Sábado, 19.06.10

"A Pilar, como se dissesse água"

 

Luto em vermelho

 

Helena Ortiz

 

A amiga me liga pela manhã para me contar. Foi assim que eu soube, por telefone, como se recebe a notícia da morte de um parente. Estamos viúvas, ela disse, e chorava. Mas eu sou forte, ainda consegui dizer à doutora que não tomo remédios, não tenho deficiência física e a pressão é boa. E daí, o que importava isso? José Saramago estava morto, e eu pensava primeiro no mundo, depois em Pilar del Rio, porque a ela sim foi dada a sorte de ter se tornado a amada do escritor. Foi para ela que ele escreveu a mais linda dedicatória que já vi: "A Pilar, como se dissesse água". E será ela, certamente, quem mais sentirá a falta dele.

 

Temos os livros, e a eles voltaremos quantas vezes quisermos. Ela não. Não mais a convivência em Lanzarote, não lerá os originais em primeira mão, não trocará com ele as carícias possíveis, não recolherá os silêncios em que trabalhava.

 

Para nós foi-se o grande escritor, um humanista que se teimava comunista, o anti-clerical por natureza (e acho que se divertia com isso). Um homem de talento, mas de igual coragem, que se aprendeu e se fez homem em condições difíceis, sem nunca esquecer. Mas para ela foi-se não só o grande escritor, o homo politicus que apontava os vícios neoliberais, o desvario belicista, a intolerância, foi-se o homem que amava, deixando mudos os espaços do entendimento, a casa, a sala, a cama, a intimidade. Escrevo isso porque uma das coisas que mais me chamava atenção na obra de Saramago era sua consideração pelas mulheres, pelo sentimento feminino que tão bem apreendeu, pela importância que reconhecia e conferia à mulher. Daí porque imagino com que delicadeza devia tratar sua Pilar.

 

Depois pensei em mim, na minha própria tristeza, na certeza de saber que perdi aquele que era meu deleite, fonte de compreensão, orgulho da espécie, que eu sempre achei que o artista deve ter um papel político, deve dizer o que pensa, deve assumir o que sente. Ele era assim. E quem mais? Me diga por favor que eu quero saber.

 

Em casa, não pude fazer mais nada que pensar, pensar em que talvez o poema de Idea Vilariño postado há dois dias, Pobre Mundo, tenha vindo ao encontro desse acontecimento tão temido, tão indesejado e tão previsível. Que ao morrer o escritor, o poeta, o incansável lutador, nossa voz ficou ainda mais fraca porque era ele, com sua coragem e lucidez, que nos abria os olhos para os equívocos dos caminhos obscuros que aceitamos percorrer.

 

E então fui à cozinha, e chorando sobre pimentões vermelhos e berinjelas pensei no luto vermelho daqueles que não podiam nem chorar, que precisavam se esconder para prosseguir, calar a respiração a bem de se manterem vivos, retrair-se para avançar, e sempre engolir o choro. Agora podemos chorar alto, falar palavrão, reacender as dúvidas. Mas porque aprendemos (ou ainda não?) a lição de Saramago: "Já estamos a viver neste planeta como sobreviventes. A cada dia que amanhece temos que fazer o possível para sobreviver. E devemos fazê-lo como insurgentes sistemáticos".

 

Talvez assim descubramos, cada um de nós, o segredo da ilha desconhecida.

 

 

 

 

 

 

 

Helena Ortiz - Publicado no blog Integrada e Marginal

 

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publicado por ardotempo às 15:30 | Comentar | Adicionar

Colocar palavras

 

Extensão do Mito

 

Mariana Ianelli

 

 

 

Contam que ele desceu

Ao vale dos esquecidos

E cantou acima do suplício.

 

Que apaziguou o vento,

Estufou as vinhas,

De olhos fechados

Seduziu a serpente

Como se replantasse

O primeiro jardim.

 

Que foi odiado, despedaçado,

Lançado ao mar,

Para nunca mais

Uma voz se atrever à harmonia.

 

Mas não contam que uma mulher

Reuniu seus fragmentos

E encantou as mulheres da ilha,

Que assim Orfeu amou Eurídice, 

Finalmente em corpo e lira.

 

 

 

 

Mariana Ianelli - Treva Alvorada, Iluminuras - 2010

 

 

 

 

 

 

 

publicado por ardotempo às 14:22 | Comentar | Adicionar

O que importa e o que não importa

Desastres para a Humanidade

 

Ocorreram recentemente dois fatos verdadeiramente importantes e que determinam consequencias futuras para a Humanidade. A lamentável perda da presença e da voz de José Saramago e o fatal desastre ecológico no Golfo do México, ocasionado pela incompetência, pela ganância e pela estupidez de empresas petroliferas, de empreiteiras e seus acionistas, profundamente distanciados dos interesses da preservação ambiental. Fatos que se mostrarão incontornáveis nos próximos meses e anos.

 

Nada a ver com um outro evento inócuo, entorpecedor, inconsequente, dissipador e pródigo, que acontece ao sul do continente africano.

Um evento, esse sim, verdadeiramente desimportante para o futuro da Humanidade. O que também contribui largamente para acentuar os desastres na região, uma vez que passado o tempo de sua ocorrência, qual será o seu legado concreto? Por quê tanto dinheiro jogado fora, tantas atenções e tempo desperdiçados, se permanecerão as carências ao desenvolvimento e à cultura, as dificuldades sanitárias, a miséria, a violência, a disseminação das epidemias, a desigualdade econômica e social entre brancos e negros, as extensas lacunas de educação?

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publicado por ardotempo às 11:29 | Comentar | Adicionar

Filosofia

Pensar, pensar


Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, nao vamos a parte nenhuma.


José Saramago, 2008

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publicado por ardotempo às 11:24 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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