Terça-feira, 29.06.10

Recomeços

De l'amour

 
António Lobo Antunes


Se calhar as minhas grandes paixões passaram-se entre os doze e os quinze anos: por cromos de artistas de cinema que vinham nas embalagens das pastilhas elásticas, pela tia de um colega da escola que me passou a mão no cabelo, por meninas que patinavam no Jardim Zoológico e não me ligavam nenhuma, por uma senhora da idade da minha mãe que encostou a perna à minha no eléctrico, por uma outra, mais velha ainda, que me pegou na mão no cinema. No intervalo, loiríssima, fumou um cigarro de filtro doirado sem olhar para mim a fim de que não pensassem que namorávamos, visto que os assuntos sérios querem-se com recato e eu ainda não tinha dito nada aos meus pais, tornando o noivado oficial, mas a seguir ao intervalo, no escuro, discreta e suave, pegou-me na mão outra vez, largou-a para me acariciar o joelho


(eu usava, imperdoavelmente, calções)


demorou-se no princípio da coxa, com pressões várias e lentas


(sentia-lhe os anéis)


regressou à mão, entrelaçou os dedos nos meus, fez-me cócegas, com as unhas, na palma, o polegar passeou-me para baixo e para cima pulso adiante, mal o filme acabou levantou-se e nunca mais a vi. Quer dizer, vi o cabelo loiro a entrar num táxi e chovia. Não há nada mais triste que um amor sincero terminado à chuva. O reflexo das luzes nas poças de água quase me impedia de respirar de dor. Levei para aí um ano a recompor-me. Se não foi um ano foi uma semana, o que vem a dar no mesmo, inconsolável por pensar que teríamos sido felizes. Não tenho a menor dúvida que teríamos sido felizes, são coisas que se percebem. E, por estranho que pareça, ainda hoje o reflexo das luzes nas poças de água me dá uma espécie de melancolia mansa.


Depois da senhora mais velha que a minha mãe, para aí com quarenta anos que é número que dá vertigens, recuperei graças às gémeas Kessler, alemãs ou suíças ou holandesas, é tudo igual, que cantavam, vestidas do que eu achava serem fatos de banho, na televisão. Logo duas, de pernas compridíssimas


(quatro pernas)

 



para trás e para a frente, e penachos na cabeça cintilando milhares de diamantes e pérolas. O problema era que não conseguia decidir-me, escolho a da esquerda, escolho a da direita, tinham o mesmo sinal na mesma bochecha, o mesmo sorriso inalterável, a mesma cintura, os mesmos movimentos, desciam a mesma escada na mesma cadência, ponderei


- Fico com as duas?


este pensamento poligâmico, dito ao prior na confissão, traria na volta uma fiada interminável de Ave Marias de penitência e uma tarde inteira na igreja a pagá-las, para além do receio que o prior, amigo do meu avô, o fosse escandalizar com as minhas poucas vergonhas. Já estava a vê-lo chamar-me ao escritório, sentar-se à secretária, ordenar


- Chega aqui


eu de pé do outro lado, à espera, enquanto o meu avô, terrível, em silêncio e de pálpebras descidas, mudava o filtro da boquilha, endireitava objectos numa indignação lenta, passava uma folha do calendário de argolas que demorou um século a virar, fitou-me outro século numa mudez de mau agoiro e vociferou por fim, pronunciando cada sílaba numa martelada de ultraje


- Com que então as duas gémeas Kessler ao mesmo tempo, seu bandido?


enquanto alongava o pescoço para o corredor na esperança que a minha avó não desse conta da infâmia e corresse a prometer novenas para me salvar da eternidade de labaredas e tridentes. Obrigado a deixar as gémeas Kessler, que provavelmente agonizaram de desgosto sob os penachos, passei um longo período de reflexão abstinente até começar a comover-me, aos poucos, com as nádegas da cozinheira, que cheirava a pezinhos de porco de coentrada da mesma forma que os mártires cheiravam a santidade. Ignorava que os pezinhos de porco fossem afrodisíacos


(sabia lá o que significava afrodisíaco)


mas pelos vistos não existia pai para aquilo. Joguei-lhe a palma ao rabo e, ao voltar a cabeça, estava a minha outra avó, na porta da cozinha, de queixo caído. Como era uma pessoa de profundo sentido político, um Tayllerand de saias, em lugar de indignações e ralhos propôs-me trocar as saliências posteriores da cozinheira por conta aberta na pastelaria quase ao lado da casa dela, que exibia na montra bolos de creme irresistíveis em que o creme tinha a forma de pintos de órbitas amarelas de fios de ovos e caudas de frutas cristalizadas. Cedi. Entre nádegas e bolos quem, normalmente constituído, não prefere os bolos? Após um momento de indecisão resolvi-me pelo açúcar em detrimento dos coentros. Só me indignou que, mal a cozinheira se despediu, a minha avó me fechasse a conta prevenindo que não queria um neto gordo. Tempos depois de a cozinheira se despedir a pastelaria fechou. Quem garante não ter sido a minha avó a mandá-la fechar? Se algum de vocês souber de uma pastelaria com bolos de creme em forma de pinto de órbitas amarelas agradeço que me diga: é que sinto vontade de me apaixonar outra vez.

 

António Lobo Antunes

Imagem: As irmãs Kessler

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Segunda-feira, 28.06.10

Dissolvidos e construídos na imagem

Fotografias de Giberto Perin

 
João Gilberto Noll


Uma das emoções estéticas mais verticais que tive nesses últimos tempos no Rio Grande do Sul deu-se no encontro com o trabalho fotográfico de Gilberto Perin. É inacreditável que, de dentro desse cidadão de expressão costumeiramente serena, possa irromper uma arte de toques metafísicos de beleza tão eloquente e avassaladora, característica assombrosamente presente já em sua penúltima exposição. O que podemos acrescentar em palavras diante de uma fotografia dessa mostra, ao revelar um homem negro em algum ponto da África, de costas contemplando o mar? Em frenesi de cores, sentimos a nudez pagã entre o eu e o mundo, mais nada. Talvez um arrepio.

 

Na atual mostra, percebemos – um pouco de soslaio, tal um certo pudor diante do nosso choque em meio à atuação das belezas periféricas em cena –, percebemos jogadores de futebol das divisões inferiores em seu intimismo viril, nos pobres vestiários, alguns ensaboados debaixo dos chuveiros, entre confidências discretas, surdas talvez. E as cores, sempre as cores, vivíssimas, tão vivas que sentimos nelas um laivo da mais santa crueldade.

 

Gilberto Perin é um dos maiores fotógrafos brasileiros em ação. Entre suas fotos, há uma expondo como que um túnel improvisado entre os vestiários e o campo do jogo. Ninguém. Existe tal densidade em sua luz erma, entre o claro e o sombrio, que esse instante tem a qualificação de um mistério. Trata-se da pausa entre as múltiplas insinuações eróticas da exposição. As coisas sem a presença humana nos faz descansar um pouco da força carnal, mesmo que essa força venha um tanto dissimulada no bojo de certa placidez do pós-jogo, no desfecho do trabalho-lazer, antes de os atores se dissolverem novamente na prática do cotidiano.

 

 

 

 

 

 

Voltei à exposição de Perin, e observei que o fim do "túnel" não era o campo de futebol, como eu ponderei durante a primeira visita, mas, sim, inversamente, o próprio vestiário, vestiário em sombras,  não tanto a expressar o insondável, mas a guardar uma ardência que os olhos do público esqueceram em alguma fisiologia adormecida. Eu mesmo, me dou conta agora, preferi ver nesse estreito caminho espectral do nosso poeta a finalidade da luz, onde o jogo pode ser assistido sem máculas pela comunidade, com vistas a uma festa que irá nos redimir. O escuro no  desfecho da minúscula estrada, ao contrário, nos dará tão-só um drama que preferimos, até aqui, calar...

 

João Gilberto Noll - Escritor

 

Exposição Brasil - Camisa Brasileira

Fotografias de Gilberto Perin

Centro Cultural CEEE Erico Verissimo

Rua dos Andradas, 1223 

Centro Histórico

Porto Alegre RS Brasil

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Promoção do dia - Obra pop na chapa quente

Jesucristo en un McDonald's

 

José Ovejero

 

En un cuadro de Alexander Kosolapov se ve el rostro de Jesucristo y, bajo el logo de una famosa cadena de comida rápida el lema "this is my body". ¿Es un comentario sobre los iconos de la cultura de masas? ¿Una reflexión sobre la mercantilización de las creencias? No sé qué pretendía el artista con ese cuadro, pero sí sé que esta fue una de las obras retiradas de una exposición en Moscú porque podían herir susceptibilidades religiosas. Y cuando dichas obras se mostraron en la exposición Arte prohibido, una asociación religiosa interpuso una denuncia contra los responsables.

 

 

 

 

Situaciones así se dan en numerosos países, y no me refiero sólo a aquellos con regímenes teocráticos o dictatoriales, sino también a las democracias en cuyas constituciones está anclada la libertad de expresión. En muchas legislaciones se sancionan la blasfemia o la ofensa a los dogmas e instituciones religiosas. También en un Estado laico como el francés, aunque no haya un párrafo explícito en su código penal, a menudo grupos de presión religiosos se aferran a aquel que sanciona la difamación y el escarnio de grupos de personas por razones de raza, tendencia sexual o religión, y se querellan para evitar la proyección de películas como La última tentación de Cristo o para imponer la retirada de carteles publicitarios que ofenden la sensibilidad de los creyentes, como el de la película Amen, en el que se fundían la cruz gamada y la cristiana.

