Segunda-feira, 21.06.10

Obrigado, Saramago

 

"A arte é tudo. Tudo o resto é nada"

 

Isabel Coutinho / Cláudia Sobral

 

O avião estava prestes a cair. Lá dentro, entre os passageiros, estava o escritor brasileiro Jorge Amado. No momento em que todos se agitavam com medo de morrer pediu os jornais à sua mulher. "Estamos prestes a morrer e você quer ler os jornais?", surpreendeu-se Zélia Gattai. Jorge Amado queria morrer informado sobre o que se passava no mundo. Foi esta a história com que Pilar del Río prestou a homenagem final ao marido, no discurso que fez ontem na antecâmara do crematório, no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa.

 

"E tu, Saramago, hoje ficas a saber", continuou Pilar, agitando as mãos. A cremação do escritor foi vedada aos jornalistas e esta é a versão contada por quem esteve dentro da sala, por isso, as palavras podem não ser exactas. "O que se passa no mundo é que todos os meios de comunicação falam de ti" e dizem que morreu um homem bom e honesto, um bom escritor, um ser humano excepcional, um lutador. "E nós não temos o direito de chorar, de derramar lágrimas, porque somos os privilegiados que te conheceram. Que chorem os milhões de pessoas que não tiveram a sorte de passar contigo os momentos de vida."

 

Do lado de fora, um cordão policial não deixava ninguém aproximar-se das portas de vidro fechadas. "A luta continua!", gritavam os mais velhos entre a multidão que enchia o cemitério até à porta de entrada, alguns com os punhos cerrados. "Saramago amigo, o povo está contigo", ouvia-se a seguir. E despontavam livros, no final de braços mais jovens. Quando começou a sair fumo da chaminé do crematório, perto da 13h30, ouviram-se muitas palmas. 

 

Horas antes, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, em Lisboa, o professor e ensaísta Eduardo Lourenço colocou em destaque, junto ao caixão do escritor, um exemplar de O Memorial do Convento. Aconteceu num dos momentos em que a comunicação social não podia estar presente, mas a escritora Lídia Jorge assistiu. Lourenço, mais tarde, explicou que o fez porque foi a obra, "surpreendente e imprevisível", que pôs Saramago na história da literatura mundial. Ele deu "uma dimensão mítica a Portugal que não tínhamos senão no passado", explicou. "Camões pertence a essa constelação, mas está no passado, Fernando Pessoa está no presente mas também está no passado. Saramago alargou o nosso pequeno país à dimensão do mundo."

 

Já passava das 11h00, quando no Salão Nobre, o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, iniciou os discursos. "As cinzas de José Saramago descansarão na cidade de Lisboa", afirmou. Mas a sua obra é "património de toda a humanidade" e "a sua mensagem, o seu desassossego", continuarão "a desinquietar todos aqueles que a lerem. Obrigado, Saramago". A seu lado, estavam o primeiro-ministro José Sócrates, os ex-presidentes da República general Ramalho Eanes e Mário Soares, membros do actual Governo e muitas figuras da cultura portuguesa. A filha e os netos de Saramago encontravam-se todos juntos, ao pé de Pilar, que, durante os discursos, emocionada, olhava várias vezes, enlevada, para o marido. 

 

O professor universitário Carlos Reis abordou o percurso literário e o legado do autor de Caim. Um dos momentos mais bonitos do discurso foi quando convocou para aquela sala as personagens criadas pelo único Prémio Nobel da Literatura português. E, citando Eça de Queirós, afirmou: "A arte é tudo, tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade do mundo."

 

Jerónimo de Sousa, o secretário-geral do PCP, disse que Saramago "podia ter sido só um escritor maior da língua portuguesa, mas foi mais do que isso". Foi um homem que acreditou nos homens, mesmo quando os questionava. 

