Domingo, 06.06.10

Regents Hotel, 44 Rue Madame

 

Hotéis de Passagem (IV)

 

João Ventura

 

E já agora o meu hotel pessoal de passagem, o Excelsior, na rue de Cujas, em Paris, onde havia, também, um quarto misteriosamente parecido com o do conto de Cortázar, com uma porta escondida atrás de um armário que deixava ouvir não os gemidos de amantes de passagem, mas o murmúrio de um casal de exilados chilenos que ali estavam também de passagem. 

 

Quando vou a Paris, subo sempre a Rue de Cujas, que liga o Boulevard Saint Michel à rue d´Ulm, e ao passar em frente da porta de entrada espreito, dissimuladamente, para o pequeno foyer onde se encontra o balcão da recepção, agora modernizado, depois de um upgrade remodelador que o dotou de um pequeno salão com amplas vitrinas que dão para a rua. Contudo, não se modernizam as recordações cegas da minha vida suspensa naquele pequeno hotel de passagem para hóspedes errantes sem pátria nem dinheiro. 

 

E recordo, então, o quarto, pequeno, no terceiro andar, com uma pequena janela de guilhotina que dava à esquerda para uma açoteia e para mais nada, porque se abria para um muro sobre o qual espreitava um inútil pedaço de céu quase sempre cinzento: uma pequena estante de madeira onde coleccionava livros que falavam de revoluções por fazer, um armário onde guardava parcos haveres, uma colcha escura de textura áspera sobre uma cama estreita onde deitava em noites de vigília a saudade, uma lâmpada florescente no tecto, uma cortina azul escura no cubículo de banho, uma chávena onde derramava água apenas tépida colorida pelas saquetas de chá verde. 

 

Com um golpe de google fico a saber que também o quarto foi vítima de um upgrade, e a porta entaipada pelo armário substituída por uma parede de alvenaria que já não deixa escutar os murmúrios do quarto vizinho. E concluo, então, que aquele Excelsior que ali está já não é o mesmo onde transitoriamente me encerrei nas minhas paredes interiores, mas que nem por isso deixarei de continuar a olhar, dissimuladamente, através da sua porta, sempre que suba a rue de Cujas.

 

 

 

 

João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades

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publicado por ardotempo às 14:53 | Comentar | Adicionar

L'amour, de Alain Badiou

Éloge de l´Amour” (Elogio do amor, Flammarion 2009, ainda não traduzido para o português), de Alain Badiou; é a transcrição de uma breve entrevista do filósofo francês. 

 

Nela, inevitavelmente, Badiou constata que, em nossa cultura, a visão dominante do amor é a de uma espécie de “heroísmo da fusão” dos amantes, que, uma vez consumidos por sua paixão, podem sair de cena (para não se tornar ridículos) ou sair do mundo e morrer (para se tornar sublimes). 

 

Contra essa visão, Badiou define o amor mais como um percurso do que como um acontecimento: segundo ele, o amor precisa durar um tempo porque é “uma construção”.

 

O que constroem os amantes?

 

Geralmente, explica Badiou, “minha experiência do mundo é organizada por minha vontade de sobreviver e por meu interesse particular: vejo o mundo só de minha janela”. 

 

Certo, ao redor de mim, há muitos outros de quem gosto e aos quais reconheço o direito de também sobreviver e promover seus interesses. 

Mas o fato de eu respeitar esses meus semelhantes não muda em nada meu ângulo de visão. É só quando amo que consigo olhar, ao mesmo tempo, por duas janelas que não se confundem, a minha e a de meu amado. A estranha experiência ótica faz com que os amantes reconstruam o mundo, enxergando coisas que ficam escondidas para quem só sabe olhar por uma janela. 

 

Entende-se que o amor assim definido exija tempo. Quanto tempo? Um mês, um ano, uma vida, tanto faz. Consumir-se na paixão pode ser rápido, mas reinventar o mundo a dois é uma tarefa de fôlego.