 

¿Por qué no puedo criticar y caricaturizar dogmas, creencias e instituciones? ¿Por qué Javier Krahe debe ir a juicio por un vídeo en el que se prepara un Cristo al horno? ¿Por qué está prohibido rebasar las barreras del buen gusto cuando se trata de asuntos religiosos? La respuesta, en el caso de España, es clara: el artículo 525.1 del Código Penal sanciona a quienes ofendan los sentimientos religiosos mediante el "escarnio de sus dogmas, creencias, ritos o ceremonias, o vejen, también públicamente, a quienes los profesan o practican". Mientras que el 525.2 castiga el escarnio a quienes no profesan creencia alguna, pero no se mencionan sus ideas. Que las personas estén protegidas de la difamación parece razonable, pero ¿qué lleva a proteger las creencias y no las opiniones o los valores no religiosos?

 

 

 

 

Últimamente hay grupos dispuestos a utilizar la vía judicial para amedrentar a quien ose atacar o ridiculizar creencias y dogmas. Mejor es desde luego que el uso de piedras y palos contra el impío, a los que aún se recurre a veces. Pero precisamente una sátira vigorosa contra todo tipo de instituciones y de valores intocables es un buen termómetro para la salud de una democracia. Vivir en democracia significa aceptar que otras personas encuentren mis valores o creencias ridículos y censurables. A mí me ofende que desde los púlpitos algún prelado haga valoraciones para mí misóginas o amenace con el fuego eterno a quien piensa como yo; pero, ni aunque fuese posible, se me ocurriría presentar una querella. ¿Por qué no voy a pintar a un Jesucristo en un McDonald's? ¿O va la Iglesia católica a destruir los frescos en los que se ve a Mahoma y a Lutero en el infierno? Los insultos a nuestras creencias nos parecen insoportables, a las ajenas una cuestión menor. Sería preferible reservar los tribunales para aquello que no es meramente un asunto de opinión... o de fe.

 

José Ovejero - Publicado em Babelia / El País

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Nuvens do frio

Fotografia

 

 

Gilberto Perin - Nuvens - Fotografia (Gramado RS Brasil), 2010

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O vento traz palavras

El mundo entero es pobre sin José Saramago

 
Aminatou Haidar


Ante todo, expreso mis más sinceras condolencias a todos los seres queridos de José Saramago, y de manera especial a Pilar del Río y Violante Saramago. La pérdida de José Saramago no es un hecho puntual que atañe sólo a un círculo reducido de personas sino que es un evento universal que, de alguna manera, ha azotado el planeta.


José Saramago se ha ido y la Humanidad se ha quedado huérfana pero, sobre todo, nos hemos quedado huérfanos nosotros, los más débiles, los que luchamos día a día por sobrevivir, por llevarnos a la boca una migaja de libertad, por respirar aires de igualdad y respeto. Es por ello que José Saramago siempre estará con nosotros.


El espíritu de Saramago nos acompañará eternamente con su solidaridad incondicional y su apoyo libre y honesto, como lo hizo conmigo personalmente y, a través de mí, con todo el pueblo saharaui. Todavía recuerdo esa última aparición pública suya en el aeropuerto de Lanzarote, donde se estaba librando, una vez más, la eterna batalla del bien y del mal, del débil y del fuerte, del oprimido y del opresor.


Se presentó tranquilamente en la primera línea del frente y me saludó con dulces palabras y una muestra de empatía sin igual. No olvidaré jamás sus sabias palabras en esos aciagos y duros momentos con las que me aconsejaba “no te mueras, todavía te queda mucho que hacer y muchas batallas que librar”. Ahora, él se ha ido, pero está y estará presente en todas las batallas por la libertad, la igualdad y la justicia.


El legado de Saramago vivirá para siempre en la mente de miles de generaciones, pues es un compendio de amor a los valores humanos y de respeto al ser humano y su dignidad. Y como él mismo dijo, “si los seres humanos no resuelven los graves problemas que afectan el mundo, las condiciones de vida de la humanidad empeorarán”. Esperemos que el ser humano tome nota.


Hasta luego, Saramago, todos te queremos


Aminatou Haidar

 


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Domingo, 27.06.10

Geri Garcia - Desenho

Desenho

 

 

 

Geri Garcia - Viúva - Desenho - Tinta china, aguadas e pena caligráfica sobre papel (Padúl, Granada Espanha), 1953

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Casulos de Siron Franco

Casulos

 

 

 

Siron Franco - Exposição Casulos (Objetos Escultóricos) - Fotografia de Marcos Magaldi

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Verdade escamoteada

A arte de enganar

 

Ferreira Gullar

 

Ética na política é coisa rara, qualquer que seja o partido. É surpreendente, no entanto, que o partido que nasceu empunhando a ética como bandeira tenha se tornado a expressão da antiética. Certamente, haverá, no próprio PT, exemplos louváveis de políticos que não se deixam seduzir, seja pela esperteza, seja corrupção, mas não são estes que dão as ordens na equipe do presidente Lula.

 

Não quero cometer injustiças mas, se não é mera impressão minha, vejo o presidente Lula como o oposto de tudo o que seu partido prometia trazer à vida política brasileira. Posso estar enganado, mas, se bem o percebo, ele, com a sua esperteza sindicalista, induz os que atuam sob seu comando a pôr de lado todo e qualquer escrúpulo: manipulam informações, falseiam a verdade dos fatos, forjam dossiês com falsas acusações, acusam vítimas de os estarem caluniando. Esses são alguns dos procedimentos comuns ao governo do atual presidente.

 

Os exemplos não faltam. Todos sabem que um dos objetivos de Lula, no plano internacional, é conseguir, para o Brasil, um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU. Em face de sua desastrada aliança com Ahmadnejad, de que resultou o isolamento do país, uma repórter perguntou ao ministro Celso Amorim se esse isolamento não inviabilizaria aquela pretensão do governo brasileiro.

 

A resposta dele não foi própria à de um ministro de Estado, que tem a obrigação de prestar contas à opinião pública. Disse ele: "É engraçado, os que consideravam tolice do governo pretender um lugar no Conselho de Segurança, agora lamentam a possibilidade de o perdermos". Ora, não importa o que certas pessoas pensavam da pretensão do governo; importa, sim, que o governo pretendia alcançar aquele objetivo e o inviabilizou por se ter aliado a uma ditadura belicista. Admiti-lo seria aceitar que errara e Lula, claro, não erra...

 

Mas assim é esse governo, só assume como coisa sua o que lhe dê prestígio, ainda que sua não seja, como no caso da defesa do meio ambiente. Alguém já viu, no plano internacional, uma comédia semelhante à representada por Lula e Dilma durante a reunião do clima em Copenhague?

 

O país todo sabe que Marina Silva deixou o Ministério do Meio Ambiente porque Dilma, então ministra da Casa Civil, seguindo as ordens de Lula, impunha a aprovação, a toque de caixa, dos projetos do PAC, ainda que atentassem contra a preservação do meio ambiente. No entanto, em Copenhague, ambos, apareceram como defensores da preservação ambiental. O tema é tão distante das preocupações de Dilma que ela, num ato falho, soltou uma frase reveladora do que realmente pensa da ecologia.

 

Nesse terreno da farsa descarada, um dos últimos episódios foi o do novo dossiê que o PT preparava para caluniar o candidato José Serra, mais um dentre outros, como aquele que foi escandalosamente flagrado num quarto de hotel, em São Paulo, quando a polícia apreendeu, em mãos de uma quadrilha petista, uma montanha de dinheiro. Em face de tão incontestável flagrante, Lula imediatamente chamou os responsáveis pela falcatrua de "aloprados", ou seja, tendo de admitir que era gente sua, tratou de desqualificá-los, como se agissem por conta própria. Como sempre, ele e seu partido nunca sabem de nada, desde que vire escândalo.

 

Surgiu, recentemente, outro dossiê e, de novo, contra Serra. Um dos convidados a armar a falcatrua abriu a boca e a denunciou, voltando a confirmar a denúncia numa CPI da Câmara de Deputados. A reação de Lula e seu partido não podia ser outra: afirmam que o dossiê foi inventado para acusar o PT e, assim, mais uma vez, o vilão se torna vítima e a vítima, vilão.

 

Um exemplo, para concluir. A equipe econômica do governo afirmara que, se aprovado pelo Congresso, o aumento de 7,7% para os aposentados comprometeria o equilíbrio orçamentário do país.

 

Mas Lula, que só pensa na eleição de Dilma, contrariando a opinião de seus ministros, sancionou o aumento e alegou: "Não é isso que vai levar o país à bancarrota". Só que ninguém afirmara tal coisa.

 

Como sempre, ele responde a uma afirmação que ninguém fez, para escamotear a verdade. A verdade é que esse aumento eleitoreiro agrava o déficit da Previdência, que já chega a R$ 50 bilhões. 

 

 

Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL

Imagem: “Les Tricheurs” - Caravaggio

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Fase Azul - Pablo Picasso

Pintura

 

 

Pablo Picasso - Bebedor de Absinto (Fase Azul) - Pintura - Óleo sobre tela (Paris, França)

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Delicadeza

Pintura

 

 

 

Marie Laurencin - Pintura - Óleo sobre tela

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Quinta-feira, 24.06.10

0º C - Cores do Sul

Fotografia

 

 

 

Mario Castello - Plátanos na Serra - Fotografia (Bento Gonçalves - Serra Gaúcha RS Brasil), 2010

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Quarta-feira, 23.06.10

Vidro.Paris.Espelho.Prata

Fotografia

 

 

 

 

Carolina Stein - Paris - Fotografia (Paris França), 2010

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Caminho

Pintura - Paul Klee

 

 

 

 

Paul Klee - Pintura, 1929

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Terça-feira, 22.06.10

Palavra

Esperança

 

 

 

A esperança é uma mística, destituída de fundamentos científicos – uma fé – por um afeto que não se encerra.

