Sexta-feira, 18.06.10

A mostra BRASIL CAMISA BRASILEIRA

Centro Cultural CEEE Erico Verissimo - Gilberto Perin

 

 

 

 

 

 

 

 

 


publicado por ardotempo às 16:15 | Comentar | Adicionar
Quinta-feira, 17.06.10

Algumas fotos - Camisa Brasileira

Camisa Brasileira - Exposição de Fotografias - Gilberto Perin

 

 

                                                                                                                                                                                                                                              

 

                                                                                                                                                                                                                                            

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Gilberto Perin - Fotografias - Camisa Brasileira  (Centro Cultura CEEE Erico Verissimo - Porto Alegre RS Brasil), 2010

 

http://www.gilbertoperin.com

publicado por ardotempo às 13:39 | Comentar | Adicionar
Quarta-feira, 16.06.10

Exposição hoje: Camisa Brasileira (Abertura)

Gilberto Perin

 

                                                                                                                                                                                                                                        
Trabalhadores do futebol
 
A exposição de Gilberto Perin, que se inaugura hoje no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, no Centro Histórico de Porto Alegre é um majestoso ensaio fotográfico sobre um universo pouco conhecido (e muitas vezes oculto) acerca das atividades profissionais e do comportamento dos milhares de trabalhadores do futebol, os que jogam e os que os apoiam. Não é o do espaço dos astros televisivos do super-espetáculo regido pelo rico mercado dos clubes-empresas, dos formidáveis anunciantes, dos empresários negociantes e dos artistas a quem a fortuna sorriu.
É outra gente, mais numerosa, mais frágil, para quem os dramas humanos estão mais evidenciados e que são capazes de nos emocionar e comover com  a grandeza de sua humildade e de sua humanidade.

É outro espaço, é outro tempo, são grandes as carências, as limitações materiais – mas talvez seja mais genuína a paixão que o esporte, distanciado dos holofotes do negócio-futebol, desperte em torcedores desses times e clubes espalhados pelo Brasil inteiro.

Camisa Brasileira é o título do ensaio fotográfico (com cerca de 3.000 imagens), da mostra (com 50 imagens) e do livro de arte (com cerca de 100 imagens) que será lançado até o final do ano. Livro que contará com a luxuosa colaboração do escritor Aldyr Garcia Schlee.
Projeto inscrito no Ministério da Cultura - PRONAC nº 10 4301.

A mostra revela um espaço de tempo e de atividades em que os aficcionados do esporte, os torcedores, os profissionais de imprensa já não tem mais acesso pelas rígidas regras que se impuseram nas recentes exigências do mercado dirigido pelo estrito controle da imagem. Os bastidores do futebol, os vestiários, a intimidade mais reclusa e secreta desses trabalhadores que dependem dos resultados do dia-a-dia para a própria sobrevivência. É preciso que tudo dê certo, que o indíviduo esteja nas graças da torcida, que os deuses do esporte velem para que ele jogue sempre bem, não se machuque, nunca seja expulso do campo. Que ele, o indivíduo, nunca perca o jogo.

Porém, como os indivíduos são muitos, são vários e diversos os times e os locais das disputas, os deuses e os santos em sincrético conflito não conseguem atender a todos –  os adversários e os concorrentes em luta. O jogo sabe à dureza, acontecem todas as probabilidades imaginadas e daí decorrem as glórias e os dramas. Acontecem então o choro, as angústias, o medo, a dor, a exaltação, a alegria, o companheirismo, os conflitos, as vitórias e os fracassos.

É nessa convulsão secreta de ocorrências que a vida é capaz de provocar que o fotógrafo, autorizado e invisível, capturou com rarissima sensibilidade: um conjunto dinâmico e humano de cenas que ninguém mais testemunha há décadas e nos traz à luz numa espécie de depoimento visual, original e único.

Ele atravessou o estado do Rio Grande do Sul, sul do Brasil em longas distâncias, ao longo de quatro meses, sem apoios financeiros ou patrocínios, para acompanhar a equipe do Grêmio Esportivo Brasil, em suas jornadas futebolísticas em pequenos estádios de condições bastante limitadas (ao contrário de sua própria sede, como time de enorme popularidade, de fanática e numerosa torcida, a sede em Pelotas que é grandiosa, confortável e bem equipada).
Perin seguiu a trilha do futebol mais popular, mais tangível, mais próximo às pessoas, mais humano, como qualquer outra atividade, sem o glamour artificial da mídia.

Produziu assim uma obra de arte de incrível potência na qualidade das imagens colecionadas, que nos revelam um universo inédito, no dias atuais. Mais pungente, mais doloroso, mais humano, mais belo e profundamente original pela sua singularidade.

Este universo do futebol que ninguém mais vê, vale a pena ser descoberto nessa bela exposição, pelo testemunho silencioso dos olhos de um fotógrafo audacioso e de visão estética personalizada.
                                                                                                                                                                                                                                  
Alfredo Aquino - Curador da mostra Brasil Camisa Brasileira 
publicado por ardotempo às 20:47 | Comentar | Adicionar

Elefante

Fotografia

 

 

 

 

Nick Brandt - Elefante - Fotografia

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Segunda-feira, 14.06.10

Vazio infinito

Cada vez mais sós

 

Acho que todos nós devemos repensar o que andamos aqui a fazer. Bom é que nos divirtamos, que vamos à praia, à festa, ao futebol, esta vida são dois dias, quem vier atrás que feche a porta – mas se não nos decidirmos a olhar o mundo gravemente, com olhos severos e avaliadores, o mais certo é termos apenas um dia para viver, o mais certo é deixarmos a porta aberta para um vazio infinito de morte, escuridão e malogro.

 

 

 

 

José Saramago

 

(Publicado no blog Outros Cadernos de Saramago)

 

publicado por ardotempo às 01:33 | Comentar | Adicionar

"Quanto ganhas...?"

Cidadãos, não clientes

 

Nós estamos a assistir ao que chamaria de morte do cidadão e, no seu lugar, o que temos, e cada vez mais, é o cliente.

Agora já ninguém te pergunta o que pensas, agora perguntam-te que marca de carro, de roupa, de gravata tens, quanto ganhas

 

 

 

 

 

José Saramago

 

(Publicado no blog Outros Cadernos de Saramago)

publicado por ardotempo às 01:00 | Comentar | Adicionar
Domingo, 13.06.10

Lançamento de Treva Alvorada - Livraria da Vila (São Paulo)

Poesia

 

 

Uma festa bonita com presença de muito público. Foi um notável sucesso o lançamento do sexto livro de poesias de Mariana Ianelii - Treva Alvorada, na Livraria da Vila (Alameda Lorena) em São Paulo, na noite de quinta-feira, dia 10 de junho.

Fotografia de Petronio Cinque

publicado por ardotempo às 20:21 | Comentar | Adicionar

Pintura

Auto-retrato

 

 

Miquel Barceló - Moi/Yo - Pintura / Técnica mista, 2005

publicado por ardotempo às 16:26 | Comentar | Adicionar

Palavras da rua

O que está nos muros da cidade

 

 

 

"As frases verdadeiras estão sempre relacionadas com uma ferida profunda". - Herta Müller (Prêmio Nobel de Literatura 2009, Romênia)

Imagem: Cartaz espalhado e colado pelos muros e paredes da cidade de Porto Alegre, 12 de junho de 2010

publicado por ardotempo às 15:41 | Comentar | Adicionar

Calvário Andino

Cristo en las salitreras

 

J. Ernesto Ayala-Dip

 

El novelista chileno Hernán Rivera Letelier es dueño de un mundo propio. Se fragua ese mundo con el oficio de la frase bien construida, como si fuera concebida para el oído, y el empeño indeclinable de la invención. Rivera Letelier es un fabulador nato. Es consecuente con un paisaje físico que parece siempre el mismo. Suelos áridos, desérticos, proclives al espejismo. Y probablemente a los asuntos humanos más insospechados. Una suerte de sobrenaturalidad táctil, casi contagiosa. No faltan en ninguna de sus novelas los páramos de salitres. Las salitreras. Y en ese mar de soledad lunar están los cúmulos de gentes resignadas a su suerte: la pobreza, el caciquismo y la arbitrariedad. Estos elementos no están por estar. Tienen una función narrativa. Facilitan la inclusión de la imaginación. Hacen que la verdad humana lo sea en la medida en que la verdad estética despliegue su poder de convicción. En territorios tan inhóspitos, un llamado de la fábula más inesperada es una luz. (Los parajes míticos, tan familiares en la literatura latinoamericana). Ese llamado puede ser una orquesta perdida en el desierto o un malabarista del balón, una especie de Mesías que un remoto pueblito salitrero espera con unción: Fatamorgana de amor con banda de música y El fantasista, novelas en la que Rivera Letelier crea figuras legendarias, dispositivos imprescindibles para metabolizar con infalible eficacia la realidad representada. En estas novelas el autor chileno resume su filosofía de la novela.

