Nova cidade, novo povo, novo país

A chegada da televisão em Taquara do Mundo Novo

 

Sergius Gonzaga

 

Acho que foi em 1960 porque naquele ano o leão fugido do Circo Águias Humanas, que há muito tempo vagava ameaçador por ruas e propriedades rurais, amanheceu morto no Rio da Ilha, interior do município, e, embora ninguém na cidade tivesse visto o cadáver da fera, já estávamos tão cansados do nosso próprio medo, tão fartos de dormir com as portas e as janelas fechadas, mesmo nas mais inclementes noites de verão, que resolvemos acreditar coletivamente no desaparecimento daquele animal aterrorizante. Foi como se então redescobríssemos a alegria de viver.

 

Antes disso, no fim do ano anterior, seu Trombini magnetizara Taquara, comprando o primeiro aparelho televisor da região para acompanhar a programação da recém-inaugurada tevê Piratini. E, sendo homem por demais generoso, a partir de janeiro do ano seguinte, escancarara as grandes janelas de sua casa em frente à Praça da Prefeitura, das segundas às quintas-feira, entre às 20h00 e às 21h30, permitindo que nos acotovelássemos na calçada, em meio a empurrões, tapas, gritos, risos e um sincero espanto diante daquelas imagens que procediam da tela luminosa e mágica.

 

 

Começava ali uma outra realidade, ainda subterrânea, ainda indecifrável, mas que mudaria para sempre as nossas vidas. Era uma multidão todas as noites. Algumas senhoras até levavam cadeirinhas de palha na tentativa de assistir sentadas à programação, contudo a ânsia pela visão deslumbrante que brotava na sala de seu Trombini fazia com que ninguém respeitasse o direito daquelas mulheres ao conforto de suas varizes e de seus reumatismos imemoriais.

 

Atordoado pela novidade, o público emitia comentários diversos. Havia os que celebravam a chegada do futuro.Havia também os que desconfiavam do poder maléfico daquela geringonça.

 

Dona Olga, mãe de Arnaldo Cambota, após assistir um episódio da série Lanceiros de Bengala, sintetizou a perplexidade dos taquarenses mais idosos:

 

Xô égua! Essas invenções do diabo não vão terminar bem!

 

Certa noite, em que havia pelo menos umas trinta pessoas diante das janelas da casa de seu Trombini, o Percival, escondido na praça, pôs-se a berrar:

 

Cuidado com o leão! Cuidado com o leão!

 

Em pânico, todos correram em busca de abrigo. Como um lorde infenso aos medos da plebe, Percival emergiu das sombras, caminhou até uma das janelas e ali ficou acompanhando as emoções de um páreo do Pradinho Sinimbu, em que cavalinhos mecânicos com nome de marcas de cigarro disputavam a vitória, premiando os telespectadores que houvessem enviado maços vazios dos produtos da Companhia de Fumos Sinimbu. Percebida a fraude do leão, vários taquarenses de escol tentaram espancar o Percival que fugiu dali aos gritos:

 

Meu pai também vai comprar uma tevê! Meu pai também vai comprar uma tevê!

 

Todos riram do Percival.

 

Olha aí o rato de esgoto querendo se passar por fino.

 

Sabíamos que apenas os muito ricos poderiam dar-se ao luxo de possuir um daqueles maravilhosos aparelhos eletrônicos. A nós – integrantes da remediada classe média de então – restaria somente a esperança de ser convidado para uma visita noturna à casa de algum dos poucos abonados da cidade, pois estes certamente, nos meses seguintes, também adquiririam um televisor.

 

Vários de meus amigos (e eu mesmo) chegamos a sonhar, naqueles dias, que nas salas de nossas residências, pulsava uma luz branca e fria, trazendo consigo filmes e séries emocionantes. Mas quando acordávamos, descobríamos a impossibilidade concreta desses sonhos.

 

Acho que tudo isso ocorreu efetivamente em 1960, porque naquele ano os candidatos a Presidente da República passaram por Taquara, sendo que um deles – Jânio Quadros – tinha caspa nos ombros e, antes de discursar, mordeu um sanduíche de mortadela para mostrar que era um homem simples, vulgar e confiável, como qualquer um de nós.

 

Nesse mesmo ano, surpreenderam meu colega Jacques em obscenas intimidades com uma jovem donzela nos matos do morro do Colégio Santa Terezinha; ele teve de fugir da cidade e os pais da moça a internam num convento. 1960 foi também o ano em que, ao contrário de todos os taquarense, eu chorei (secretamente) pela morte do leão fugido do circo, pois de alguma forma compreendia a solidão da fera, dividida entre o horror da jaula e a hostilidade brutal das gentes que o caçavam sem pena.

 

Mas, acima de tudo, 1960 foi o ano em que a televisão chegou à Taquara, com suas antenas escama de peixe, seus teleteatros improvisados, suas séries ingênuas, seus simplórios programas humorísticos, seus noticiosos sem imagens, seus equipamentos canhestros, suas falhas, sua modernidade imperfeita.

 

A partir daí, o velho mundo em que vivíamos, um mundo lírico e preconceituoso, educado e autoritário, frugal e arcaico, começou a desabar. O que parecia de ferro, era de areia. Séculos de tradição dissolveram-se sob nossos pés. Foi tudo muito rápido. As mensagens que vinham dos televisores em preto e branco traduziam a nascente ordem econômica industrial e solapavam valores, mentalidades e costumes, anunciando uma outra era, mais aberta, mais libertária, mais hedonista. E assim, simultaneamente, surgiam uma nova cidade, um novo povo e um novo país.

 

(Quase meio século depois, costumo visitar minha irmã, que ainda mora na antiga casa de nossos pais em Taquara do Mundo Novo. Nessas ocasiões, faço questão de sentar numa antiga poltrona marrom, e fechar os olhos e me fixar naqueles tempos de há muito perdidos. Então, como um médium em transe, ouço vozes do passado, meus irmãos correndo e gritando no pátio, o rugido do leão do circo Águias Humanas, e vejo cenas fulgurantes, uma manhã de sol na Rua Grande, um peixe que salta preso ao anzol no rio dos Sinos, e – ó velho nostálgico! – consigo ver, em meio à neblina que um dia dissolverá toda a memória, consigo ver as babosices sedutoras de Papai sabe tudo, o cinismo inocente de Bat Masterson, as carícias mornas entre John Herbert e Eva Vilma e vejo, acima de tudo, as inefáveis coxas bronzeadas de Lélia Parizotto, garota-propaganda de nosso delírio juvenil, infinita promessa de liberdade amorosa, tudo isso na telinha da tevê Piratini, Porto Alegre, canal cinco.)

 

© Sergius GonzagaEscritor, Professor de Literatura e Secretário Municipal da Cultura, Porto Alegre - OS TELEVISIONÁRIOS - Edições ARdoTEmpo

Imagem: © Gilberto Perin / Televisão Predicta Preto&Branco (Os Televisionários, 2010)

 


publicado por ardotempo às 00:19 | Comentar | Adicionar