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Cabra

Desenho

 

 


Geri Garcia - Cabra - Desenho - Tinta china e aguadas sobre papel (Padul, Granada - Espanha), 1953

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Pássaros em Paris

Fotografia

 

 

 

 

Carolina Stein - Pássaros em Paris - Fotografia (Paris França), 2010

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Segunda-feira, 21.06.10

Obrigado, Saramago

 

"A arte é tudo. Tudo o resto é nada"

 

Isabel Coutinho / Cláudia Sobral

 

O avião estava prestes a cair. Lá dentro, entre os passageiros, estava o escritor brasileiro Jorge Amado. No momento em que todos se agitavam com medo de morrer pediu os jornais à sua mulher. "Estamos prestes a morrer e você quer ler os jornais?", surpreendeu-se Zélia Gattai. Jorge Amado queria morrer informado sobre o que se passava no mundo. Foi esta a história com que Pilar del Río prestou a homenagem final ao marido, no discurso que fez ontem na antecâmara do crematório, no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa.

 

"E tu, Saramago, hoje ficas a saber", continuou Pilar, agitando as mãos. A cremação do escritor foi vedada aos jornalistas e esta é a versão contada por quem esteve dentro da sala, por isso, as palavras podem não ser exactas. "O que se passa no mundo é que todos os meios de comunicação falam de ti" e dizem que morreu um homem bom e honesto, um bom escritor, um ser humano excepcional, um lutador. "E nós não temos o direito de chorar, de derramar lágrimas, porque somos os privilegiados que te conheceram. Que chorem os milhões de pessoas que não tiveram a sorte de passar contigo os momentos de vida."

 

Do lado de fora, um cordão policial não deixava ninguém aproximar-se das portas de vidro fechadas. "A luta continua!", gritavam os mais velhos entre a multidão que enchia o cemitério até à porta de entrada, alguns com os punhos cerrados. "Saramago amigo, o povo está contigo", ouvia-se a seguir. E despontavam livros, no final de braços mais jovens. Quando começou a sair fumo da chaminé do crematório, perto da 13h30, ouviram-se muitas palmas. 

 

Horas antes, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, em Lisboa, o professor e ensaísta Eduardo Lourenço colocou em destaque, junto ao caixão do escritor, um exemplar de O Memorial do Convento. Aconteceu num dos momentos em que a comunicação social não podia estar presente, mas a escritora Lídia Jorge assistiu. Lourenço, mais tarde, explicou que o fez porque foi a obra, "surpreendente e imprevisível", que pôs Saramago na história da literatura mundial. Ele deu "uma dimensão mítica a Portugal que não tínhamos senão no passado", explicou. "Camões pertence a essa constelação, mas está no passado, Fernando Pessoa está no presente mas também está no passado. Saramago alargou o nosso pequeno país à dimensão do mundo."

 

Já passava das 11h00, quando no Salão Nobre, o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, iniciou os discursos. "As cinzas de José Saramago descansarão na cidade de Lisboa", afirmou. Mas a sua obra é "património de toda a humanidade" e "a sua mensagem, o seu desassossego", continuarão "a desinquietar todos aqueles que a lerem. Obrigado, Saramago". A seu lado, estavam o primeiro-ministro José Sócrates, os ex-presidentes da República general Ramalho Eanes e Mário Soares, membros do actual Governo e muitas figuras da cultura portuguesa. A filha e os netos de Saramago encontravam-se todos juntos, ao pé de Pilar, que, durante os discursos, emocionada, olhava várias vezes, enlevada, para o marido. 

 

O professor universitário Carlos Reis abordou o percurso literário e o legado do autor de Caim. Um dos momentos mais bonitos do discurso foi quando convocou para aquela sala as personagens criadas pelo único Prémio Nobel da Literatura português. E, citando Eça de Queirós, afirmou: "A arte é tudo, tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade do mundo."

 

Jerónimo de Sousa, o secretário-geral do PCP, disse que Saramago "podia ter sido só um escritor maior da língua portuguesa, mas foi mais do que isso". Foi um homem que acreditou nos homens, mesmo quando os questionava. 

 

Foi a vez dos discursos que mais emocionaram a sala. Para María Teresa Fernández de la Vega, vice-representante do Governo espanhol, José Saramago "fez soar as cordas da alma". Era "uma dessas poucas pessoas que sabem recordar-nos que podemos e devemos ter grandes sonhos, tão grandes que nunca os percamos de vista". E ele sonhou. "Sonhou com uma terra livre - livre de opressão, de miséria e de perseguição. Sonhou com um mundo em que os fortes eram mais justos e os justos eram mais fortes." Todos nos "sentimos órfãos da sua figura tão querida e das suas palavras tão confortantes, órfãos de quem tantas vezes foi a nossa voz". Muitos olhos, na sala, se encheram de lágrimas.

 

Por fim, a ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, lembrou que José Saramago enfrentou dogmas. "Não tinha fé em Deus, mas certamente Deus teve fé nele.

 

Lá fora, quando já havia terminado a cerimónia, todos olharam para cima e bateram palmas sem parar. Era Pilar del Río, que aparecia ao balcão, ao lado de Violante Matos, a filha de Saramago, e da violoncelista Irene Lima que interpretara Bach. Ela vestia a roupa que Pilar usou no banquete do Prémio Nobel 1998, em Estocolmo. Na barra do vestido vermelho, uma das frases de O Evangelho Segundo Jesus Cristo: "Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti, Quero estar onde estiver a minha sombra, se lá é que estiverem os teus olhos."

 

À saída, o escritor valter hugo mãe considerou que na cerimónia fez falta o Presidente da República. "Sei de tanta gente que gostava de estar aqui representada e não esteve. Cavaco Silva tinha que estar aqui. Não é possível receber o Papa daquela maneira e não se despedir de José Saramago de alguma forma. Sinto-me indignado", acrescentou o Prémio José Saramago 2007, para quem a grande lição do Nobel "foi contra a indiferença". 

 

Ao fundo, o sítio onde esteve pousado o caixão, provocava uma imensa sensação de vazio, apesar dos cravos ali pousados. Para sempre, na nossa memória, ficará a frase lembrada no final do discurso de Gabriela Canavilhas, a frase que escreveu anteontem um amigo a Pilar del Río: "Não há palavras, Saramago levou-as todas...

 

Isabel Coutinho / Claudia Sobral - Público

 

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"Nada está pronto, até que você as veja"

 

Las profecías de Mapplethorpe

 

Rafa Cervera 

 

Patti Smith, antigua y eterna compañera del fotógrafo, escribe las memorias de ambos desde que se conocieron en Nueva York en los años sesenta y que el artista le encargó poco antes de morir. El libro es un relato conmovedor del afán de unos seres dispuestos a poner sus almas al servicio del arte, inspirados por Rimbaud, Dylan, Genet y otros nombres idolatrados.

 

 

 

 

Nada está terminado hasta que tú lo ves, le decía Robert Mapplethorpe a Patti Smith cuando, esperando su opinión, él le mostraba las que entonces eran sus primeras fotos. Ambos eran esos niños a los que alude el título, dos talentos intentando florecer en el Nueva York de finales de los sesenta, luchando casi con desesperación por plasmar su arte y obtener un reconocimiento que nadie se atrevería a negarles hoy. Ese Nueva York bohemio, con el hotel Chelsea, el Max's Kansas City, St. Mark's Place y la galaxia Warhol como puntos cardinales, es el escenario por el cual transcurre este deslumbrante texto biográfico. A través de sus páginas, Smith rinde homenaje al que fuera su amante, cómplice y, por encima de todo, alma gemela. Éramos unos niños cuenta ese trayecto vital, tomando la estrecha relación entre Mapplethorpe y la narradora coprotagonista como nudo. Muertos de hambre y también llenos de ambición, se apoyaron mutuamente para encontrar sus propios senderos artísticos. Así, descubrimos cómo Mapplethorpe le hablaba insistentemente a Smith de su potencial como cantante de rock & roll; por su parte, fue ella quien le convenció para que abandonara los collages y comenzara a tomar sus propias fotografías. Los desencuentros -motivados en muchos casos por la progresiva inmersión del fotógrafo en el submundo gay que alimentó el lado más chocante de su trabajo- enrarecieron en ocasiones la relación. La prosa de Smith es firme, no se deja llevar por reproches ni sentimentalismos, y cumple de manera formidable el objetivo buscado: hablar del lado humano de un artista que fue polémico y que en más de una ocasión se ha visto estrangulado por la naturaleza de su propia obra. "Robert elevó aspectos de la experiencia masculina", explica Smith, "imbuyendo a la homosexualidad de misticismo. Como dijo Cocteau de Genet, su obscenidad nunca es obscena".

 

 

 

 

La necesidad de escribir sobre su antiguo aunque en realidad eterno compañero llegó casi en el mismo instante en el que sonó el teléfono de la casa de la familia Smith y Edward Mapplethorpe comunicó el fallecimiento de su hermano, una fría mañana de marzo de 1989. Con una voz tan poderosa como la que brota de sus poemas y canciones, Smith nos muestra ese itinerario compartido, trufado de anécdotas y salpicado por personajes tan irrepetibles como el momento histórico -que va de 1967 a 1978- en el que se desarrolla el núcleo del texto. Las noches en la trastienda del Max's Kansas City, donde el apolíneo Mapplethorpe es deseado por la corte de Warhol, a la vez que la andrógina Smith es completamente ignorada, hasta que decide cortarse el pelo a lo Keith Richards y logra captar la caprichosa atención de los ilustres parroquianos. Los encuentros con Corso, que citando a Mallarmé asegura que los poetas no terminan los poemas, los abandonan; y con Ginsberg, que intentó ligar con ella al confundirla con un muchacho mientras ella se relamía ante un sándwich que no podía pagar. Un encuentro con una desolada Janis Joplin a la que Smith piropea llamándola "perla", palabra que se convertirá en el título del álbum póstumo de la tejana. Pero por encima de estas y otras anécdotas, Éramos unos niños es también el sólido y emotivo relato de la relación simbiótica entre dos personajes que no parecían estar completos el uno sin el otro. Y nos muestra el conmovedor afán de unos seres dispuestos a poner sus almas al servicio del arte, aferrados a sus respectivos sueños, inspirados por Rimbaud, Dylan, Genet y otros nombres idolatrados.