 

En El arte de la resurrección, el autor vuelve a su sistema narrativo. Retorna a su paisaje habitual. La soledad recurrente y hostil. Ahora la historia transcurre al lado de una oficina salitrera. Volvemos a situarnos al norte de Chile, casi al borde de Bolivia. Un hombre, Domingo Zárate Vega, es durante 22 años el Cristo de Elqui. Un hombre de 40 años que deambula atizando a los explotadores y descreídos auténticas proclamas redentoras. De pueblo en pueblo su palabra aglutina a los que necesitan consuelo y esperanza. Los pobres, los tullidos y los mudos. Pero el cuadro no estaría completo si no se le sumara al infatigable mártir de los pecados del mundo la prostituta Magdalena. Contra lo que pudiera parecer, no estamos ante una parodia. Tampoco ante un dispendio de ironía y humor, aunque ambos existan en sus dosis imprescindibles. Domingo Zárate Vega se mete en la figura de un Cristo chileno que cree estar llamado a repetir en las salitreras la experiencia existencial y apostólica del fundador del Cristianismo. La resurrección es una cuestión capital en la interpretación del Cristianismo y en la investigación de la figura histórica de Jesucristo. Sin resurrección no hay fe, dicen unos; sin resurrección hay igual un hombre que viene al mundo a luchar por la justicia y la compasión, afirman otros. La figura de Magdalena tampoco es casual en la novela. Ningún evangelio afirma taxativamente que Magdalena haya sido una prostituta, aunque sí los hay que afirman que era una pecadora. En la novela de Hernán Rivera Letelier, su título y la presencia de Magdalena nos recuerdan que hay una teoría que atribuye la resurrección a la impresión que se llevó Magdalena al ver el cadáver de su maestro (¿o amante?). Una impresión real, probablemente la auténtica conmoción cristiana ante un cuerpo real, devino con el tiempo en relato. Desconozco los conocimientos bíblicos de Rivera Letelier. ¿Y si esta novela fuera también una relectura de Cristo? ¿Una relectura progresista de los Evangelios, una interpretación terrenal?

 

Encontré en El arte de la resurrección una fisura que su autor no atinó a disimular. La insistencia del narrador (me refiero a la voz que narra desde una ambigua tercera persona) en adjetivar a su protagonista de mil maneras posibles me reafirma en la creencia de que Rivera Letelier apuró la extensión de su novela. O calculó mal el dibujo de su héroe, que hubiera necesitado tal vez menos atributos barroquizantes y más densidad psicológica. Hernán Rivera Letelier ha escrito una buena novela. La idea de una especie de loco premeditado en el desierto, vociferando en nombre de Cristo su diagnóstico moral de la sociedad de su tiempo (los años cuarenta) y de todos los tiempos, tiene gancho novelístico y el autor chileno ha sabido explotarlo. Recuerdo siempre unas palabras de Harold Bloom: "Puede que Jesús fuera un enigma hasta para él mismo". ¿Y si Domingo Zárate Vega fuera él también un enigma? O el personaje que me parece que también se está mereciendo otra novela.

 

J. Ernesto Ayala-Dip - Publicado em Babelia / El País

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"Prefiro não vê-lo a não vê-lo"

Mudanças na rua Duvivier

 
Ferreira Gullar

 
Que as coisas mudam, a gente sabe, mas nem sempre se repara. Felizmente.

 

E eis que, hoje, indo por minha rua, a Duvivier, em direção à praia, após cruzar a avenida Nossa Senhora de Copacabana, me dou conta de que, do outro lado da rua, vizinha à farmácia, mudaram a fachada e as vitrinas de uma loja: está tudo novo, iluminado.E lembro que ali ficava uma barbearia, cujo dono vivia me pedindo que cortasse o cabelo com ele. Eu prometia sem a intenção de atendê-lo, uma vez que corto o cabelo com o Darcy, excelente cabeleireiro, mais de senhoras que de senhores.Um dia, porém, ao passar em frente à sua loja, entendi a razão do pedido: é que, na vitrina, punha fotos de pessoas conhecidas, seus fregueses ilustres: um deles era Mário Lago; outro era Braguinha, que morava aqui perto, na Barata Ribeiro.

 

E então me dei conta de que o simpático cabeleireiro havia sumido para sempre, ele e sua barbearia. Essa descoberta de distraído me levou a antigos desaparecimentos e mudanças, ocorridos na minha rua, a começar pelas várias boates que fecharam as portas para sempre. É que esta era uma área de intensa vida noturna, nos anos 50 e 60.Basta dizer que, quase em frente à falecida barbearia, está o Beco das Garrafas, onde teria nascido a bossa nova.

 

O beco ganhou esse nome, segundo consta, porque os vizinhos, que moravam em cima da boate, atormentados com o barulho dos músicos e dos bebuns, alta madrugada, jogavam garrafas sobre eles. Hoje, na esquina do beco, há uma pequena loja especializada em coisas ligadas à bossa nova.Outra boate que fechou foi a que havia debaixo de meu apartamento e não me deixava dormir. Hoje, em seu lugar, há uma silenciosa loja de móveis usados, frequentada, altas horas da noite, só pelos falecidos donos daqueles antiquados guarda-roupas de espelho na porta; mas fantasmas não fazem barulho.

 

Barulho mesmo fazia a Banda do Viver que, semanas antes do Carnaval, ocupava a área livre em frente a um casarão desabitado. Um dia o demoliram, construíram um hotel de muitos andares, e a banda passou a se concentrar debaixo de minha janela, num palanque com alto-falante e tudo. Esse tormento acabou de repente porque o responsável pela banda morreu.Não sonhava com solução tão drástica, mas a vida, às vezes, engrossa. Devo admitir, porém, que, sem a Banda do Viver, minha vida, durante o Carnaval, melhorou. Só durante o Carnaval porque, ao longo do ano, depois que construíram o tal hotel, piorou: é que ele tapa o sol que iluminava minha sala, todas as manhãs; agora, só depois das 11h, ali penetra por alguns minutos.Como a vida muda e tudo muda, minha esperança é que, um dia, esse maldito hotel seja demolido também. Sei que é nada provável, mas um pouco de insensatez ajuda-nos a viver, como ensina o inolvidável cavaleiro Dom Quixote de la Mancha.

 

Outra coisa que mudou para melhor foi uma turma que ficava ali na esquina com a Ministro Viveiros de Castro. Um deles tinha uma caminhonete de fretes, que estacionava sempre na passagem de pedestres; outro vendia móveis usados, que colocava junto à grade do prédio da esquina. Essa turma passava o dia ali, um sentado numa poltrona velha, outro na beira de um estrado de cama, ocupando a calçada.O mandão do grupo era um barrigudo, de barba por fazer e sem camisa. Certo dia, o vi montado sobre um dos colegas, socando-lhe a cara. Tomei horror a ele.

 

E não é que, de repente, sumiram todos? Um tempo depois, na mesma esquina apareceu um sujeito que vivia deitado numa colcha velha e que, quando se levantava, mal conseguia andar.À noite, desaparecia, mas, no dia seguinte, estava lá outra vez. Faz uns dois meses que sumiu também, creio que para sempre.