 

O amor segundo Badiou, em suma, é uma aventura, mas que precisa ser obstinada: “Abandonar a empreitada ao primeiro obstáculo, à primeira divergência séria ou aos primeiros problemas é uma desfiguração do amor. Um amor verdadeiro é o que triunfa duravelmente, às vezes duramente, dos obstáculos que o espaço, o mundo e o tempo lhe propõem”.

 

 

Publicado em Verdes Trigos

publicado por ardotempo às 14:20 | Comentar | Adicionar

Neotráfico

Novo tráfico de escravos?

A sede europeia por jovens jogadores africanos

 

Christoph Biermann e Maik Grossekathöfer

 


 

A Copa do Mundo de Futebol está sendo realizada na África pela primeira vez este ano, mas há muito tempo jovens jogadores africanos são uma mercadoria procurada entre os principais clubes da Europa. Enquanto alguns jovens chegam ao topo, muitos jogadores acabavam nas ruas. Os críticos falam em um novo tráfico de escravos.

 

O barraco tem 3 metros por 3, as paredes são feitas de concreto, o telhado é uma folha de metal corrugado e o mobiliário escasso inclui uma cama e uma lamparina de petróleo. Não há janelas. Também não há eletricidade, nem banheiro, nem água corrente para as cinco pessoas que vivem nesse barraco infestado de moscas em Bamako, capital de Mali.

 

Enquanto o sol se põe, o calor do dia gradualmente diminui, os cães latem e o muezim chama para as orações. Diante do barraco, a mãe cozinha mingau de milho sobre uma fogueira, enquanto as duas filhas se sentam no chão de terra descascando mangas. O pai e o filho conversam sobre o futuro. Ambos estão usando camisas do Milan.

 

O menino, cujo nome é Amadou Keita, disse que certamente pode se imaginar jogando para o Milan, mas se tivesse de escolher iria para o Barcelona jogar como meio-campo. Seu pai afaga sua cabeça e sorri. Um velho que trabalha como porteiro, ele tem dores nos joelhos, nas costas e no quadril.

 

Amadou pega uma bola de borracha e a mantém no ar, fazendo centenas de "embaixadinhas" com os pés esquerdo e direito, alternadamente, então a coloca sobre os ombros, na cabeça e de volta aos pés. A bola não toca o chão nem uma vez.

 

"Eu quero ser profissional. Quero ganhar dinheiro com o futebol para poder dar a minha família uma vida melhor", diz Amadou. "Não quero que meus pais morram neste barraco. Essa é minha missão. Não posso falhar." Ele soa estranhamente sério para um rapaz de 14 anos.

 

Fábrica de sonhos

 

É um longo caminho de Bamako até a Europa, um longo caminho da rua empoeirada no Mali até o Milan, mas Amadou já deu o primeiro passo.

 

Ele se lembra claramente quando, um ano atrás, ouviu falar de um homem branco que estava em Bamako procurando crianças que jogassem bem futebol, meninos rápidos, ágeis e capazes de controlar a bola. O homem, um francês, organizou torneios por toda a cidade, e Amadou jogou em um deles. Afinal o homem escolheu os cinco melhores - dentre 5 mil. Amadou foi um desses cinco.

 

Ele frequenta uma escolinha de futebol nos arredores de Bamako, perto das margens do rio Níger, desde o início de setembro. Treina em um campo gramado e bem cuidado, recebe três refeições por dia e dorme em sua própria cama.

 

A escola de futebol, chamada Maison Bleue (casa azul) por causa da cor de suas paredes, é uma fábrica de sonhos. Os jogadores que chegaram até aqui têm a probabilidade de se tornar profissionais na Espanha, Inglaterra, França ou Alemanha. "Meu pai chorou de alegria quando fui aceito no internato", diz Amadou.

 

Atlético e barato

 

Há muitas escolas de futebol na África. Algumas pessoas as consideram uma bênção, outras uma maldição. Escolas como a de Bamako treinam os jogadores pelos quais os clubes profissionais da Europa manifestaram interesse. Eles são jovens, tecnicamente aptos, atléticos - e baratos.