 

Smith cuenta cómo se turnaban para entrar a las exposiciones museísticas que les interesaban, porque el dinero no alcanzaba para dos entradas. En una ocasión, cuando ella, maravillada, se disponía a narrarle las obras que había visto, él atajó diciendo: "Algún día entraremos juntos a ver las exposiciones y, además, la obra expuesta será nuestra". Ninguno de los dos imaginaba entonces que sus vidas se convertirían en existencias legendarias, una historia digna no sólo de ser contada sino también de ser admirada. Una apasionada y apasionante odisea vivida en una época en la que comprometerse con la necesidad del propio era casi un acto heroico. Consciente, quizá, de que los días en los que intercambiaron sus energías forman también parte de su obra, poco antes de fallecer Mapplethorpe le pidió a Smith que escribiera la historia de ambos. Ahora, aquella vieja frase, nada está terminado hasta que tú lo ves, se revela como algo profético. Porque la historia ha sido contada a través de la mirada y el verbo de la única persona capaz de elevarla al nivel que merece.

 

 

 

 

Rafa Cervera - Publicado em Babelia

Imagens: Robert Mapplethorpe

 

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Domingo, 20.06.10

Herói de dois mundos

Torcedor do Uruguai, criador do uniforme da Seleção Brasileira: Aldyr Garcia Schlee

 

Thaís Bilenky e Anna Virginia Balloussier

 

Dona Marlene, 75, está revoltada. Desde que conheceu seu marido, há quase 55 anos, é a mesma história: chega a Copa do Mundo e Aldyr está lá, com o coração na mão pela seleção que, em 1950, tirou do Brasil o sonho do primeiro título. Aldyr Garcia Schlee, 75, criou há 57 anos a camisa verde e amarelo da seleção - um dos mais eficientes cartões de visita brasileiros, da Palestina aos Alpes suíços. Mas ele vai torcer pelo Uruguai, como faz desde que se entende por gente. Nada de birra, garante.

 

É que Aldyr nasceu em Jaguarão, cidade do Rio Grande do Sul que faz fronteira com o país vizinho, e cresceu "escutando na rádio tangos, boleros e notícias do Uruguai". Ele morava em Pelotas (RS) quando, aos 19 anos, soube do concurso aberto pelo extinto jornal "Correio da Manhã". O desafio: dar nova cara ao uniforme da seleção brasileira, até então azul e branco.

 

O jovem Aldyr correu para comprar "umas tintas gouaches holandesas, que foram pagas em prestações por quase um ano". E começou a rabiscar. Usar as quatro cores da bandeira no uniforme era uma das exigências da CBD (Confederação Brasileira de Desportos, antepassada da CBF). Um horror para Aldyr, já que "isso, quatro cores, não é uma tradição no futebol mundial". Para driblar o regulamento, ele decidiu "despejar o azul e branco nas meias e calções". A ideia colou. Reza a lenda que o modelo repaginado serviria para tirar a zica daquela derrota para o Uruguai no Maracanã. "Não é verdade. É preciso desmentir isso", diz. "Tanto que o Brasil perdeu em 1954, na Suíça".

 

 

 

 

No dia 15 de dezembro de 1953, o "Correio da Manhã" reproduziu pela primeira vez o modelo canarinho.O vencedor recebeu convite para estagiar como ilustrador no jornal, "uma bolada que dava para comprar um carro popular" e "uma cadeira 'perpétua' no Maracanã". Pouco depois, Aldyr foi entregar sua criação aos jogadores.

 

Na vez de Zizinho, craque do Bangu, escutou o que até hoje considera "a maior definição" para o esporte."Como torcedor, encaro futebol com paixão. Mas tenho certeza de que, em épocas de amadorismo ou hiperprofissionalismo, nada mais certo do que a frase do Zizinho: 'Futebol é uma merda'".

 

Toda Copa ele faz sempre tudo igual. Com um mês de antecedência, começa a confeccionar um livrinho da Copa, uma espécie de álbum de figurinhas artesanal. Nele, registra todos os resultados, desenha a carinha dos jogadores de cada seleção e anota impressões gerais sobre o torneio. Ele e a mulher acompanharão todos os jogos - na primeira fase, são três por dia, ou 270 minutos diários de futebol.

 

Aldyr não gostou da escalação de Dunga. Mas não viu tanto problema no técnico ter deixado Neymar de lado na hora de montar a equipe. Garrincha, afinal, também ficou de fora em 1954. Quatro anos depois, deu no que deu. De 1953 para cá, Aldyr foi rebatendo todas as bolas que a vida lhe jogou. No passado, dividiu plantões de trabalho e mesas de bar com ilustres do jornalismo, de Samuel Wainer a Nelson Rodrigues. Também foi professor de direito internacional. Por conta disso, na metade dos anos 1960, virou persona non grata para a ditadura.

 

Chegou a ser banido de uma faculdade no Rio Grande do Sul por três anos, acusado de "atividades filocomunistas", segundo documento que afirma ter recebido em 1965. Tudo intriga da oposição, já que mexer com política não era a dele, garante Aldyr. Afirma, contudo, diz ter abrigado em seu apartamento de Pelotas algumas "cabeças a prêmio" do regime militar. No começo daquela década, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (região Sul) por uma matéria, sobre combustível mineral, que entusiasmou o presidente João Goulart . A década de 1980 lhe rendeu dois prêmios na Bienal de Literatura.

 

Escritor criativo e de muita produção, Aldyr tem duas gavetas cheias de livros de sua autoria, com temas que vão de contos de futebol a uma suposta "identidade secreta uruguaia" de Carlos Gardel (Os limites do impossível - Edições ARdoTEmpo, 2009) Vive num sítio em Capão do Leão (perto de Pelotas). Numa parede da casa, a plaquinha da "Rua Uruguai". Dona Marlene nem esquenta a cabeça: prefere jogar na cara do companheiro a vitória contra o Uruguai, de 4 a 0, nas eliminatórias 2010.

 

 

Thaís Bilenky e Anna Virginia Balloussier - Publicado na Folha de São Paulo (desde Capão do Leão RS)

Imagem: Aldyr Garcia Schlee - Esboços originais da criação do uniforme da Seleção Brasileira, 1953

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Poema

 

 

Além do Equador

 

 

Mariana Ianelli

 

 

 

No soco do vento

Desencontraram-se.

 

Selvas e rios

Entre dois pontos de um mapa,

Eles perderam contato

Mas não perdiam a saúde

De acreditar

Que nem todos os países

Foram já cartografados.

 

Em terra queimada de sal

Se queimavam.

Arrendavam o tempo

E com sua paga 

Mantinham viva uma língua

Que aos outros nada comunicava,

Um país movediço 

Que prendia no estrangeiro

Seus tentáculos.

 

O quanto pode suportar 

Um homem

Uma vez extorquido, seqüestrado,

Eles podiam 

No meio de estranhos

Com um corpo amarrado à realidade.

 

Todo dia era um lapso, 

Um hábito 

Que não achava mais vontade,

A força se adelgaçando

Na dura queda de braço.

 

Mas não se dobravam,

Isso não podiam.

Faltava secar um país

E uma língua desaparecer

Debaixo de uns trapos –

Brutal e lentamente,

Como cabe ao ferro da coragem.

 

 

 

 

 

Mariana Ianelli - Treva Alvorada - Iluminuras, 2010

Imagem: Paul Klee - Pintura

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Desenho

 

 

 

 

 

Desenho - Alfredo AquinoTinta china, pena caligráfica, pincel e aguadas sobre papel 100% algodão

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A desordem da língua

Quando o errado está certo

 

Ferreira Gullar

 

Muita gente torce o nariz quando um chatola, como eu, começa a reclamar dos erros de português que se cometem nos jornais e na televisão. Desses, muitos dos que os cometem são profissionais, mas estão pouco ligando para o que consideramos escrever e falar errado.

 

Sabe-se que, para a maioria dos linguistas, não existe isso de falar errado: todo o mundo fala certo. Admitem existir uma "norma culta", que obedece às regras gramaticais, mas violá-las não é propriamente errar. Ouvi de um deles que está tão certo dizer "pobrema" como "problema". Obtuso como sou, tenho dificuldade de entender por que eles mesmos vivem escrevendo livros e colunas em jornais, ensinando como se deve escrever. Ora, se não existe falar errado, por que ensinar?

 

Não deve o leitor concluir daí que sou aquele morrinha que vive catando os deslizes de cada um, mesmo porque não posso me considerar um grande conhecedor da língua. Gosto dela, prezo-a ou, melhor dizendo, considero-a uma das extraordinárias criações do gênio humano. Não é maravilhoso imaginar que, muito antes de surgirem os gramáticos, nossos ancestrais já falavam obedecendo às normas que tornaram o idioma meio de comunicação entre as pessoas e de invenção do nosso mundo cultural?

 

Pense bem nesta maravilha: a palavra "este" indica algo que está perto de mim; "esse", o que está perto de você; e "aquele", o que está longe de nós dois. Eis a linguagem expressando as relações reais do sujeito e das coisas do mundo. Não obstante, todos os locutores de rádio e televisão, como a maioria dos jornalistas, referindo-se ao que está perto de si, usam "esse" em lugar de "este". E isso é hoje tão frequente que já nem se repara.

 

Ninguém vai morrer por isso, mas não deixa de ser preocupante observar as pessoas deformarem e empobrecerem a língua, usando, por exemplo, "sobre" como regência de quase todos os verbos.

 

Em vez de "comentou os fatos" dizem "comentou sobre os fatos"; em vez de "quando falou do problema", dizem "quando falou sobre o problema"; em vez de "alertado do ataque", dizem "alertado sobre o ataque", e por aí vão.