 

Essas foram mudanças ocorridas na rua. Há, porém as que se passaram dentro de casa, mais perto de mim. Dentre elas, a mais recente e sentida foi a perda de meu gato, chamado Gatinho, que daqui saiu em meus braços, certa madrugada, quando o levei a uma clínica na rua Santa Clara, donde não voltaria mais; a não ser, num momento ou outro, quando o sinto roçar em minhas pernas, debaixo da mesa, sem que me atreva a espiá-lo. Prefiro não vê-lo a não vê-lo.

 


 
Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL

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Quinta-feira, 10.06.10

Línguas à solta, sem constrangimentos

 

Alguém quer fazer uma pergunta?

 

José Mário Silva

 

Nos últimos anos, tenho aceitado muitos convites para moderar mesas-redondas literárias e apresentações de livros. Dessa minha experiência retirei um ensinamento: ao contrário do que seria legítimo esperar, não é o debate em si que levanta dificuldades. Salvo raras excepções, os oradores com quem partilho a mesa costumam ser pessoas inteligentes, articuladas, que sabem falar e têm coisas interessantes para dizer. Eu apresento-as, resumo os seus percursos, lanço tópicos para a conversa, vou gerindo os tempos, provoco aqui e ali, contextualizo, estabeleço pontes entre as principais ideias discutidas e esboço, no fim, uma síntese. Isto, com a prática, torna-se fácil.

 

Complicado é o que vem depois. O momento fatal em que olho para o relógio, confirmo que faltam dez minutos para acabar a sessão e dirijo ao público o desafio da praxe: "Alguém quer fazer uma pergunta?"

 

Primeiro, instala-se o silêncio. Um silêncio desconfortável, tenso, cheio de silêncios mais pequenos, como bolhas prestes a rebentar. Varrendo a sala com os olhos, descarto logo os espectadores adormecidos (ou em vias de adormecer) e os espectadores que nunca jamais em tempo algum seriam capazes de pedir a palavra (basta ver a forma como se afundam na cadeira), e concentro-me naqueles que embora não levantem, ainda, o dedo que assinala a resposta ao meu repto, já se agitam e soerguem os corpos, traindo a loquacidade que dentro deles fervilha.

 

Eu repito a pergunta, acrescento "Já se sabe que a primeira é a mais difícil", volto a varrer a sala com o olhar, insisto ("Alguém?'), olho para os convidados, viro-me para a plateia com cara de "falem agora ou calem-se para sempre", e então uma mãozinha lá se digna a acenar, quase a medo, como quem não quer a coisa (mas quer, mas quer).

 

Enquanto o microfone não chega ao dono da mãozinha, preparo-me para o embate. É agora que o meu trabalho verdadeiramente começa. Cabe-me ouvir com atenção as primeiras frases, detectar padrões de linguagem, traçar um perfil, enquadrá-lo na taxinomia dos frequentadores-de-debates-que-fazem-sempre-perguntas-no-fim e agir em conformidade.

 

O mais problemático destes espécimes (tratemo-los assim sem desprimor) é o que se apropria do microfone sem intenções de o largar. Se o deixassem, ficaria ali, perorando sobre tudo e mais alguma coisa (menos o tema do debate, claro) até à manhã seguinte. Ou até começar o Forum TSF, onde deve ter lugar cativo, seja qual for o assunto em discussão.

 

A este tipo de opinador verborreico não é fácil cortar a palavra, mas uma frase como "peço-lhe que faça, caro senhor, uma pergunta concreta à mesa, caso contrário vou ter de passar a outra pessoa" costuma ser remédio santo e ele depressa assume que na realidade já disse o que queria dizer.Há depois um sem número de categorias capazes de dar água pela barba ao Lineu que decidisse estudá-las. Entre outras, os perguntadores confusos, que se atropelam e enrolam e gaguejam e continuam a ser incompreensíveis mesmo depois do quinto "importa-se de repetir?"; os perguntadores complexados, que protestam contra o elitismo da mesa ("eu não percebi nada do que disseram, mas também nunca andei na universidade, trabalho desde miúdo", etc.); os perguntadores zangados, que se sentem pessoalmente ofendidos por algo que foi dito sobre a classe a que pertencem (profissional, etária, económica) e lavam a honra com muita verve e pouca capacidade de síntese; os perguntadores agradecidos, que apenas querem sublinhar o "enorme prazer" que tiveram ao ouvir comunicações "tão excepcionais"; os perguntadores alucinados, que vivem num universo paralelo e ainda não se aperceberam (nas Correntes d’Escritas há um que até fala em alemão); e os perguntadores poetas, que insistem em partilhar com o resto da sala os seus embaraçosos versos de pé quebrado.Justiça lhes seja feita, há também perguntadores normais, os que colocam questões sucintas e directas aos intervenientes, mas parece-me que são uma minoria.

 

Quando pergunto se alguém quer fazer perguntas, é dos outros que eu estou sempre à espera. E é por isso que às vezes fico aliviado quando ninguém levanta a mãozinha e eu remato com um "então ficamos por aqui".

 

Publicado no blog Bibliotecário de Babel

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Quarta-feira, 09.06.10

A poesia ganha

TREVA ALVORADA

 

 

© Mariana Ianelli - Treva Alvorada - Editora Iluminuras, 2010

publicado por ardotempo às 17:39 | Comentar | Adicionar

A fotografia ganha

Futebol se ganha, se perde ou se empata

 

Roger Lerina - Contracapa ZH

 

 


 

 

As fotos muito bacanas flagram os bastidores da maior paixão nacional:

 

o fotógrafo Gilberto Perin acompanhou durante três meses o cotidiano do time pelotense Grêmio Esportivo Brasil na disputa pelo campeonato da Segunda Divisão do futebol gaúcho. O resultado desse registro será mostrado em Porto Alegre a partir do próximo dia 16, quando será inaugurada no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo (Rua dos Andradas, 1.223) a exposição BRASIL – CAMISA BRASILEIRA.

 

 

 

 

A inspiração veio dos tempos antigos, até algumas décadas atrás, quando, no intervalo e ao final do jogo, os repórteres transmitiam o som dos vestiários diretamente, com a emoção expressiva dos jogadores, falando após as vitórias ou as derrotas. E nos jornais dos dias seguintes, os fotógrafos revelavam a tensão e a felicidade de vitoriosos ou derrotados em seu local mais íntimo, o vestiário do futebol “– explica Perin, que também é diretor do Núcleo de Especiais da RBS TV.

 

A mostra reúne 50 fotografias, que integrarão um livro com cerca de 80 / 100 imagens ao total, a ser lançado ainda neste ano (Edições ARdoTempo). A exposição e o livro têm curadoria e edição do artista plástico Alfredo Aquino – a publicação contará também com texto do escritor Aldyr Garcia Schlee.

 

Roger Lerina - Publicado em Zero Hora

 


publicado por ardotempo às 17:33 | Comentar | Adicionar

Metáfora

Jogo da Bola

 

Apito

Vai

Bola bate

Buraco no chão

Superstição

Ferido não joga

Expulso não joga

Cartão, cartão, cartão

Acende a vela

Falta grana

Sobra drama

Um que vai

Um que vem

Fita crepe

Um chuveiro

Frio, muito frio

Vaia

Pancada

Falta grana

Come grama

Negro da África

Negro da Rússia

Negro da esquina

Fumaça

Bomba, bomba, bomba

Churrasquinho

Chuteira preta

Azul

Vermelha

Branca

Havaiana

Falta grana

Resta medo

Perde o ponto

Fratura exposta

Treze pontos

Falta gol

Rouba a bola

Bandeiras

Queda ao chão

Quebra o dente

Chuta perna

Muletas

Religião

Apito

Pára

Perde o jogo

Fim

Vida.