 

Foi a vez dos discursos que mais emocionaram a sala. Para María Teresa Fernández de la Vega, vice-representante do Governo espanhol, José Saramago "fez soar as cordas da alma". Era "uma dessas poucas pessoas que sabem recordar-nos que podemos e devemos ter grandes sonhos, tão grandes que nunca os percamos de vista". E ele sonhou. "Sonhou com uma terra livre - livre de opressão, de miséria e de perseguição. Sonhou com um mundo em que os fortes eram mais justos e os justos eram mais fortes." Todos nos "sentimos órfãos da sua figura tão querida e das suas palavras tão confortantes, órfãos de quem tantas vezes foi a nossa voz". Muitos olhos, na sala, se encheram de lágrimas.

 

Por fim, a ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, lembrou que José Saramago enfrentou dogmas. "Não tinha fé em Deus, mas certamente Deus teve fé nele.

 

Lá fora, quando já havia terminado a cerimónia, todos olharam para cima e bateram palmas sem parar. Era Pilar del Río, que aparecia ao balcão, ao lado de Violante Matos, a filha de Saramago, e da violoncelista Irene Lima que interpretara Bach. Ela vestia a roupa que Pilar usou no banquete do Prémio Nobel 1998, em Estocolmo. Na barra do vestido vermelho, uma das frases de O Evangelho Segundo Jesus Cristo: "Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti, Quero estar onde estiver a minha sombra, se lá é que estiverem os teus olhos."

 

À saída, o escritor valter hugo mãe considerou que na cerimónia fez falta o Presidente da República. "Sei de tanta gente que gostava de estar aqui representada e não esteve. Cavaco Silva tinha que estar aqui. Não é possível receber o Papa daquela maneira e não se despedir de José Saramago de alguma forma. Sinto-me indignado", acrescentou o Prémio José Saramago 2007, para quem a grande lição do Nobel "foi contra a indiferença". 

 

Ao fundo, o sítio onde esteve pousado o caixão, provocava uma imensa sensação de vazio, apesar dos cravos ali pousados. Para sempre, na nossa memória, ficará a frase lembrada no final do discurso de Gabriela Canavilhas, a frase que escreveu anteontem um amigo a Pilar del Río: "Não há palavras, Saramago levou-as todas...

 

Isabel Coutinho / Claudia Sobral - Público

 

tags:
publicado por ardotempo às 14:45 | Comentar | Ler Comentários (3) | Adicionar

"Nada está pronto, até que você as veja"

 

Las profecías de Mapplethorpe

 

Rafa Cervera 

 

Patti Smith, antigua y eterna compañera del fotógrafo, escribe las memorias de ambos desde que se conocieron en Nueva York en los años sesenta y que el artista le encargó poco antes de morir. El libro es un relato conmovedor del afán de unos seres dispuestos a poner sus almas al servicio del arte, inspirados por Rimbaud, Dylan, Genet y otros nombres idolatrados.

 

 

 

 

Nada está terminado hasta que tú lo ves, le decía Robert Mapplethorpe a Patti Smith cuando, esperando su opinión, él le mostraba las que entonces eran sus primeras fotos. Ambos eran esos niños a los que alude el título, dos talentos intentando florecer en el Nueva York de finales de los sesenta, luchando casi con desesperación por plasmar su arte y obtener un reconocimiento que nadie se atrevería a negarles hoy. Ese Nueva York bohemio, con el hotel Chelsea, el Max's Kansas City, St. Mark's Place y la galaxia Warhol como puntos cardinales, es el escenario por el cual transcurre este deslumbrante texto biográfico. A través de sus páginas, Smith rinde homenaje al que fuera su amante, cómplice y, por encima de todo, alma gemela. Éramos unos niños cuenta ese trayecto vital, tomando la estrecha relación entre Mapplethorpe y la narradora coprotagonista como nudo. Muertos de hambre y también llenos de ambición, se apoyaron mutuamente para encontrar sus propios senderos artísticos. Así, descubrimos cómo Mapplethorpe le hablaba insistentemente a Smith de su potencial como cantante de rock & roll; por su parte, fue ella quien le convenció para que abandonara los collages y comenzara a tomar sus propias fotografías. Los desencuentros -motivados en muchos casos por la progresiva inmersión del fotógrafo en el submundo gay que alimentó el lado más chocante de su trabajo- enrarecieron en ocasiones la relación. La prosa de Smith es firme, no se deja llevar por reproches ni sentimentalismos, y cumple de manera formidable el objetivo buscado: hablar del lado humano de un artista que fue polémico y que en más de una ocasión se ha visto estrangulado por la naturaleza de su propia obra. "Robert elevó aspectos de la experiencia masculina", explica Smith, "imbuyendo a la homosexualidad de misticismo. Como dijo Cocteau de Genet, su obscenidad nunca es obscena".