 

Em certas frases, o uso de "sobre" chega ao limite do desatino: "o deputado aguarda o desmentido sobre a denúncia", quando seria muito mais simples e elegante dizer "aguarda o desmentido da denúncia". Vá você, agora, explicar como surgiu essa mania do sobre, que espero seja apenas uma mania, como outras que surgiram e se foram.

 

Lembram-se da época em que todos usavam a expressão "a nível de"? Servia para qualquer coisa, como ouvi um entrevistado afirmar que, "a nível de ração para porcos, o melhor seria...". Felizmente, essa mania passou, o que me faz crer que a língua termina por excluir de si as excrescências que nela se introduzem. Mas parece que nem sempre, porque, às vezes, o mau uso se generaliza e até mesmo se oficializa.

 

Existe coisa mais descabida do que chamar de "sambódromo" uma passarela para desfile de escolas de samba? Em grego, "-dromo" quer dizer "ação de correr, lugar de corrida", daí as palavras autódromo e hipódromo. É certo que, às vezes, durante o desfile, a escola se atrasa e é obrigada a correr para não perder pontos, mas não se desloca com a velocidade de um cavalo ou de um carro de Fórmula 1.

 

Muitas vezes, à irreverência junta-se a ignorância, a pouca leitura dos bons escritores. Não é que tenhamos de escrever como escrevia Camões, mas o conhecimento do idioma, em seus diferentes momentos históricos e em suas mudanças, ajuda-nos a preservar a língua no que tem de essencial como também a transformá-la sem lhe trair a natureza. É essa ignorância que leva alguns redatores de televisão a substituir "risco de vida" por "risco de morte", achando que esta é a expressão correta. Ganha-se em obviedade e perde-se em elegância.

 

Já mencionei aqui, noutra ocasião, a tal lei da termodinâmica, segundo a qual os sistemas tendem à desordem. Sendo a língua um sistema, está sujeita a desorganizar-se, como o atestam os exemplos citados, tanto mais hoje em dia, quando a TV induz milhões de pessoas a falar errado. Essa mesma TV que poderia se tornar um instrumento decisivo na luta contra a entropia. Ou será que escrever certo é elitismo? 

 

 

 

Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL

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Fazer tudo

Las hermanas de Bartleby


Alberto Manguel  

 

Hay una suerte de versión femenina de la progenie de Bartleby, una literatura del rechazo cuyas heroínas se niegan a plegarse a la voluntad del gobierno masculino.


Para el héroe de Melville, la rebelión consiste en la voluntad activa de no rebelarse, en la inacción deliberada. Para sus hermanas, la voluntad de rebeldía se manifiesta no en no hacer nada, sino en hacer todo salvo lo que la tradición patriarcal exige. 


Desde Lisístrata a las tres poderosas mujeres de Marie Ndiaye, la salvación está en rehusar el rol pasivo, en no prestarse invariablemente al placer del hombre, en no permanecer ocultas, calladas, sumisas. Toda la obra de Ndiaye gira en torno a estas estrategias de poder.


Nacida en el sur de París, de padre senegalés y madre francesa, Ndiaye publicó su primera novela a los 18 años. Desde entonces, ha publicado ocho libros más, el último de los cuales, Tres mujeres fuertes, obtuvo en 2009 el prestigioso Premio Goncourt. Su obra teatral, Papa doit manger, fue incorporada al repertorio de la Comédie Française, la autora más joven así reconocida.


Es en el microcosmos de la familia donde Ndiaye hace actuar a sus heroínas, en escenarios que combinan el mundo suburbano tanto francés como colonial, y el mundo mítico del continente paterno, con sus historias de sangre, honor tribal y animales demoniacos. Ndiaye no conoció a su padre (y la tierra de su padre) hasta la edad adulta, pero esa geografía a la vez extraña y familiar está presente en todos sus libros.


Tres mujeres fuertes cuenta tres historias apenas entrelazadas: la de Nora, una abogada que, respondiendo a la llamada de su padre en Senegal, se ve obligada a defender a su hermano, acusado de asesinato; la de Khady Demba, criada en casa del padre de Nora, quien muere tratando de llegar a Europa después de ser obligada a prostituirse en una de las tantas aldeas fronterizas africanas; la de Fanta, prima de Khady, cuyo marido blanco, Rudy, rumia sobre una frase terrible que él le ha lanzado ("vuelve a tu tierra") y sobre las raíces de su racismo colonialista. 


Cada una de estas mujeres (Fanta siendo la única que no es la protagonista de su historia, sino la sombra invocada por el angustiado Rudy) parece al principio someterse a la voluntad de los hombres en su vida: Nora a la de su padre y de su hermano, Khady a la de los políticos, mercaderes y jefes de tribu, Fanta a la de su marido y su suegro. Pero estos son solo comienzos, porque, con rara habilidad, Ndiaye logra redimir a estas mujeres no a pesar sino a través de su agonía. Nora acaba encontrando una nueva identidad en el continente que creía ajeno y perdido, Fanta (y también Rudy) logra utilizar los prejuicios de la sociedad francesa para hacerse de una nueva y poderosa voz, y aun Khady, cuyo final es horrendo, muere intentando cambiar su suerte, es decir, sabiendo que su obligación vital es la rebelión activa, el rechazo de la infamia.


En el momento de su muerte, Khady ve un pájaro volar por encima de la reja de su encierro, y dice: "Soy yo, Khady Demba, soñó respondiendo a la sorpresa de esta revelación, sabiendo que era ella el pájaro y que el pájaro lo sabía". Como buena hermana de Bartleby, esa revelación final es solo suya.

 

 

 

 


Alberto Manguel - Publicado em Babelia
Imagem: Paul Klee - Pintura

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O discurso do Prêmio Nobel

"De como a Personagem Foi Mestre e o Autor Seu Aprendiz"

 

José Saramago

 

O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo.

 

Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável.

 

Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira".

 

Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para toda as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava... No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: "E depois?".

 

Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: "Não faças caso, em sonhos não há firmeza". Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras.

 

Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer".

 

Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver.

 

Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e esta minha avó Josefa (faltou-me dizer que ela tinha sido, não dizer de quantos a conheceram quando rapariga, de uma formosura invulgar), tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem horizontes, como quem vai recriando, por cima do instável mapa da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver.

 

A mesma atitude de espírito que, depois de haver evocado a fascinante e enigmática figura de um certo bisavô berbere, me levaria a descrever mais ou menos nestes termos um velho retrato (hoje já com quase oitenta anos) onde os meus pais aparecem: "Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade que é talvez temor diante da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e de outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro dia... Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas neoclássicas". E terminava: "Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos, uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato - que outra genealogia pode importar-me? a que melhor árvore me encontraria?"

 

Escrevi estas palavras há quase trinta anos, sem outra intenção que não fosse reconstituir e registar instantes da vida das pessoas que me geraram e que mais perto de mim estiveram, pensando que nada mais precisaria de explicar para que se soubesse de onde venho e de que materiais se fez a pessoa que comecei por ser e esta em que pouco a pouco me vim tornando. Afinal, estava enganado, a biologia não determina tudo, e, quanto à genética, muito misteriosos deverão ter sido os seus caminhos para terem dado uma volta tão larga...

 

À minha árvore genealógica (perdôe-se-me a presunção de a designar assim, sendo tão minguada a substância da sua seiva) não faltavam apenas alguns daqueles ramos que o tempo e os sucessivos encontros da vida vão fazendo romper do tronco central, também lhe faltava quem ajudasse as suas raízes a penetrar até às camadas subterrâneas mais fundas, quem apurasse a consistência e o sabor dos seus frutos, quem ampliasse e robustecesse a sua copa para fazer dela abrigo de aves migrantes e amparo de ninhos. Ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro modo construtoras da minha vida, estava, sem o perceber, a traçar o caminho por onde as personagens que viesse a inventar, as outras, as efectivamente literárias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante e no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que é defeito mas também naquilo que é excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei.

 

Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais do que um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa não conseguiram passar, a existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não tinha chegado a ser. Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de personagens de romance e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel e tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas conveniências de narrador e obedecendo à minha vontade de autor, como títeres articulados cujas acções não pudessem ter mais efeito em mim que o peso suportado e a tensão dos fios com que os movia.

 

Desses mestres, o primeiro foi, sem dúvida, um medíocre pintor de retratos que designei simplesmente pela letra H., protagonista de uma história a que creio razoável chamar de dupla iniciação (a dele, mas também, de algum modo, do autor do livro), intitulada Manual de Pintura e Caligrafia, que me ensinou a honradez elementar de reconhecer e acatar, sem ressentimento nem frustração, os meus próprios limites: não podendo nem ambicionando aventurar-me para além do meu pequeno terreno de cultivo, restava-me a possibilidade de escavar para o fundo, para baixo, na direcção das raízes. As minhas, mas também as do mundo, se podia permitir-me uma ambição tão desmedida. Não me compete a mim, claro está, avaliar o mérito do resultado dos esforços feitos, mas creio ser hoje patente que todo o meu trabalho, de aí para diante, obedeceu a esse propósito e a esse princípio.

 

Vieram depois os homens e as mulheres do Alentejo, aquela mesma irmandade de condenados da terra a que pertenceram o meu avô Jerónimo e a minha avó Josefa, camponeses rudes obrigados a alugar a força dos braços a troco de um salário e de condições de trabalho que só mereceriam o nome de infames, cobrando por menos que nada a vida a que os seres cultos e civilizados que nos prezamos de ser apreciamos chamar, segundo as ocasiões, preciosa, sagrada ou sublime.