 

 

 

 

 

Gilberto Perin - Fotografia - Brasil Camisa Brasileira (Porto Alegre RS Brasil), 2010

Centro Cultural CEEE Erico Verissimo

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POP

Salto16, sapato37, aroma de café, Justine de Alexandria

 

 

Allen Jones - Pop-artista - Pintura

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Terça-feira, 08.06.10

Poeta maior

 

Ferreira Gullar, poeta maior

 

A atribuição do Prémio Camões – no valor de cem mil euros (metade dos quais pagos por Portugal; metade pelo Brasil) – a um escritor cuja obra, no seu conjunto, contribua para o enriquecimento do património literário em português, gera todos os anos entusiasmos e incómodos na comunidade cultural lusófona. Independentemente dos méritos de quem ganha, há sempre a desconfiança de que os critérios do júri são mais da ordem da diplomacia – e do equilíbrio de forças dentro do espaço da língua comum – do que da literatura. A edição de 2010 não deverá ter escapado a esta tendência.

 

Na passada segunda-feira, antes do anúncio oficial feito pela ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, o júri – composto por dois brasileiros (António Carlos Secchin e Edla van Steen), dois portugueses (Helena Buescu e José Carlos Seabra Pereira), um moçambicano (Luís Carlos Patraquim) e uma são-tomense (Inocência Mata) – esteve reunido durante duas horas. À partida, era previsível que o vencedor fosse brasileiro ou português, uma vez que em 2009 o Camões foi para o poeta cabo-verdiano Arménio Vieira e a lógica rotativa (nunca admitida) do prémio implicava um regresso ao território das duas maiores potências da CPLP. Se os jurados brasileiros defenderam com empenho a causa de Ferreira Gullar, autor que Secchin, um dos “imortais” da Academia Brasileira de Letras, já tinha de resto proposto como candidato ao Nobel (em 2002), os representantes portugueses no júri tudo fizeram para que a distinguida fosse Hélia Correia. A decisão foi difícil e tomada por maioria, prevalecendo a ideia de uma maior urgência em premiar Gullar (n. 1930) do que a autora de Lillias Fraser, 19 anos mais nova. "Quase demos o prémio para a Hélia Correia e teria sido muito bom também, mas ela tem tempo", admitiu Edla van Steen no fim da conferência de imprensa em que foi lida a acta do júri, na qual se sublinha "a alta relevância estética da obra de Ferreira Gullar, em especial a poesia, incorporando com mestria tanto a nota pessoal do lirismo quanto a defesa de valores éticos universais".

 

 

 

 

Único editor de Ferreira Gullar em Portugal, Jorge Reis-Sá considera que a atribuição do prémio é “inteiramente justa”, até porque volta a distinguir a poesia brasileira, vinte anos exactos após o Camões atribuído a João Cabral de Melo Neto. Hoje a trabalhar no grupo Babel, Reis-Sá publicou em 2003, nas Edições Quasi (entretanto falidas), as mais de 500 páginas da Obra Poética completa de Gullar. Na altura, teve oportunidade de visitar o poeta na sua casa do Rio de Janeiro, na companhia de Eucanaã Ferraz, e recorda um homem “inteligentíssimo”, correcto e afável, “um gentleman”. Entretanto, a tiragem de mil exemplares da Obra Poética esgotou e Reis-Sá gostava muito de reeditá-la, embora não saiba se depois do prémio isso será possível. As Quasi publicaram ainda, em 2005, um outro livro de Gullar de que Reis-Sá se orgulha: Um Gato chamado Gatinho, volume de poemas infantis, “lindíssimos”, com ilustrações de Joana Quental. Alguns desses poemas foram cantados ao vivo por Adriana Calcanhotto, versão Partimpim, num concerto no Coliseu dos Recreios, em Lisboa.

 

Além de poeta, Ferreira Gullar (pseudónimo de José Ribamar Ferreira) foi ou é também cronista, crítico de arte, dramaturgo, ensaísta, biógrafo, tradutor e guionista. Em 2008, o volume Poesia Completa, Teatro e Prosa (Nova Aguilar) reuniu uma produção literária de quase seis décadas em 1264 páginas – do seu livro de estreia (Um pouco acima do chão, 1949) às memórias do seu exílio (no tempo da ditadura militar), passando pelas várias fases da sua evolução como escritor, do experimentalismo ao neoconcretismo, da torrente visceral de Poema Sujo (1976), uma obra-prima que evoca a infância em São Luís do Maranhão, aos versos em que se comprometeu com as lutas sociais e políticas do seu tempo, nunca abdicando do rigor absoluto da linguagem.

No livro de ensaios Indagações de hoje (1989), Ferreira Gullar escreveu: «a palavra que forma o poema sempre foi, no meu entender, uma entidade viva, nascida do corpo, suja sabe-se lá de que insondáveis significados». E o ensaísta Ivan Junqueira, no prefácio à Obra Poética editada pelas Quasi, sintetizou: “Se examinarmos a poesia de Ferreira Gullar desde 1954 até agora à luz de sua tessitura estilística, chegaremos à conclusão de que poucos autores entre nós alcançaram tanta e tamanha coerência interna, tanta e tamanha fidelidade às suas origens de artista que se dispôs a transgredir as fronteiras do sistema da língua”.

 

A consagração do Prémio Camões foi precedida por outras distinções importantes no Brasil, como um Jabuti, em 2007, e o Prémio Machado de Assis, pelo conjunto da obra, em 2005. No próximo mês de Setembro, quando completar 80 anos, Ferreira Gullar lançará um livro de poemas inédito, Em Alguma Parte Alguma (José Olympio), o primeiro desde Muitas Vozes (1999), volume onde se podem ler estes três versos que de certa forma resumem a sua arte poética: “Meu poema / é um tumulto, um alarido: / basta apurar o ouvido.

 

Publicado no blog Bibliotecário de Babel

 

publicado por ardotempo às 02:21 | Comentar | Adicionar

A excelência usa cortiça

 

Franceses fazem campanha em defesa das rolhas de cortiça

 

Nos últimos 15 anos o uso de rolhas de cortiça em vinhos caiu consideravelmente. De sua posição dominante no mercado com 95% ela caiu para 70%, sendo agora substituída por tampas de plástico e de alumínio.

 

Reagindo a uma tendência do mercado, a Apcor - a maior produtora de cortiça do mundo - iniciou uma campanha internacional de 20 milhões de euros.

 

Uma das principais mensagens da campanha será a de que técnicas têm sido desenvolvidas para diminuir cada vez mais as chances de um vinho se tornar "arrolhado". Isso acontece quando a cortiça, por ter características maleáveis, contém imperfeições que podem alterar o aroma e até mesmo o gosto da bebida.

 

A Federação Francesa de Cortiça também tem feito a sua parte para que a tradição de séculos não seja abandonada. O órgão fez inúmeras pesquisas sobre a preferência do consumidor e chegou à conclusões animadoras. De acordo com os estudos, nove em cada dez franceses preferem a rolha de cortiça em seus vinhos e oito em cada dez associam a cortiça a bebidas de qualidade. 

 

A questão ambiental também é um importante fator a favor da rolha de cortiça. As pesquisas da federação mostraram que o material produz dez vezes menos emissões de carbono do que as tampas de plástico e 26 vezes menos do que tampa de rosca.

 

Em 2009, 11.300 milhões de rolhas foram vendidas no mundo, uma queda de 3,5 por cento em relação ao ano anterior. 

 

 

 


 

 

Publicado no Universo Online / UOL

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Segunda-feira, 07.06.10

Exposição de Gilberto Perin -16 de junho

 

 


 

www.gilbertoperin.com

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Domingo, 06.06.10

Regents Hotel, 44 Rue Madame

 

Hotéis de Passagem (IV)

 

João Ventura

 

E já agora o meu hotel pessoal de passagem, o Excelsior, na rue de Cujas, em Paris, onde havia, também, um quarto misteriosamente parecido com o do conto de Cortázar, com uma porta escondida atrás de um armário que deixava ouvir não os gemidos de amantes de passagem, mas o murmúrio de um casal de exilados chilenos que ali estavam também de passagem. 

 

Quando vou a Paris, subo sempre a Rue de Cujas, que liga o Boulevard Saint Michel à rue d´Ulm, e ao passar em frente da porta de entrada espreito, dissimuladamente, para o pequeno foyer onde se encontra o balcão da recepção, agora modernizado, depois de um upgrade remodelador que o dotou de um pequeno salão com amplas vitrinas que dão para a rua. Contudo, não se modernizam as recordações cegas da minha vida suspensa naquele pequeno hotel de passagem para hóspedes errantes sem pátria nem dinheiro. 

