Domingo, 18.07.10

O gato Shive L'Argent

O gato, o frio e a janela

 

 


 

 


publicado por ardotempo às 21:20 | Comentar | Adicionar

O Verbo torna-se Carne que por sua vez torna a ser Verbo

Romances negros, noites claras

 

António Lobo Antunes

 

 

Em acabando este livro apetece-me escrever um romance policial, ou antes um romance negro. Trago esta ideia há anos e chegou a altura de o fazer. Lembro-me de falar nisso ao meu irmão de alma José Cardoso Pires

 

- Sabes do que tenho vontade, tu?


esperei que o silêncio retornasse suficientemente côncavo para as minhas palavras caberem lá dentro e esvaziei o púcaro

 

- Fazer um romance negro.


Recebi de resposta


- Ando a pensar nisso desde que comecei.


Demorámo-nos às voltas com o plano de fazer o tal romance negro a meias, em capítulos alternados, depois o Zé teve aqueles problemas que acabaram numa morte horrível e, mesmo sem ele, não abandonei a cisma. Se for capaz de o pôr em marcha dedico-lho, claro, nós que não dedicámos livros um ao outro:


- Porque é que a gente nunca dedicou um livro ao outro?


- Achas que é preciso?


e ficámos assim. Mas levas com o teu nome no romance negro que te lixas. E meto lá os teus bairros. E meto-te lá a ti, de personagem principal. Não todo, claro, certas coisas de ti. Fazes-me tanta falta, meu cabrão, há tanto para contarmos um ao outro. O fim de um amigo é um martírio, não páras de te agitar cá dentro, raios te partam. Tu e o Ernesto Melo Antunes: duas feridas abertas que não saram. Mas nunca tive uma intimidade assim com outro homem.

 

Bom, adiante. O romance negro é uma promessa que te fiz e acabou-se.

 

Continuo a não beber, continuo a gostar de comida de avião


- Como posso ser amigo de um sacana que gosta de comida de avião?


papava o meu tabuleiro, papava o teu, falávamos de bailes nos Bombeiros Voluntários Lisbonenses, boxe, bilhar às três tabelas, chocos com tinta


(eu detesto)


não falávamos de literatura nem do que cada um estava a lavrar. Mostrava-se acabado o trabalho, num tonzinho distraído


-Queres ler isto?


e, sem mais palavras, suspendiamo-nos num pingo à espera da opinião do outro, que se resumia sempre a uma frase vaga.

 

Percebia-se o julgamento pelo clima à volta da frase, não pela frase em si. E era tudo.


À medida que o tempo avança vai-se ficando despovoado. Os eucaliptos dos anos destroem tudo em torno de nós. Sobram cinzas, raízes, sombras, restos de pedras calcinadas, vozes ao rés da erva à procura da boca onde nasceram, a pedirem que as escutemos. O que se ganha em troca?

 

Uma cor diferente no silêncio, aquilo a que chamamos sabedoria e não é mais que uma tristeza resignada. Outras pessoas habitarão aqui e a gente primeiro retratos nas cómodas, depois retratos nas gavetas, depois retratos na cave, depois nada.


Cartas numa caligrafia antiga que um vento defunto inclina. E a morte final com o esquecimento do nosso próprio nome. Ficam os livros


(ficarão os livros?)


ficam os livros. Em certo sentido é terrível que a criação dure mais que o criador: Flaubert enfurecia-se que a Bovary continuasse viva e ele não. É curioso: agora é ela, a quem Flaubert deu vida, que lhe dá vida a ele. É essa a grandeza da Arte: o Verbo torna-se Carne que por sua vez torna a ser Verbo. Pode desejar-se actividade mais nobre? E agora, não sei porque obscuro nexo, veio-me à ideia o Manuel da Fonseca a dar autógrafos na Feira do Livro, o sorriso dele. Esperava que eu acabasse, jantávamos juntos e deixava-o no cais para a outra banda, de madrugada. Cada autógrafo demorava dez minutos no caso de um homem, quinze ou vinte no caso de uma mulher. Dedicatórias intermináveis. Entre o fim do jantar e o cais uma rebaldaria feliz. Tinha assistido à chegada do General ou Marechal Gomes da Costa a Lisboa, depois do vinte e oito


(ou vinte e seis?)


de maio


(vinte e oito)


e o Manel, com a avó, a assistir ao desfile das tropas na Avenida da Liberdade, em que a avó lhe disse


- Olha, filho, devia haver um decreto que proibisse as revoluções.


Copinhos no balcão de cada bar, discotecas manhosas, nem uma palavra sobre literatura, claro. O Manel recrutava umas pequenas e, pelo retrovisor, assistia-lhe às manobras no banco de trás: quem começa o Cerromaior assim


Antigamente o largo era o centro do mundo


merece tudo. E um punhado de poemas de alta qualidade, ai as coisas incríveis que eu te contava assim misturadas com luas e estrelas e a voz vagarosa como o andar da noite. Mesmo posto corrido é do camandro. E a voz do Manel vagarosa como o andar da noite. Nunca tinha pressa, nunca o vi triste. Adorava andar à pancada. O Zé dizia que ele se fingia cobarde para os outros aumentarem e a seguir era um arraial de porrada que dava gosto. Para o Zé se exprimir assim, ele que sob esse aspecto não devia a ninguém, era de certeza. Manel. Só tenho pena que o Zé não se reconciliasse contigo por uma asneira velha, muito feia, que nunca te perdoou. Eu também não perdoei


(não perdoo)


mas esqueço sempre.