 

Gente popular que conheci, enganada por uma Igreja tão cúmplice como beneficiária do poder do Estado e dos terratenentes latifundistas, gente permanentemente vigiada pela policia, gente, quantas e quantas vezes, vítima inocente das arbitrariedades de uma justiça falsa. Três gerações de uma família de camponeses, os Mau-Tempo, desde o começo do século até a Revolução de Abril de 1974 que derrubou a ditadura, passam nesse romance a que dei o título de Levantado do Chão, e foi com tais homens e mulheres do chão levantados, pessoas reais primeiro, figuras de ficção depois, que aprendi a ser paciente, a confiar e a entregar-me ao tempo, a esse tempo que simultaneamente nos vai construindo e destruindo para de novo nos construir e outra vez nos destruir.

 

Só não tenho a certeza de haver assimilado de maneira satisfatória aquilo que a dureza das experiências tornou virtude nessas mulheres e nesses homens: uma atitude naturalmente estóica perante a vida. Tendo em conta, porém, que a lição recebida, passados mais de vinte anos, ainda permanece intacta na minha memória, que todos os dias a sinto presente no meu espírito como uma insistente convocatória, não perdi, até agora, a esperança de me vir a tornar um pouco mais merecedor da grandeza dos exemplos de dignidade que me foram propostos na imensidão das planícies do Alentejo. O tempo o dirá. Que outras lições poderia eu receber de um português que viveu no século XVI que compôs as "Rimas" e as glórias, os naufrágios e os desencantos pátrios de "Os Lusíadas", que foi um génio poético absoluto, o maior da nossa literatura, por muito que isso pese a Fernando Pessoa, que a si mesmo se proclamou como o Super-Camões dela? Nenhuma lição que estivesse à minha medida, nenhuma lição que eu fosse capaz de aprender, salvo a mais simples que me poderia ser oferecida pelo homem Luís Vaz de Camões na sua estreme humanidade, por exemplo, a humildade orgulhosa de um autor que vai chamando a todas as portas à procura de quem esteja disposto a publicar-lhe o livro que escreveu, sofrendo por isso o desprezo dos ignorantes de sangue e de casta, a indiferença desdenhosa de um rei e da sua companhia de poderosos, o escárnio com que desde sempre o mundo tem recebido a visita dos poetas, dos visionários e dos loucos. Ao menos uma vez na vida todos os autores tiveram ou terão de ser Luís de Camões, mesmo se não escreverem as redondilhas de "Sôbolos rios"...

 

Entre fidalgos da corte e censores do Santo Ofício, entre os amores de antanho e as desilusões da velhice prematura, entre a dor de escrever e a alegria de ter escrito, foi a este homem doente que regressa pobre da Índia, aonde muitos só iam para enriquecer, foi a este soldado cego de um olho e golpeado na alma, foi a este sedutor sem fortuna que não voltará nunca mais a perturbar os sentidos das damas do paço, que eu pus a viver no palco da peça teatro chamada Que farei com este livro?, em cujo final ecoa uma outra pergunta, aquela que importa verdadeiramente, aquela que nunca saberemos se alguma vez chegará a ter resposta suficiente: "Que fareis com este livro?".

 

Humildade orgulhosa, foi essa de levar debaixo do braço uma obra-prima e ver-se injustamente enjeitado pelo mundo.

 

Humildade orgulhosa também, e obstinada, esta de querer saber para que irão servir amanhã os livros que andamos a escrever hoje, e logo duvidar que consigam perdurar longamente (até quando?) as razões tranquilizadoras que acaso nos estejam a ser dadas ou que estejamos a dar a nós próprios. Ninguém melhor se engana que quando consente que o enganem os outros... Aproximam-se agora um homem que deixou a mão esquerda na guerra e uma mulher que veio ao mundo com o misterioso poder de ver o que há por trás da pele das pessoas. Ele chama-se Baltasar Mateus e tem a alcunha de Sete-Sóis, a ela conhecem-na pelo nome de Blimunda, e também pelo apodo de Sete-Luas que lhe foi acrescentado depois, porque está escrito que onde haja um sol terá de haver uma lua, e que só a presença conjunta e harmoniosa de um e do outro tornará habitável, pelo amor, a terra. Aproxima-se também um padre jesuíta chamado Bartolomeu que inventou uma máquina capaz de subir ao céu e voar sem outro combustível que não seja a vontade humana, essa que, segundo se vem dizendo, tudo pode, mas que não pôde, ou não soube, ou não quis, até hoje, ser o sol e a lua da simples bondade ou do ainda mais simples respeito. São três loucos portugueses do século XVIII, num tempo e num país onde floresceram as superstições e as fogueiras da Inquisição, onde a vaidade e a megalomania de um rei fizeram erguer um convento, um palácio e uma basílica que haveriam de assombrar o mundo exterior, no caso pouco provável de esse mundo ter olhos bastantes para ver Portugal, tal como sabemos que os tinha Blimunda para ver o que escondido estava... E também se aproxima uma multidão de milhares e milhares de homens com as mãos sujas e calosas, com o corpo exausto de haver levantado, durante anos a fio, pedra a pedra, os muros implacáveis do convento, as salas enormes do palácio, as colunas e as pilastras, as aéreas torres sineiras, a cúpula da basílica suspensa sobre o vazio. Os sons que estamos a ouvir são do cravo de Domenico Scarlatti, que não sabe se deve rir ou chorar...

 

Esta é a história de Memorial do Convento, um livro em que o aprendiz de autor, graças ao que lhe vinha sendo ensinado desde o antigo tempo dos seus avós Jerónimo e Josefa, já conseguiu escrever palavras como estas, donde não está ausente alguma poesia: "Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu". Que assim seja. De lições de poesia sabia já alguma coisa o adolescente, aprendidas nos seus livros de texto quando, numa escola de ensino profissional de Lisboa, andava a preparar-se para o ofício que exerceu no começo da sua vida de trabalho: o de serralheiro mecânico. Teve também bons mestres de arte poética nas longas horas nocturnas que passou em bibliotecas públicas, lendo ao acaso de encontros e de catálogos, sem orientação, sem alguém que o aconselhasse com o mesmo assombro criador do navegante que vai inventando cada lugar que descobre. Mas foi na biblioteca da escola industrial que O Ano da Morte de Ricardo Reis começou a ser escrito...

 

Ali encontrou um dia o jovem aprendiz de serralheiro (teria então 17 anos) uma revista - "Atena" era o título - em que havia poemas assinados com aquele nome e, naturalmente, sendo tão mau conhecedor da cartografia literária do seu país pensou que existia em Portugal um poeta que se chamava assim: Ricardo Reis. Não tardou muito tempo, porém, a saber que o poeta propriamente dito tinha sido um tal Fernando Nogueira Pessoa que assinava poemas com nomes de poetas inexistentes nascidos na sua cabeça e a que chamava heterónimos, palavra que não constava dos dicionários da época, por isso custou tanto trabalho ao aprendiz de letras saber o que ela significava. Aprendeu de cor muitos poemas de Ricardo Reis ("Para ser grande sê inteiro/Põe quanto és no mínimo que fazes"), mas não podia resignar-se, apesar de tão novo e ignorante, que um espírito superior tivesse podido conceber, sem remorso este verso cruel: "Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo". Muito, muito tempo depois, o aprendiz, já de cabelos brancos e um pouco mais sábio das suas próprias sabedorias, atreveu-se a escrever um romance para mostrar ao poeta das "Odes" alguma coisa do que era o espectáculo do mundo nesse ano de 1936 em que o tinha posto a viver os seus últimos dias: a ocupação da Renânia pelo exército nazista, a guerra de Franco contra a República espanhola, a criação por Salazar das milícias fascistas portuguesas. Foi como se estivesse a dizer-lhe: "Eis o espectáculo do mundo, meu poeta das amarguras serenas e do cepticismo elegante. Disfruta, goza, contempla, já que estar sentado é a tua sabedoria..." O Ano da Morte de Ricardo Reis terminava com umas palavras melancólicas: "Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera". Portanto, não haveria mais descobrimentos para Portugal, apenas como destino uma espera infinita de futuros nem aos menos inimagináveis: só o fado do costume, a saudade de sempre, e pouco mais...

 

Foi então que o aprendiz imaginou que talvez houvesse ainda uma maneira de tornar a lançar os barcos à água, por exemplo, mover a própria terra e pô-la a navegar pelo mar fora. Fruto imediato do ressentimento colectivo português pelos desdéns históricos de Europa (mais exacto seria dizer fruto de um meu ressentimento pessoal...), o romance que então escrevi - Jangada de Pedra - separou do continente europeu toda a Península Ibérica para a transformar numa grande ilha flutuante, movendo-se sem remos, nem velas, nem hélices em direcção ao Sul do mundo, "massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus animais", a caminho de uma utopia nova: o encontro cultural dos povos peninsulares com os povos do outro lado do Atlântico, desafiando assim, a tanto a minha estratégia se atreveu, o domínio sufocante que os Estados Unidos da América do Norte vêm exercendo naquelas paragens... Uma visão duas vezes utópica entenderia esta ficção política como uma metáfora muito mais géneros e humana: que a Europa, toda ela, deverá deslocar-se para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente como ética. As personagens da Jangada de Pedra- duas mulheres , três homens e um cão - viajam incansavelmente através da península enquanto ela vai sulcando o oceano. O mundo está a mudar e eles sabem que devem procurar em si mesmos as pessoas novas em que irão tornar-se (sem esquecer o cão, que não é um cão como os outros...).