 

E recordo, então, o quarto, pequeno, no terceiro andar, com uma pequena janela de guilhotina que dava à esquerda para uma açoteia e para mais nada, porque se abria para um muro sobre o qual espreitava um inútil pedaço de céu quase sempre cinzento: uma pequena estante de madeira onde coleccionava livros que falavam de revoluções por fazer, um armário onde guardava parcos haveres, uma colcha escura de textura áspera sobre uma cama estreita onde deitava em noites de vigília a saudade, uma lâmpada florescente no tecto, uma cortina azul escura no cubículo de banho, uma chávena onde derramava água apenas tépida colorida pelas saquetas de chá verde. 

 

Com um golpe de google fico a saber que também o quarto foi vítima de um upgrade, e a porta entaipada pelo armário substituída por uma parede de alvenaria que já não deixa escutar os murmúrios do quarto vizinho. E concluo, então, que aquele Excelsior que ali está já não é o mesmo onde transitoriamente me encerrei nas minhas paredes interiores, mas que nem por isso deixarei de continuar a olhar, dissimuladamente, através da sua porta, sempre que suba a rue de Cujas.

 

 

 

 

João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades

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L'amour, de Alain Badiou

Éloge de l´Amour” (Elogio do amor, Flammarion 2009, ainda não traduzido para o português), de Alain Badiou; é a transcrição de uma breve entrevista do filósofo francês. 

 

Nela, inevitavelmente, Badiou constata que, em nossa cultura, a visão dominante do amor é a de uma espécie de “heroísmo da fusão” dos amantes, que, uma vez consumidos por sua paixão, podem sair de cena (para não se tornar ridículos) ou sair do mundo e morrer (para se tornar sublimes). 

 

Contra essa visão, Badiou define o amor mais como um percurso do que como um acontecimento: segundo ele, o amor precisa durar um tempo porque é “uma construção”.

 

O que constroem os amantes?

 

Geralmente, explica Badiou, “minha experiência do mundo é organizada por minha vontade de sobreviver e por meu interesse particular: vejo o mundo só de minha janela”. 

 

Certo, ao redor de mim, há muitos outros de quem gosto e aos quais reconheço o direito de também sobreviver e promover seus interesses. 

Mas o fato de eu respeitar esses meus semelhantes não muda em nada meu ângulo de visão. É só quando amo que consigo olhar, ao mesmo tempo, por duas janelas que não se confundem, a minha e a de meu amado. A estranha experiência ótica faz com que os amantes reconstruam o mundo, enxergando coisas que ficam escondidas para quem só sabe olhar por uma janela. 

 

Entende-se que o amor assim definido exija tempo. Quanto tempo? Um mês, um ano, uma vida, tanto faz. Consumir-se na paixão pode ser rápido, mas reinventar o mundo a dois é uma tarefa de fôlego.

 

O amor segundo Badiou, em suma, é uma aventura, mas que precisa ser obstinada: “Abandonar a empreitada ao primeiro obstáculo, à primeira divergência séria ou aos primeiros problemas é uma desfiguração do amor. Um amor verdadeiro é o que triunfa duravelmente, às vezes duramente, dos obstáculos que o espaço, o mundo e o tempo lhe propõem”.

 

 

Publicado em Verdes Trigos

publicado por ardotempo às 14:20 | Comentar | Adicionar

Neotráfico

Novo tráfico de escravos?

A sede europeia por jovens jogadores africanos

 

Christoph Biermann e Maik Grossekathöfer

 


 

A Copa do Mundo de Futebol está sendo realizada na África pela primeira vez este ano, mas há muito tempo jovens jogadores africanos são uma mercadoria procurada entre os principais clubes da Europa. Enquanto alguns jovens chegam ao topo, muitos jogadores acabavam nas ruas. Os críticos falam em um novo tráfico de escravos.

 

O barraco tem 3 metros por 3, as paredes são feitas de concreto, o telhado é uma folha de metal corrugado e o mobiliário escasso inclui uma cama e uma lamparina de petróleo. Não há janelas. Também não há eletricidade, nem banheiro, nem água corrente para as cinco pessoas que vivem nesse barraco infestado de moscas em Bamako, capital de Mali.

 

Enquanto o sol se põe, o calor do dia gradualmente diminui, os cães latem e o muezim chama para as orações. Diante do barraco, a mãe cozinha mingau de milho sobre uma fogueira, enquanto as duas filhas se sentam no chão de terra descascando mangas. O pai e o filho conversam sobre o futuro. Ambos estão usando camisas do Milan.

 

O menino, cujo nome é Amadou Keita, disse que certamente pode se imaginar jogando para o Milan, mas se tivesse de escolher iria para o Barcelona jogar como meio-campo. Seu pai afaga sua cabeça e sorri. Um velho que trabalha como porteiro, ele tem dores nos joelhos, nas costas e no quadril.

 

Amadou pega uma bola de borracha e a mantém no ar, fazendo centenas de "embaixadinhas" com os pés esquerdo e direito, alternadamente, então a coloca sobre os ombros, na cabeça e de volta aos pés. A bola não toca o chão nem uma vez.

 

"Eu quero ser profissional. Quero ganhar dinheiro com o futebol para poder dar a minha família uma vida melhor", diz Amadou. "Não quero que meus pais morram neste barraco. Essa é minha missão. Não posso falhar." Ele soa estranhamente sério para um rapaz de 14 anos.

 

Fábrica de sonhos

 

É um longo caminho de Bamako até a Europa, um longo caminho da rua empoeirada no Mali até o Milan, mas Amadou já deu o primeiro passo.

 

Ele se lembra claramente quando, um ano atrás, ouviu falar de um homem branco que estava em Bamako procurando crianças que jogassem bem futebol, meninos rápidos, ágeis e capazes de controlar a bola. O homem, um francês, organizou torneios por toda a cidade, e Amadou jogou em um deles. Afinal o homem escolheu os cinco melhores - dentre 5 mil. Amadou foi um desses cinco.

 

Ele frequenta uma escolinha de futebol nos arredores de Bamako, perto das margens do rio Níger, desde o início de setembro. Treina em um campo gramado e bem cuidado, recebe três refeições por dia e dorme em sua própria cama.

 

A escola de futebol, chamada Maison Bleue (casa azul) por causa da cor de suas paredes, é uma fábrica de sonhos. Os jogadores que chegaram até aqui têm a probabilidade de se tornar profissionais na Espanha, Inglaterra, França ou Alemanha. "Meu pai chorou de alegria quando fui aceito no internato", diz Amadou.

 

Atlético e barato

 

Há muitas escolas de futebol na África. Algumas pessoas as consideram uma bênção, outras uma maldição. Escolas como a de Bamako treinam os jogadores pelos quais os clubes profissionais da Europa manifestaram interesse. Eles são jovens, tecnicamente aptos, atléticos - e baratos.

 

Os clubes europeus têm ido à África em busca de talentos desde os anos 1950, e nos últimos anos a busca se tornou um negócio altamente rentável. Cerca de um em cada quatro estrangeiros que jogam para clubes europeus da primeira divisão vêm da África.

 

É um negócio que joga com a esperança e que é dirigido por empresários sérios. Mas traficantes inescrupulosos também tiram uma parte do bolo.

