura muitos ingredientes, alimentos, sensações, idéias, emoções. Em torno da mesa se fazem jogos de sedução e de poder, há afinidades e competições. Um espaço ‘bom para pensar’ a sociedade e a cultura.

 

Num tempo em que comida e gastronomia viraram moda, multiplicam-se ‘chefs’  e celebridades, ‘experts’ e especialistas que, na televisão, nas livrarias e até no cinema, com propósitos por vezes quase antagônicos, falam de mesas e de dietas, de prazeres e de restrições, enquanto se propõem a ensinar a escolher, preparar, combinar e harmonizar alimentos e bebidas. Este livro não fica alheio a este mundo, no entanto, se propõe a olhá-lo por outra perspectiva.

 

Naira trata de comidas e bebidas, de ervas, especiarias, vinhos e licores, mas não traz receitas nem regras, não ensina modos de preparo ou etiquetas. Ela analisa a mesa de jantar, ou melhor, a gastronomia, como um artefato da cultura. E, uma vez que ‘existe gastronomia quando há possibilidade de escolhas’, tal como lembra, se dispõe a examinar algumas destas escolhas. A preferência por produtos, por formas de preparo ou de apresentação; a decisão sobre quem prepara, quem tem a primazia de sentar à mesa; a eleição das horas e das regras das refeições; a distinção das mesas dos nobres e das mesas populares, dos alimentos finos ou vulgares; a valorização do que é local ou do que é raro, da cozinha dos antepassados ou dos estrangeiros –  as múltiplas e complexas escolhas que indicam e marcam posições de sujeitos, lugares sociais, gêneros, identidades. Nenhuma destas escolhas é, absolutamente, ‘inocente’, antes disso, elas são todas, de algum modo, cúmplices de sutis e, por vezes, arraigadas relações de poder.

 

Este livro se inscreve numa perspectiva dos Estudos Culturais, com um olhar particularmente voltado para as trocas de gênero e nacionalidades que se fazem e se reiteram no âmbito da gastronomia. Naira trata do disciplinamento e das transformações dos gostos, analisa autoridades e restrições de homens e mulheres na cozinha e na mesa, observa tradições e modas, regionalismos e importações, misturas e tendências. Mostra como a comida participou (e participa) da construção da identidade brasileira, questiona mitos, discute a dinâmica dos gêneros em torno do fogão e das mesas. Ao olhar acadêmico agrega sua experiência como docente de uma escola de gastronomia e, assim, constrói um texto ‘leve’ e provocante que, simultaneamente, instiga a pensar e faz sorrir. Como num jantar bem realizado, aqui o tempero é sutil e os sentidos são despertados. Vale a pena provar deste texto.

 

© Guacira Lopes Louro - Apresentação de O JANTAR, de Naira Scavone - Edições ARdoTEmpo

Imagens de Mauro Holanda

 

publicado por ardotempo às 19:02 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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Setembro 2010

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