 

Os clubes europeus têm ido à África em busca de talentos desde os anos 1950, e nos últimos anos a busca se tornou um negócio altamente rentável. Cerca de um em cada quatro estrangeiros que jogam para clubes europeus da primeira divisão vêm da África.

 

É um negócio que joga com a esperança e que é dirigido por empresários sérios. Mas traficantes inescrupulosos também tiram uma parte do bolo.

 

Os africanos são atraídos para a Europa porque acreditam que lá tudo existe em abundância: trabalho, dinheiro, confiança. Alguns jogadores conseguem e tornam-se astros, como Mahamadou Diarra do Real Madrid, Samuel Eto'o da Inter de Milão e Didier Drogba do Chelsea. Mas para a maioria o sonho de conseguir uma vida melhor como jogador profissional nunca se realiza

 

Christoph Biermann / Maik Grosskathöfer (Tradução Luis Roberto Mendes Gonçalves ) - Publicado no Der Spiegel

publicado por ardotempo às 13:42 | Comentar | Adicionar

Abismos do mundo

 

Hotéis de Passagem (III)

 

João Ventura

 

E do lado de cá do mar, hotéis de passagem de escritores desesperados, atravessando como sombras os abismos deste mundo. O hotel Suède, na rue Vaneau, em Paris, e o hotel Troisi, em Nápoles, onde Pasavento procura dar-se como desaparecido, no romance homónimo de Enrique Vila-Matas. E outros hotéis parisienses já desaparecidos, vítimas de upgrades, de reconversões ou de demolições, como os hotéis habitados por Joseph Roth, cuja obra ando a ler: o Foyot, na rue Tournon, junto ao Jardin du Luxembourg, onde já tinha morado Rainer Maria Rilke, e que Roth abandonou quando os escombros da demolição já se amontoavam por detrás da porta entaipada do seu quarto; e o tétrico hotel Florida, no Boulevard Malesherbes; e o miserável Hotel de la Poste; e o albergue Principautés Unies onde morou Hannah Arendt; e em Zurique, o hotel onde às vezes Robert Walser se ocultava num quarto a que chamava a Câmara de Escrita para Desocupados e aí, sob a luz crepuscular de um candeeiro de petróleo, deixava que a sua mão indecisa o conduzisse pelos territórios do lápis, cujo traço o empurrava lentamente para o desaparecimento, para o eclipse, mimetizando-se para não ser descoberto; e também aquele quarto, não de um hotel mas de um edifício de dois andares, em Kierling, Viena – outrora um sanatório - derradeira passagem de Kafka.

 

Mas talvez o mais absoluto hotel de passagem de que ouvi falar seja aquele, em Port Bou, onde se abrigou Walter Benjamin em fuga para Lisboa, aonde não chegaria nunca porque as suas asas incertas de borboleta nocturna falhariam no último momento, incapazes de o levarem para fora do pequeno quarto onde se hospedara na última etapa da sua vida crepuscular. Também aí havia uma porta entaipada por detrás da qual se adivinhava a lenta irrupção da manhã, que já não chegaria a tempo de iluminar a sua solidão irredutível de ter sido sempre estrangeiro em todos os hotéis de passagem da sua vida e de não ter tido nunca nada, a não ser a pasta preta pousada em cima da mesa de cabeceira, onde guardava os últimos "labirintos de tinta embebidos nos seus cadernos".

 

 

 

 

João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades

Imagem: O túnel - Gilberto Perin, Fotografia (2010)

 

publicado por ardotempo às 12:42 | Comentar | Adicionar

O cara quer ser bombeiro

Entre o diálogo e a bomba


Ferreira Gullar


O atual regime do Irã é um atraso.

 

Trata-se de uma ditadura teocrática intolerante e cruel que não permite aos cidadãos iranianos manifestar-se contra qualquer decisão do governo. As últimas eleições, que mantiveram no poder Ahmadinejad, foram descaradamente fraudadas e todas as manifestações populares de protesto, brutalmente reprimidas por tropas militares, sendo seus líderes, presos e condenados à morte.