 

Os africanos são atraídos para a Europa porque acreditam que lá tudo existe em abundância: trabalho, dinheiro, confiança. Alguns jogadores conseguem e tornam-se astros, como Mahamadou Diarra do Real Madrid, Samuel Eto'o da Inter de Milão e Didier Drogba do Chelsea. Mas para a maioria o sonho de conseguir uma vida melhor como jogador profissional nunca se realiza

 

Christoph Biermann / Maik Grosskathöfer (Tradução Luis Roberto Mendes Gonçalves ) - Publicado no Der Spiegel

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Abismos do mundo

 

Hotéis de Passagem (III)

 

João Ventura

 

E do lado de cá do mar, hotéis de passagem de escritores desesperados, atravessando como sombras os abismos deste mundo. O hotel Suède, na rue Vaneau, em Paris, e o hotel Troisi, em Nápoles, onde Pasavento procura dar-se como desaparecido, no romance homónimo de Enrique Vila-Matas. E outros hotéis parisienses já desaparecidos, vítimas de upgrades, de reconversões ou de demolições, como os hotéis habitados por Joseph Roth, cuja obra ando a ler: o Foyot, na rue Tournon, junto ao Jardin du Luxembourg, onde já tinha morado Rainer Maria Rilke, e que Roth abandonou quando os escombros da demolição já se amontoavam por detrás da porta entaipada do seu quarto; e o tétrico hotel Florida, no Boulevard Malesherbes; e o miserável Hotel de la Poste; e o albergue Principautés Unies onde morou Hannah Arendt; e em Zurique, o hotel onde às vezes Robert Walser se ocultava num quarto a que chamava a Câmara de Escrita para Desocupados e aí, sob a luz crepuscular de um candeeiro de petróleo, deixava que a sua mão indecisa o conduzisse pelos territórios do lápis, cujo traço o empurrava lentamente para o desaparecimento, para o eclipse, mimetizando-se para não ser descoberto; e também aquele quarto, não de um hotel mas de um edifício de dois andares, em Kierling, Viena – outrora um sanatório - derradeira passagem de Kafka.

 

Mas talvez o mais absoluto hotel de passagem de que ouvi falar seja aquele, em Port Bou, onde se abrigou Walter Benjamin em fuga para Lisboa, aonde não chegaria nunca porque as suas asas incertas de borboleta nocturna falhariam no último momento, incapazes de o levarem para fora do pequeno quarto onde se hospedara na última etapa da sua vida crepuscular. Também aí havia uma porta entaipada por detrás da qual se adivinhava a lenta irrupção da manhã, que já não chegaria a tempo de iluminar a sua solidão irredutível de ter sido sempre estrangeiro em todos os hotéis de passagem da sua vida e de não ter tido nunca nada, a não ser a pasta preta pousada em cima da mesa de cabeceira, onde guardava os últimos "labirintos de tinta embebidos nos seus cadernos".

 

 

 

 

João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades

Imagem: O túnel - Gilberto Perin, Fotografia (2010)

 

publicado por ardotempo às 12:42 | Comentar | Adicionar

O cara quer ser bombeiro

Entre o diálogo e a bomba


Ferreira Gullar


O atual regime do Irã é um atraso.

 

Trata-se de uma ditadura teocrática intolerante e cruel que não permite aos cidadãos iranianos manifestar-se contra qualquer decisão do governo. As últimas eleições, que mantiveram no poder Ahmadinejad, foram descaradamente fraudadas e todas as manifestações populares de protesto, brutalmente reprimidas por tropas militares, sendo seus líderes, presos e condenados à morte.

 

Às vésperas da visita de Lula a Teerã, cinco deles haviam sido executados. O fanatismo religioso e o ódio aos discordantes é de tal ordem que os cega, a ponto de negarem, perante o mundo, fatos históricos incontestáveis como o massacre de judeus nos campos de concentração nazistas e a destruição das Torres Gêmeas.

 

Tamanha insensatez e intolerância, que beiram o ridículo, resultaram no isolamento do Irã, mesmo no Oriente Médio. Não obstante tudo isso, o presidente Lula tomou a iniciativa de romper esse isolamento e oferecer seu apoio fraternal ao governo de Ahmadinejad. É impossível não perguntar: mas por quê? É, sem dúvida, uma atitude surpreendente, difícil de entender.

 

Vejam bem: o Brasil não tem nem nunca teve vinculações estreitas, de qualquer tipo, com o Irã. Não há nenhum objetivo, seja político, seja comercial, que justifique arrostarmos com tamanho desgaste ao apadrinhar um regime repressor e movido pelo fanatismo. Pior ainda: o apadrinhamento de Lula a Ahmadinejad implica a tentativa de justificar o projeto iraniano de fabricar armas atômicas, contrariando assim o Tratado de Não Proliferação, de que, como o Brasil, é signatário.

 

Lula faz que não vê, mas não pode ignorar as artimanhas do regime iraniano para escapar à fiscalização da Comissão de Energia Atômica, fingindo disposição de dialogar quando, de fato, tudo o que pretende é ganhar tempo e dar prosseguimento a seu projeto nuclear militar.Assim foi que, diante de uma nação brasileira perplexa, Lula promoveu um encontro em Teerã com o presidente iraniano e o premiê da Turquia para produzir um suposto acordo que mostrasse a boa vontade do Irã em resolver o impasse. Mal o assinaram (nele, o Irã prometia entregar 1.200 kg de urânio para serem enriquecidos na Turquia), um porta-voz iraniano declarava que o país continuaria a enriquecer urânio em suas centrífugas. Que sentido tinha então aquele acordo, se o objetivo era o Irã desistir de enriquecer urânio e assim inviabilizar a construção da bomba?

 

Sabe-se que o próprio Lula se surpreendeu com essa declaração do governo iraniano, mas, de novo, fechou os olhos e insistiu em avalizar as boas intenções do Irã, enquanto criticava os membros do Conselho de Segurança da ONU, que se dispunham a impor-lhe sanções. Mas isso é coisa sabida e debatida. Difícil é entender por que Lula tomou essa posição, arvorando-se em defensor de um regime antidemocrático e ideologicamente primário, comprometendo desse modo o prestígio de nossa diplomacia, por todos respeitada, graças ao equilíbrio e isenção com que sempre atuou.

 

 

Como pode Lula afirmar que está aberto ao diálogo um regime fundamentalista que não tolera divergências? Todas as tentativas de entendimento com o Irã, promovidas pela ONU, fracassaram. Mas, Lula, sempre tão esperto, quando se trata de Ahmadinejad, faz-se de tolo, confia em tudo o que ele diz. Custa crer.Chego a pensar que a explicação esteja em certas declarações suas, como aquela em que negou aos Estados Unidos e à Rússia autoridade para impedir que o Irã fabrique armas atônicas, uma vez que ambos possuem arsenais nucleares. Com isso, desautorizou o Tratado de Não Proliferação e admitiu implicitamente que qualquer país - inclusive o Brasil - tem o direito de fazer a bomba. Seria essa sua verdadeira intenção, embora nossa Constituição o proíba? Talvez não.

 

Mas, no Fórum Mundial de Aliança das Civilizações, ao afirmar que o Brasil deseja um mundo sem armas nucleares, voltou a defender a tese, como se não fazer a bomba fosse uma concessão do Irã. E insistiu na necessidade de se preservar a paz no Oriente Médio. Mas não é o Irã que promete pôr fim ao Estado de Israel? Pretende fazê-lo pelo diálogo? 


Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL

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Sábado, 05.06.10

Transparente

Momentos


José Saramago


Há momentos assim na vida: descobre-se inesperadamente que a perfeição existe, que é também ela uma pequena esfera que viaja no tempo, vazia, transparente, luminosa, e que às vezes (raras vezes) vem na nossa direcção, rodeia-nos por breves instantes e continua para outras paragens e outras gentes.

 

 

 


In Manual de Pintura e Caligrafia, Ed. Caminho, 6.ª ed., p. 291 - José Saramago

(Publicado no blog Outros Cadernos de Saramago)

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Sexta-feira, 04.06.10

BRASIL - CAMISA BRASILEIRA

Nos bastidores de um futebol que ninguém vê


Um ensaio fotográfico original, que traz o olhar inteiramente voltado para os bastidores do futebol, o universo que ninguém mais vê atualmente, é o tema de Brasil Camisa Brasileira, exposição de Gilberto Perin que inicia no dia 16 de junho em Porto Alegre, no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo (Rua dos Andradas, 1237 Centro, Porto Alegre RS Brasil).