- O Zé não vem conosco?


perguntava o Manel, ansioso, e eu por dó  Não pode a ver-lhe a aflição na cara. Deixa lá: antigamente o largo era o centro do mundo. E a quem foi capaz de dizer isto aceita-se tudo. Eu, pelo menos, aceito. E o Zé há-de aceitar, vais ver, é uma questão de tempo.

 

António Lobo Antunes

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publicado por ardotempo às 20:09 | Comentar | Adicionar

Permanente e fugaz

Do fazer ao exibir-se


Ferreira Gullar


Por que o radicalismo de vanguarda, que surgiu com o movimento "dada", por volta de 1915, atravessou o século 20 e até hoje se mantém como tendência predominante nas artes plásticas?Formulei essa pergunta há alguns anos sem conseguir respondê-la satisfatoriamente.

 

Como se sabe, o movimento "dada", que teve como figuras principais Marcel Duchamp e Tristan Tzara -sem falar em Kurt Schwitters, Hans Arp e muitos outros -, caracterizou-se por um radicalismo que se voltava contra toda e qualquer busca de coerência ou princípios no processo de criação artística.Se é verdade que o cubismo pôs fim à linguagem pictórica que nascera no Renascimento, o dadaísmo, ao contrário dos movimentos derivados daquele, tinha por lema a liberdade sem limites e a negação de tudo o que se considerasse arte.

 

Era a antiarte, cujo ícone maior foi o urinol que Duchamp expôs em 1917. Se, paralelamente, surgiram outros movimentos artísticos, alguns, aliás, de caráter construtivo, foi o dadaísmo, em sua expressão mais irreverente, que se impôs no curso do século 20.

 

Minha pergunta implicava outra questão: se os movimentos de vanguarda se manifestaram não apenas nas artes plásticas, mas também na poesia, no romance, na música, no teatro, por que só naquelas se manteve dominante até hoje, enquanto as outras artes, depois de absorverem inovações vanguardistas, retornaram, enriquecidas, a seu leito natural?

 

Por exemplo, a poesia dadaísta chegou, após a "Ursonate", de Schwitters, a poemas que, em lugar de palavras, usavam traços, sinais abstratos. O caso extremo do experimentalismo na literatura foi o "Finnegans Wake", de James Joyce. Felizmente, a literatura de ficção não o tomou como exemplo a seguir, como as artes plásticas o fizeram com o urinol de Marcel Duchamp.

 

Se isso houvesse ocorrido, não teríamos hoje as obras de Borges, Faulkner, Clarice Lispector etc. Sem exagero, a literatura ter-se-ia tornado indecifrável e ilegível.

 

Diante disso, questionei o fundamento desse vanguardismo que só se manteve nas artes plásticas. Qual fator o fez manter-se apenas neste campo, e não nos outros? Deduzi eu que, se fosse uma necessidade da época, teria se mantido em todas as outras artes. Esse me parecia um argumento lógico, mas não me satisfazia, mesmo porque a vanguarda, em qualquer campo que se manifestou, nascera de fatores históricos identificáveis.

 

A pergunta permaneceu, portanto, sem resposta, até que, quase por acaso, julgo tê-la encontrado.Não pensava nesse problema, quando observei que, no passado, não havia exposições de arte, mesmo porque ainda não se inventara o quadro de cavalete: o artista pintava afrescos nos muros dos mosteiros e igrejas e, depois, nas paredes dos palácios dos nobres e das mansões dos burgueses. Como o número de paredes era limitado, foi preciso surgir o quadro de cavalete para nascer o colecionador de arte, que passou a ir ao ateliê do artista e ali comprava a tela que lhe agradasse. O artista não expunha suas obras. Só no século 19 criaram-se os salões de arte, onde passou a expor. Distribuíam-se prêmios que, por consequência, determinavam o valor das obras no incipiente mercado de arte. E aí surgiram as galerias e os marchands.

 

Expor obras é um fenômeno relativamente recente na história da arte. Da Vinci, Rafael, Ticiano não expunham suas obras e isso influía no resultado do que criavam. No século 20, surgiram as grandes mostras internacionais, como a Bienal de Veneza, a de São Paulo e outros certames que se tornaram o espaço onde a arte acontece: um depende do outro. Essas exposições internacionais é que garantiram a sobrevida da vanguarda, estimulando o artista a produzir obras que "aconteceriam" ali.

 

Ele trabalha para grandes mostras e necessita impactar o espectador, ao contrário do pintor do passado, preocupado em criar obras permanentes, que dele exigiam dedicação e apuro técnico.Creio ser essa uma das razões por que a chamada arte contemporânea não elabora uma linguagem, não requer domínio técnico, já que o artista não busca a permanência e, sim, antes de tudo, expor e expor-se. Daí o improviso: as instalações, os "happenings", as performances.


Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL

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publicado por ardotempo às 20:01 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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