 

Às vésperas da visita de Lula a Teerã, cinco deles haviam sido executados. O fanatismo religioso e o ódio aos discordantes é de tal ordem que os cega, a ponto de negarem, perante o mundo, fatos históricos incontestáveis como o massacre de judeus nos campos de concentração nazistas e a destruição das Torres Gêmeas.

 

Tamanha insensatez e intolerância, que beiram o ridículo, resultaram no isolamento do Irã, mesmo no Oriente Médio. Não obstante tudo isso, o presidente Lula tomou a iniciativa de romper esse isolamento e oferecer seu apoio fraternal ao governo de Ahmadinejad. É impossível não perguntar: mas por quê? É, sem dúvida, uma atitude surpreendente, difícil de entender.

 

Vejam bem: o Brasil não tem nem nunca teve vinculações estreitas, de qualquer tipo, com o Irã. Não há nenhum objetivo, seja político, seja comercial, que justifique arrostarmos com tamanho desgaste ao apadrinhar um regime repressor e movido pelo fanatismo. Pior ainda: o apadrinhamento de Lula a Ahmadinejad implica a tentativa de justificar o projeto iraniano de fabricar armas atômicas, contrariando assim o Tratado de Não Proliferação, de que, como o Brasil, é signatário.

 

Lula faz que não vê, mas não pode ignorar as artimanhas do regime iraniano para escapar à fiscalização da Comissão de Energia Atômica, fingindo disposição de dialogar quando, de fato, tudo o que pretende é ganhar tempo e dar prosseguimento a seu projeto nuclear militar.Assim foi que, diante de uma nação brasileira perplexa, Lula promoveu um encontro em Teerã com o presidente iraniano e o premiê da Turquia para produzir um suposto acordo que mostrasse a boa vontade do Irã em resolver o impasse. Mal o assinaram (nele, o Irã prometia entregar 1.200 kg de urânio para serem enriquecidos na Turquia), um porta-voz iraniano declarava que o país continuaria a enriquecer urânio em suas centrífugas. Que sentido tinha então aquele acordo, se o objetivo era o Irã desistir de enriquecer urânio e assim inviabilizar a construção da bomba?

 

Sabe-se que o próprio Lula se surpreendeu com essa declaração do governo iraniano, mas, de novo, fechou os olhos e insistiu em avalizar as boas intenções do Irã, enquanto criticava os membros do Conselho de Segurança da ONU, que se dispunham a impor-lhe sanções. Mas isso é coisa sabida e debatida. Difícil é entender por que Lula tomou essa posição, arvorando-se em defensor de um regime antidemocrático e ideologicamente primário, comprometendo desse modo o prestígio de nossa diplomacia, por todos respeitada, graças ao equilíbrio e isenção com que sempre atuou.

 

 

Como pode Lula afirmar que está aberto ao diálogo um regime fundamentalista que não tolera divergências? Todas as tentativas de entendimento com o Irã, promovidas pela ONU, fracassaram. Mas, Lula, sempre tão esperto, quando se trata de Ahmadinejad, faz-se de tolo, confia em tudo o que ele diz. Custa crer.Chego a pensar que a explicação esteja em certas declarações suas, como aquela em que negou aos Estados Unidos e à Rússia autoridade para impedir que o Irã fabrique armas atônicas, uma vez que ambos possuem arsenais nucleares. Com isso, desautorizou o Tratado de Não Proliferação e admitiu implicitamente que qualquer país - inclusive o Brasil - tem o direito de fazer a bomba. Seria essa sua verdadeira intenção, embora nossa Constituição o proíba? Talvez não.

 

Mas, no Fórum Mundial de Aliança das Civilizações, ao afirmar que o Brasil deseja um mundo sem armas nucleares, voltou a defender a tese, como se não fazer a bomba fosse uma concessão do Irã. E insistiu na necessidade de se preservar a paz no Oriente Médio. Mas não é o Irã que promete pôr fim ao Estado de Israel? Pretende fazê-lo pelo diálogo? 


Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL

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publicado por ardotempo às 12:07 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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