 
Esse novo projeto fotográfico de Gilberto Perin, no qual as 50 fotografias da mostra são parte integrante, inclui um livro de arte em grande formato, que será lançado ainda esse ano com cerca de 80 fotografias de seu trabalho desenvolvido durante três meses acompanhando o Grêmio Esportivo Brasil, da cidade Pelotas (RS Brasil), na disputa pelo campeonato da Segunda Divisão do futebol gaúcho. A exposição e o livro têm a curadoria e a edição do artista plástico Alfredo Aquino, texto do escritor Aldyr Garcia Schlee (no livro) e apresentação do jornalista Ruy Carlos Ostermann.

Projeto inscrito junto ao MinC- PRONAC nº 10 4301

 

 


 


O fotógrafo Gilberto Perin se propôs a documentar os dramas humanos, as paixões, as emoções que os jogadores de futebol sentem quando estão nos vestiários – antes, durante e depois dos jogos - atualmente um espaço inatingível para torcedores e igualmente à imprensa especializada, que somente tem tido acesso bastante controlado pelos interesses empresarais e publicitários que redefiniram o universo do espetáculo.

 
O fotógrafo Gilberto Perin comenta sobre sua ideia:


A inspiração veio dos tempos antigos, até algumas décadas atrás, quando, no intervalo e ao final do jogo, os repórteres transmitiam o som dos vestiários, diretamente com a emoção expresiva dos jogadores, falando após as vitórias ou as derrotas. E nos jornais dos dias seguintes, os fotógrafos revelavam a tensão e a felicidade de vitoriosos ou derrotados em seu local local mais íntimo, o vestiário do futebol”.

 

 

 

 
Depois da negociação e autorização escrita pela direção do Grêmio Esportivo Brasil, o fotógrafo registrou o ensaio fotográfico em jogos de cidades como Pelotas, Rio Grande, Camaquã e Livramento (todas cidades no Rio Grande do Sul).

 
O curador da exposição, Alfredo Aquino, comenta sobre esse olhar do universo do trabalho (e das emoções) dos jogadores de futebol:


É um ensaio fotográfico incomum, priorizando a estética, com o olhar voltado para os bastidores, não para o campo do jogo, não para a ação do fato esportivo, Tampouco sobre o futebol-mediático do mega-espetáculo televisivo e sim sobre os bastidores profundos e secretos do futebol mais popular e um tanto mais simples do que aquele que todos vêem na tevê - sobre os vestiários, sobre as carências do futebol da segunda divisão, sobre as limitações, os dramas humanos dos machucados, dos expulsos, os desconhecidos vestiários modestos e exíguios, sobre as crenças, as superstições, a religiosidade destes trabalhadores que transitam no semi-anonimato, longe dos holofotes do espetáculo”.

 

 

                                                                                                                                                                                                                                        
Veja o site do fotógrafo Gilberto Perin

                                                                                                                                                                                                                                        
Centro Cultural CEEE Erico Verissimo
Exposição BRASIL - CAMISA BRASILEIRA
Fotografias de Gilberto Perin
Curadoria de Alfredo Aquino
Ampliações fotográficas vintage: Luiz Aureliano
(Oficina de Impressão)
Mostra de 16 de junho a 24 de julho de 2010
Rua dos Andradas, 1237 Centro
Porto Alegre RS Brasil

 

 

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Quinta-feira, 03.06.10

TREVA ALVORADA - Lançamento nacional dia 10 de junho

Novo livro de poesia de Mariana Ianelli

 

 



NA TEMPESTADE

 

Não é teu pesadelo

Fracassar no fim do caminho.

 

O passo torto

Sempre te fortaleceu

E um murmúrio

Dois palmos acima do silêncio

Na noite velha te dizia: 

 

Irás naufragar, 

Mas não tenhas medo.

 

Essa voz não era a de um anjo

Nem o teu horror

Emprestado da bíblia.

 

Sagrado para ti era o mar

Da cor do zinco, e sentir

As âncoras desprendidas,

Uma proa bordejando

E o teu corpo demasiado honesto

Para ser levado a juízo.

 

Tinha o nome do orgulho

O animal que te movia,

A que os outros chamavam injúria,

Extravagância de criatura, 

Desatino.

 

Agora que o teu navio

Vai ao fundo do fundo

Uma praia selvagem 

Ladeia o dia seguinte.

 

© Mariana Ianelli - Treva Alvorada, Editora Iluminuras, 2010

 

Treva Alvorada

Mariana Ianelli

Poesia - 128 páginas

Capa: Arcangelo Ianelli (Pintura)

ISBN nº 978-85-7321-3241-9

Editora Iluminuras, 2010

Valor: R$ 35,00

 

Você já pode encontrar na Livraria Cultura, ou encomendar por internet:

 

 


 

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Quarta-feira, 02.06.10

Arqueologia do século passado

De um tempo em que ainda se fumava

 

 

 

Eric Tenin - Tabac - Fotografia (Paris França), 2010

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Uma palavra

HÁ AR

Uma palavra apenas

apontada pela memória

um gesto

uma lembrança

maior que o gesto

o golpe do olhar

vestígios

colados

há ar

uma pintura

mil desenhos

mil dias

lágrimas

o olhar 

há ar

na memória

no gesto

na palavra 

uma palavra apenas.

 

 

publicado por ardotempo às 15:47 | Comentar | Adicionar

RINOCERONTES

 

Apuntes de mudanza

 

Enrique Vila-Matas

 

- 1. LLEGADO EL DÍA Y LA HORA, ADVERTIDOS POR TODO EL MUNDO DE QUE UN CAMBIO DE CASA ERA EXPERIENCIA TRAUMÁTICA, ESPERÁBAMOS ATERRADOS A LA GENTE DEL GRAN CAMIÓN. LUEGO NO PASÓ NADA. O QUIZÁS SÍ. HORAS DESPUÉS, MI MESA DE TRABAJO SE HALLABA RODEADA POR 200 CAJAS DE LIBROS. Y UNO, COMO DIGNO CAPITÁN DE SU BARCO PERSONAL, SIN ALTERARSE, ESPERANDO EL MOMENTO EN QUE LE SUGIRIERAN QUE APAGARA EL ORDENADOR, SEGUÍA ESCRIBIENDO. ME DEDIQUÉ HASTA EL FINAL A TOMAR NOTAS QUE IMAGINABA QUE ERAN CAJAS. DOS, CUATRO NOTAS. CINCO CAJAS. APUNTES DE MUDANZA, DECIDÍ LLAMARLOS. EL GÉNERO PARECE APROPIADO PARA OCUPAR EL TIEMPO DURANTE LOS TRASLADOS DE DOMICILIO. APUNTES SOBRE MI RELACIÓN CON LOS RINOCERONTES. APUNTES CON RECUERDOS SÚBITOS DE UNA INFANCIA A LA QUE, AL IGUAL QUE UNA VIEJA CASA, HABÍA VISTO DIFUMINARSE PARA SIEMPRE UN DÍA. ¿POR QUÉ LA INFANCIA A LA HORA DE UN TRASLADO? ¿Y POR QUÉ LOS RINOCERONTES?