 

Isso lhes basta. Lembrou-se então o aprendiz de que em tempos da sua vida havia feito algumas revisões de provas de livros e que se na Jangada de Pedra tinha, por assim dizer, revisado o futuro, não estaria mal que revisasse agora o passado, inventando um romance que se chamaria História do Cerco de Lisboa, no qual um revisor, revendo um livro do mesmo título, mas de História, e cansado de ver como a dita História cada vez é menos capaz de surpreender, decide pôr no lugar de um "sim" um "não", subvertendo a autoridade das "verdades históricas". Raimundo Silva, assim se chama o revisor, é um homem simples, vulgar, que só se distingue da maioria por acreditar que todas as coisas têm o seu lado visível e o seu lado invisível e que não saberemos nada delas enquanto não lhes tivermos dado a volta completa. De isso precisamente se trata numa conversa que ele tem com o historiador. Assim: "Recordo-lhe que os revisores já viram muito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lhe eu, é de história, Não sendo propósito meu apontar outras contradições, senhor doutor, em minha opinião tudo quanto não for vida é literatura, A história também. A história sobretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a música, A música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à obediência, E a pintura, Ora, a pintura não é mais do que literatura feita com pincéis, Espero que não esteja esquecido de que a humanidade começou a pintar muito antes de saber escrever, Conhece o rifão, se não tens cão caça com o gato, ou, por outras palavras, quem não pode escrever, pinta, ou desenha, é o que fazem as crianças, O que você quer dizer, por outras palavras, é que a literatura já existia antes de ter nascido, Sim senhor, como o homem, por outras palavras, antes de o ser já o era, Quer-me parecer que você errou a vocação, devia era ser historiador, Falta-me o preparo, senhor doutor, que pode um simples homem fazer sem o preparo, muita sorte já foi ter vindo ao mundo com a genética arrumada, mas, por assim dizer, em estado bruto, e depois não mais polimento que primeiras letras que ficaram únicas, Podia apresentar-se como autodidacta, produto do seu próprio e digno esforço, não é vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha orgulho nos seus autodidactas, Isso acabou, veio o desenvolvimento e acabou, os autodidactas são vistos com maus olhos, só os que escrevem versos e histórias para distrair é que estão autorizados a ser autodidactas, mas eu para a criação literária nunca tive jeito, Então, meta-se a filósofo, O senhor doutor é um humorista, cultiva a ironia, chego a perguntar-me como se dedicou à história, sendo ela tão grave e profunda ciência, Sou irónico apenas na vida real, Bem me queria a mim parecer que a história não é a vida real, literatura, sim, e nada mais, Mas a história foi vida real no tempo em que ainda não se lhe poderia chamar história, Então o senhor doutor acha que a história e a vida real, Acho, sim, Que a história foi vida real, quero dizer, Não tenho a menor dúvida, Que seria de nós se o deleatur que tudo apaga não existisse, suspirou o revisor".

 

Escusado será acrescentar que o aprendiz aprendeu com Raimundo Silva a lição da dúvida. Já não era sem tempo. Ora, foi provavelmente esta aprendizagem da dúvida que o levou, dois anos mais tarde, a escrever O Evangelho segundo Jesus Cristo. É certo, e ele tem-no dito, que as palavras do título lhe surgiram por efeito de uma ilusão de óptica, mas é legítimo interrogar-nos se não teria sido o sereno exemplo do revisor o que, nesse meio tempo, lhe andou a preparar o terreno de onde haveria de brotar o novo romance. Desta vez não se tratava de olhar por trás das páginas do "Novo Testamento" à procura de contrários, mas sim de iluminar com uma luz rasante a superfície delas, como se faz a uma pintura, de modo a fazer-lhe ressaltar os relevos, os sinais de passagem, a obscuridade das depressões. Foi assim que o aprendiz, agora rodeado de personagens evangélicas, leu, como se fosse a primeira vez, a descrição da matança dos Inocentes, e, tendo lido, não compreendeu. Não compreendeu que já pudesse haver mártires numa religião que ainda teria de esperar trinta anos para que o seu fundador pronunciasse a primeira palavra dela, não compreendeu que não tivesse salvado a vida das crianças de Belém precisamente a única pessoa que o poderia ter feito, não compreendeu a ausência, em José, de um sentimento mínimo de responsabilidade, de remorso, de culpa, ou sequer de curiosidade, depois de voltar do Egipto com a família. Nem se poderá argumentar, em defesa da causa, que foi necessário que as crianças de Belém morressem para que pudesse salvar-se a vida de Jesus: o simples senso comum, que a todas as coisas, tanto às humanas como às divinas, deveria presidir, aí está para nos recordar que Deus não enviaria o seu Filho à terra, de mais a mais com o encargo de redimir os pecados da humanidade, para que ele viesse a morrer aos dois anos de idade degolado por um soldado de Herodes...

 

Nesse "Evangelho", escrito pelo aprendiz com o respeito que merecem os grandes dramas, José será consciente da sua culpa, aceitará o remorso em castigo da falta que cometeu e deixar-se-á levar à morte quase sem resistência, como se isso lhe faltasse ainda para liquidar as suas contas com o mundo. O "Evangelho" do aprendiz não é, portanto, mais uma lenda edificante de bem-aventurados e de deuses, mas a história de uns quantos seres humanos sujeitos a um poder contra o qual lutam, mas que não podem vencer. Jesus, que herdará as sandálias com que o pai tinha pisado o pó dos caminhos da terra, também herdará dele o sentimento trágico da responsabilidade e da culpa que nunca mais o abandonará, nem mesmo quando levantar a voz do alto da cruz: "Homens, perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez", por certo referindo-se ao Deus que o levara até ali, mas quem sabe se recordando ainda, nessa agonia derradeira, o seu pai autêntico, aquele que, na carne e no sangue, humanamente o gerara. Como se vê, o aprendiz já tinha feito uma larga viagem quando no seu herético "Evangelho" escreveu as últimas palavras do diálogo no templo entre Jesus e o escriba: "A culpa é um lobo que come o filho depois de ter devorado o pai, disse o escriba, Esse lobo de que falas já comeu o meu pai, disse Jesus, Então só falta que te devore a ti, E tu, na tua vida, foste comido, ou devorado, Não apenas comido e devorado, mas vomitado, respondeu o escriba". Se o imperador Carlos Magno não tivesse estabelecido no Norte da Alemanha um mosteiro, se esse mosteiro não tivesse dado origem à cidade de Münster, se Münster não tivesse querido assinalar os mil e duzentos anos da sua fundação com uma ópera sobre a pavorosa guerra que enfrentou no século XVI protestantes anabaptistas e católicos, o aprendiz não teria escrito a peça de teatro a que chamou In Nomine Dei. Uma vez mais, sem outro auxílio que a pequena luz da sua razão, o aprendiz teve de penetrar no obscuro labirinto das crenças religiosas, essas que com tanta facilidade levam os seres humanos a matar e a deixar-se matar. E o que viu foi novamente a máscara horrenda da intolerância, uma intolerância que em Münster atingiu o paroxismo demencial, uma intolerância que insultava a própria causa que ambas as partes proclamavam defender. Porque não se tratava de uma guerra em nome de dois deuses inimigos, mas de uma guerra em nome de um mesmo deus. Cegos pelas suas próprias crenças, os anabaptistas e os católicos de Münster não foram capazes de compreender a mais clara de todas as evidências: no dia do Juízo Final, quando uns e outros se apresentarem a receber o prémio ou o castigo que mereceram as suas acções na terra, Deus, se em suas decisões se rege por algo parecido à lógica humana, terá de receber no paraíso tanto a uns como aos outros, pela simples razão de que uns e outros nele crêem. A terrível carnificina de Münster ensinou ao aprendiz que, ao contrário do que prometeram, as religiões nunca serviram para aproximar os homens, e que a mais absurda de todas as guerras é uma guerra religiosa, tendo em consideração que Deus não pode, ainda que o quisesse, declarar guerra a si próprio...

 

Cegos. O aprendiz pensou: "Estamos cegos", e sentou-se a escrever o Ensaio sobre a Cegueira para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante. Depois, o aprendiz, como se tentasse exorcizar os monstros engendrados pela cegueira da razão, pôs-se a escrever a mais simples de todas as histórias: uma pessoa que vai à procura de outra pessoa apenas porque compreendeu que a vida não tem nada mais importante que pedir a um ser humano. O livro chama-se "Todos os Nomes". Não escritos, todos os nossos nomes estão lá. Os nomes dos vivos e os nomes dos mortos. Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo.

 

 

José Saramago

 

Estocolmo, 7 de Dezembro de 1998

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Sábado, 19.06.10

"A Pilar, como se dissesse água"

 

Luto em vermelho

 

Helena Ortiz

 

A amiga me liga pela manhã para me contar. Foi assim que eu soube, por telefone, como se recebe a notícia da morte de um parente. Estamos viúvas, ela disse, e chorava. Mas eu sou forte, ainda consegui dizer à doutora que não tomo remédios, não tenho deficiência física e a pressão é boa. E daí, o que importava isso? José Saramago estava morto, e eu pensava primeiro no mundo, depois em Pilar del Rio, porque a ela sim foi dada a sorte de ter se tornado a amada do escritor. Foi para ela que ele escreveu a mais linda dedicatória que já vi: "A Pilar, como se dissesse água". E será ela, certamente, quem mais sentirá a falta dele.

 

Temos os livros, e a eles voltaremos quantas vezes quisermos. Ela não. Não mais a convivência em Lanzarote, não lerá os originais em primeira mão, não trocará com ele as carícias possíveis, não recolherá os silêncios em que trabalhava.

 

Para nós foi-se o grande escritor, um humanista que se teimava comunista, o anti-clerical por natureza (e acho que se divertia com isso). Um homem de talento, mas de igual coragem, que se aprendeu e se fez homem em condições difíceis, sem nunca esquecer. Mas para ela foi-se não só o grande escritor, o homo politicus que apontava os vícios neoliberais, o desvario belicista, a intolerância, foi-se o homem que amava, deixando mudos os espaços do entendimento, a casa, a sala, a cama, a intimidade. Escrevo isso porque uma das coisas que mais me chamava atenção na obra de Saramago era sua consideração pelas mulheres, pelo sentimento feminino que tão bem apreendeu, pela importância que reconhecia e conferia à mulher. Daí porque imagino com que delicadeza devia tratar sua Pilar.