 

 

 

 

La necesidad de escribir sobre su antiguo aunque en realidad eterno compañero llegó casi en el mismo instante en el que sonó el teléfono de la casa de la familia Smith y Edward Mapplethorpe comunicó el fallecimiento de su hermano, una fría mañana de marzo de 1989. Con una voz tan poderosa como la que brota de sus poemas y canciones, Smith nos muestra ese itinerario compartido, trufado de anécdotas y salpicado por personajes tan irrepetibles como el momento histórico -que va de 1967 a 1978- en el que se desarrolla el núcleo del texto. Las noches en la trastienda del Max's Kansas City, donde el apolíneo Mapplethorpe es deseado por la corte de Warhol, a la vez que la andrógina Smith es completamente ignorada, hasta que decide cortarse el pelo a lo Keith Richards y logra captar la caprichosa atención de los ilustres parroquianos. Los encuentros con Corso, que citando a Mallarmé asegura que los poetas no terminan los poemas, los abandonan; y con Ginsberg, que intentó ligar con ella al confundirla con un muchacho mientras ella se relamía ante un sándwich que no podía pagar. Un encuentro con una desolada Janis Joplin a la que Smith piropea llamándola "perla", palabra que se convertirá en el título del álbum póstumo de la tejana. Pero por encima de estas y otras anécdotas, Éramos unos niños es también el sólido y emotivo relato de la relación simbiótica entre dos personajes que no parecían estar completos el uno sin el otro. Y nos muestra el conmovedor afán de unos seres dispuestos a poner sus almas al servicio del arte, aferrados a sus respectivos sueños, inspirados por Rimbaud, Dylan, Genet y otros nombres idolatrados.

 

Smith cuenta cómo se turnaban para entrar a las exposiciones museísticas que les interesaban, porque el dinero no alcanzaba para dos entradas. En una ocasión, cuando ella, maravillada, se disponía a narrarle las obras que había visto, él atajó diciendo: "Algún día entraremos juntos a ver las exposiciones y, además, la obra expuesta será nuestra". Ninguno de los dos imaginaba entonces que sus vidas se convertirían en existencias legendarias, una historia digna no sólo de ser contada sino también de ser admirada. Una apasionada y apasionante odisea vivida en una época en la que comprometerse con la necesidad del propio era casi un acto heroico. Consciente, quizá, de que los días en los que intercambiaron sus energías forman también parte de su obra, poco antes de fallecer Mapplethorpe le pidió a Smith que escribiera la historia de ambos. Ahora, aquella vieja frase, nada está terminado hasta que tú lo ves, se revela como algo profético. Porque la historia ha sido contada a través de la mirada y el verbo de la única persona capaz de elevarla al nivel que merece.

 

 

 

 

Rafa Cervera - Publicado em Babelia

Imagens: Robert Mapplethorpe

 

publicado por ardotempo às 14:15 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

Pesquisar

 

Junho 2010

D
S
T
Q
Q
S
S
1
2
3
4
5
6
7
8
9
11
12
15
25
26
30

Posts recentes

Arquivos

tags

Links