 

- 2. UNA SEMANA ANTES DE LA TAN TEMIDA MUDANZA, DEL TRASLADO EN BARCELONA A OTRO BARRIO -TODA UNA METÁFORA DEL TRÁNSITO A OTRA VIDA-, REGRESÉ POR UNOS DÍAS A LA NO MENOS TEMIDA BUENOS AIRES, LA CIUDAD A LA QUE, CUATRO AÑOS ANTES Y TAMBIÉN EN UN MES DE MAYO, HABÍA ACUDIDO PARA UN TRABAJO Y POR POCO ME MUERO. HABÍA ESCRITO, HACÍA CUATRO AÑOS, UNAS LÍNEAS ACERCA DE TODO AQUELLO: "NO ME HAN QUEDADO MUCHAS GANAS YA DE VOLVER A BUENOS AIRES, DONDE ESTUVE TRES DÍAS SIN APENAS SALIR DE MI CUARTO. LO MÁS CURIOSO ES QUE HASTA ME JACTÉ DE HABERME HECHO FUERTE EN EL HOTEL RECOLETA DE LA CALLE VICENTE LÓPEZ Y DE NO HABER PISADO LAS CALLES DE LA CIUDAD EN NINGÚN MOMENTO...".Y SÍ. ME JACTÉ DE VIAJAR SIN MOVERME DE MI HABITACIÓN, PERO EN REALIDAD ESTABA HACIENDO SÓLO LITERATURA Y ENCUBRIENDO UNA DURA REALIDAD QUE ME RESISTÍA A ACEPTAR: ESTABA SIMPLEMENTE MUY GRAVE. EN FIN. CREÍ QUE, DESPUÉS DE AQUELLO, NUNCA VOLVERÍA A BUENOS AIRES, PERO, UNA SEMANA ANTES DE LA TAN TEMIDA MUDANZA, TERMINÉ POR EMPRENDER ESE REGRESO INESPERADO A LA ARGENTINA Y A LA MISMA FERIA DEL LIBRO A LA QUE HABÍA ACUDIDO HACÍA CUATRO AÑOS Y NO PUDE EVITAR UN SOBRESALTO AL DESCUBRIR QUE ME HABÍAN COLOCADO EN EL MISMO HOTEL DE LA VEZ ANTERIOR, EN ESTA OCASIÓN EN UN CUARTO DE LA PLANTA NOVENA, UNA HABITACIÓN MUY LUMINOSA QUE DABA DIRECTAMENTE AL OTRO BARRIO O, MEJOR DICHO, AL CEMENTERIO DE LA RECOLETA. ERA SIN DUDA UNA VISTA HERMOSA PORQUE A ESE CEMENTERIO LE SOBRA BELLEZA, PERO NO DEJABA DE SER TAMBIÉN UNA VISTA ALARMANTE. CUANDO ME LLAMÓ RICARDO PIGLIA, LE COMENTÉ LO QUE ME ESTABA SUCEDIENDO Y, TRAS UN BREVE SILENCIO, DIJO:-PUES MENOS MAL QUE HACE CUATRO AÑOS NO TE DIERON ESA VISTA.

 

- 3. HAY UNA HISTORIA DEL GRAN PIGLIA QUE ME RECUERDA A AQUELLA CANCIÓN DEL "MIG AMIC" QUE DEDICÓ PERET A SU PADRE. O VICEVERSA: HAY UNA CANCIÓN DEL GRAN PERET QUE ME RECUERDA A PIGLIA. "MI PADRE, DIJO RATLIFF, FUE UN NARRADOR EXCEPCIONAL. VENDÍA MÁQUINAS DE COSER POR EL CAMPO (...). ERA CAPAZ DE VENDER UNA MÁQUINA INSERVIBLE USANDO EL ARTE HIPNÓTICO DE LA NARRACIÓN. NARRAR, DECÍA MI PADRE, ES COMO JUGAR AL PÓKER, TODO EL SECRETO CONSISTE EN PARECER MENTIROSO CUANDO SE ESTÁ DICIENDO LA VERDAD" (EN OTRO PAÍS, RICARDO PIGLIA).

 

- 4. DE NIÑO, SOLÍA CONFUNDIR LOS RINOCERONTES CON LOS HIPOPÓTAMOS, LO QUE SACABA DE QUICIO A MI PADRE, QUE NO SE CANSABA DE DECIRME QUE LOS RINOCERONTES ERAN MÁS INTERESANTES, AUNQUE YA SÓLO FUERA PORQUE EN EL SIGLO XVI HABÍAN TENIDO EL HONOR DE SER DIBUJADOS POR DURERO. ¿QUIÉN ERA DURERO? ESTE MISTERIO CRUZÓ MI INFANCIA Y LO ATRAVESÓ JUNTO A OTRO ENIGMA, NO MENOS GRANDE: LA EXTRAÑA ACTITUD DE MI PADRE, CUYA OBSTINACIÓN POR LOGRAR QUE DISTINGUIERA ENTRE RINOCERONTES E HIPOPÓTAMOS -COMO SI ESO FUERA A AYUDARME DE FORMA FUNDAMENTAL EN LA VIDA- LE EMPUJÓ EN EL INVIERNO DE 1961 A LLEVARME NO SÉ CUÁNTAS VECES A VER AL OESTE DE ZANZÍBAR, PELÍCULA CON MUCHOS RINOCERONTES, AUNQUE TAMBIÉN CON HIPOPÓTAMOS. PERO MI PADRE NO SÉ CÓMO LOGRABA QUE YO VIERA SÓLO RINOCERONTES. HOY SOSPECHO QUE SU OBSTINACIÓN -APARTE DE BUSCAR QUE, TARDE O TEMPRANO, COMO UN NIÑO DIGAMOS NORMAL, TERMINARA ENLOQUECIENDO CON ESOS PAQUIDERMOS DE ATERRADOR CUERNO- PUDO ESTAR RELACIONADA CON EL VIAJE MÍTICO Y LIBERADOR QUE POR ESAS MISMAS FECHAS ÉL HIZO A PARÍS. EN ESA CIUDAD, ALEJADO POR UNOS DÍAS DEL SÓRDIDO CLIMA MORAL DE LA DICTADURA, VIO EL RINOCERONTE, UNA OBRA DE TEATRO DE IONESCO EN LA QUE EN EL PROGRAMA DE MANO -QUE NO POR NADA HEREDÉ RECIENTEMENTE POR DECISIÓN EXPLÍCITA SUYA- SE ADVERTÍA QUE, AL CONVERTIRSE LAS IDEOLOGÍAS EN IDOLATRÍAS, SE PERJUDICA SIEMPRE A LA CONVIVENCIA, PUES "UN RINOCERONTE NO PUEDE ENTENDERSE CON AQUEL QUE NO LO ES, UN SECTARIO CON AQUEL QUE NO PERTENECE A SU SECTA...". NI QUE DECIR TIENE QUE DESDE QUE HEREDARA AQUEL SABIO PROGRAMA DE MANO, SIGO A RAJATABLA LAS SILENCIOSAS LECCIONES QUE ENTIENDO QUISO DARME MI PADRE AL PONERME EN GUARDIA CONTRA EL RINOCERONTISMO, EL MAL DE LA BARBARIE MODERNA QUE DENUNCIARA IONESCO Y QUE HOY ESTÁ DE TANTA O MÁS ACTUALIDAD QUE ENTONCES.

 

- 5. ¿POR QUÉ EN MEDIO DE UNA MUDANZA, RODEADO DE 200 CAJAS DE LIBROS, SE TOMAN NOTAS SOBRE LA BARBARIE Y SE RECUERDA UNA OBRA DE IONESCO EN LA QUE LOS HABITANTES DE UNA PEQUEÑA CIUDAD SE TRANSFORMAN EN RINOCERONTES A MEDIDA QUE EL CONFORMISMO Y LA INMOVILIDAD SE VAN APODERANDO DE ELLOS? ¿Y POR QUÉ EN MEDIO DE UNA MUDANZA UNO ACABA ACORDÁNDOSE DE AQUEL VIAJE QUE HIZO CON SU PADRE AL SUR, CON VISITA INESPERADA A PUERTO BANÚS, DONDE UN MEDIODÍA VIMOS LA ESCULTURA DE DALÍ CONOCIDA COMO RINOCERONTE VESTIDO CON PUNTILLAS Y MI PADRE, SIMULANDO QUE SE SACABA EL SOMBRERO, MUSITÓ LA ORACIÓN DEL ÁNGELUS? TODO ESTO ANOTABA O ME PREGUNTABA EL OTRO DÍA EN PLENA MUDANZA. Y PARA CUANDO QUISE DARME CUENTA, EMPEZARON A CARGAR HACIA LA CALLE LAS 200 CAJAS DE LIBROS Y ALGUIEN ME CONMINÓ A APAGAR EL ORDENADOR. CESARON LOS APUNTES DE MUDANZA Y NOTÉ QUE LA VIEJA CASA DE LA FICCIÓN COMENZABA TAMBIÉN ELLA A TRASLADARSE A OTRO ÁMBITO.

 


 

Enrique Vila-Matas - Publicado em El País

 

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publicado por ardotempo às 03:36 | Comentar | Adicionar

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