 

Depois pensei em mim, na minha própria tristeza, na certeza de saber que perdi aquele que era meu deleite, fonte de compreensão, orgulho da espécie, que eu sempre achei que o artista deve ter um papel político, deve dizer o que pensa, deve assumir o que sente. Ele era assim. E quem mais? Me diga por favor que eu quero saber.

 

Em casa, não pude fazer mais nada que pensar, pensar em que talvez o poema de Idea Vilariño postado há dois dias, Pobre Mundo, tenha vindo ao encontro desse acontecimento tão temido, tão indesejado e tão previsível. Que ao morrer o escritor, o poeta, o incansável lutador, nossa voz ficou ainda mais fraca porque era ele, com sua coragem e lucidez, que nos abria os olhos para os equívocos dos caminhos obscuros que aceitamos percorrer.

 

E então fui à cozinha, e chorando sobre pimentões vermelhos e berinjelas pensei no luto vermelho daqueles que não podiam nem chorar, que precisavam se esconder para prosseguir, calar a respiração a bem de se manterem vivos, retrair-se para avançar, e sempre engolir o choro. Agora podemos chorar alto, falar palavrão, reacender as dúvidas. Mas porque aprendemos (ou ainda não?) a lição de Saramago: "Já estamos a viver neste planeta como sobreviventes. A cada dia que amanhece temos que fazer o possível para sobreviver. E devemos fazê-lo como insurgentes sistemáticos".

 

Talvez assim descubramos, cada um de nós, o segredo da ilha desconhecida.

 

 

 

 

 

 

 

Helena Ortiz - Publicado no blog Integrada e Marginal

 

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publicado por ardotempo às 15:30 | Comentar | Adicionar

Colocar palavras

 

Extensão do Mito

 

Mariana Ianelli

 

 

 

Contam que ele desceu

Ao vale dos esquecidos

E cantou acima do suplício.

 

Que apaziguou o vento,

Estufou as vinhas,

De olhos fechados

Seduziu a serpente

Como se replantasse

O primeiro jardim.

 

Que foi odiado, despedaçado,

Lançado ao mar,

Para nunca mais

Uma voz se atrever à harmonia.

 

Mas não contam que uma mulher

Reuniu seus fragmentos

E encantou as mulheres da ilha,

Que assim Orfeu amou Eurídice, 

Finalmente em corpo e lira.

 

 

 

 

Mariana Ianelli - Treva Alvorada, Iluminuras - 2010

 

 

 

 

 

 

 

publicado por ardotempo às 14:22 | Comentar | Adicionar

O que importa e o que não importa

Desastres para a Humanidade

 

Ocorreram recentemente dois fatos verdadeiramente importantes e que determinam consequencias futuras para a Humanidade. A lamentável perda da presença e da voz de José Saramago e o fatal desastre ecológico no Golfo do México, ocasionado pela incompetência, pela ganância e pela estupidez de empresas petroliferas, de empreiteiras e seus acionistas, profundamente distanciados dos interesses da preservação ambiental. Fatos que se mostrarão incontornáveis nos próximos meses e anos.

 

Nada a ver com um outro evento inócuo, entorpecedor, inconsequente, dissipador e pródigo, que acontece ao sul do continente africano.

Um evento, esse sim, verdadeiramente desimportante para o futuro da Humanidade. O que também contribui largamente para acentuar os desastres na região, uma vez que passado o tempo de sua ocorrência, qual será o seu legado concreto? Por quê tanto dinheiro jogado fora, tantas atenções e tempo desperdiçados, se permanecerão as carências ao desenvolvimento e à cultura, as dificuldades sanitárias, a miséria, a violência, a disseminação das epidemias, a desigualdade econômica e social entre brancos e negros, as extensas lacunas de educação?

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publicado por ardotempo às 11:29 | Comentar | Adicionar

Filosofia

Pensar, pensar


Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, nao vamos a parte nenhuma.


José Saramago, 2008

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publicado por ardotempo às 11:24 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 18.06.10

"Até amanhã"

La felicidad era una isla para Saramago


Juan Cruz 

 
En las últimas semanas José Saramago hablaba apenas, pero reía, seguía riendo. Pilar del Río, su mujer, con la que convivió más de 20 años, le seguía preparando cenas y desayunos, y aunque ya parecía que la comida era de otro mundo o de otras necesidades, él estaba en todos los ritos que esta andaluza preparaba para que él siguiera anudado al hilo de la supervivencia.


Estaba y no estaba, pero reía. Hoy por la mañana amaneció mejor, como si resurgiera, y departió con Pilar, con el médico, como si se despidiera una a una de la vida y de las personas que le acompañaron hasta el final. A veces - ocurrió cuando estuvimos por última vez con ellos, hace una semana, en su casa de Tías, Lanzarote - escuchaba solo música; pero estos días Saramago escuchaba en silencio y entre risas los programas de humor de la televisión.
Tenía el semblante sereno, como si viniera de una larga lucha; pero ya los médicos habían abandonado la esperanza de lo que él mismo llamó su resurrección, ocurrida a finales de 2007, cuando la Fundación César Manrique organizó una exposición magna sobre su vida y sobre sus sueños. La construcción de los sueños.


Gravemente enfermo, Saramago parecía despedirse ya de la vida. Pero en la primavera siguiente volvió José a retomar unos bríos que no venían solo de la sangre renovada, sino de la dedicación eficaz de sus médicos y, sin duda, él lo dijo en este periódico, de la fuerza increíble de Pilar del Río. La fuerza con la que regresó a la vida le dio aún para dos libros más, El viaje del elefante y Caín, una especie de cuento largo que convirtió en leyenda y un diálogo raro sobre el extraño caso del hombre malo al que él quiso convertir en el bueno de la historia. En cierto modo, hasta en esa obra de la resurrección Saramago fue como era: paradójico, melancólico y sobrio, como un Quijote de Portugal que no se asombraba de nada porque ya vino del asombro.


Lanzarote le dio mucha felicidad, desde que Pilar lo llevó allí por vez primera, en 1993, un año después de que muriera allí un héroe cuya estela él contribuyó a prolongar, César Manrique, otro Quijote, en este caso insular, que había abrazado causas que fueron siempre familiares para Saramago: el respeto a los hombres y a la tierra, la lucha contra la injusticia de los hombres contra los hombres. De manera intermitente, vivió en Lanzarote (donde se curó de un desengaño, el que le produjo su país cuando le impidió concursar a un premio internacional con su El evangelio según Jesucristo) y siguió viviendo en Lisboa, en cuya casa que amó tanto guardaba lo más central de su corazón: el amor a los otros, y el amor a sus antepasados. Su abuelo, analfabeto, le enseñó a amar a los hombres y a la tierra, y a él dedicó, en un discurso memorable, el Premio Nobel que su literatura mereció en 1998.


Y en Lisboa - adonde llegarán mañana sus restos en un avión C-130 de la Fuerza Aérea portuguesa, cuyo Gobierno ha declarado mañana y pasado luto nacional - será incinerado el domingo José Saramago, cuyo carácter portugués y quijotesco le aupó a la grupa de todas las causas civiles de su tiempo; comunista convencido, periodista contra la dictadura y a favor del cambio de los claveles en Portugal, fue en todos los países que visitó (desde México a Brasil, desde España a Israel o Palestina) un firme defensor de los derechos humanos, contra las guerras (la de Irak, en los últimos años), contra el avasallamiento (de Israel sobre Palestina), a favor de personas (como Baltasar Garzón) acosadas por defender lo que él defendió, la memoria civil de los perdedores.


Todo se lo tomó con filosofía espartana, como si el honor o la gloria fueran pelusa en la chaqueta. Supo que había ganado el Nobel por una azafata de Francfort, cuando ya dejaba la Feria del Libro. Entonces se sintió solo, "a mi alrededor no había nada, nadie, nada, nadie, nada", y empezó a caminar sin rumbo, hasta que se encontró con su editora, Isabel de Polanco, a quien le dio la noticia. Ese abrazo de los dos, distintivo de la relación que mantuvieron, adquiere ahora el aroma triste de la melancolía, porque los dos protagonistas de esa hermosa escena están muertos.


Hace una semana, Pilar del Río nos dijo a Francisco Cuadrado, su editor en Santillana, y a este corresponsal, que su marido se había levantado una de esas mañanas con ganas, otra vez, de escribir, de retomar el hilo de una de sus historias, en las que estaba enfrascado cuando la gravedad de su estado hizo que perdiera la voz pero no la risa. Pilar le aconsejó que esperara, y ella misma esperaba que el milagro de dos años antes amaneciera otra vez en el escenario discreto de la vida de Saramago, que volviera otra vez el autor de Las intermitencias de la muerte a ocupar el sitio preferido de la casa, la biblioteca de la Fundación. Pero ya solo le animaban las bromas de Pilar, la persistencia de ella en continuar los hábitos cotidianos, el pan con aceite, las verduras, el bacalao portugués, la vida viva que Saramago siempre quiso. La misma Pilar que ha leído hoy, ante el féretro del escritor, un fragmento de su libro El evangelio según Jesucristo y la que ha puesto bajo la cabeza de su marido un paño bordado con la frase "Estaremos extrañamente conectados a la bondad del mundo" que envió un lector desde Argentina.


Ya había poco que decir, tras tanto sueño y tanta escritura. Le fuimos a ver donde esperaba las imágenes de la tele y el sueño que ya se interrumpía poco. Le dijimos hasta mañana, y él dijo, acariciándonos con sus manos ya transparentes: "Até amanhã".

 


Juan Cruz - Publicado em El País

publicado por ardotempo às 22:37 | Comentar | Adicionar

JOSÉ SARAMAGO

Sem palavras

 

 

 

(Ausência irreparável - 18 de junho de 2010)

publicado por ardotempo às 16:25 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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