O Sapato
Escultura / Instalação
Joana Vasconcelos - O Sapato - Escultura/ Instalação realizada com panelas e tampas de aço inox (Lisboa Portugal), 2009
Imagem do blog Da Literatura
Escultura / Instalação
Joana Vasconcelos - O Sapato - Escultura/ Instalação realizada com panelas e tampas de aço inox (Lisboa Portugal), 2009
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Voz de prisão ao papa
Ivan Lessa
E no oitavo dia Deus criou Richard Dawkins. Sendo que Richard Dawkins viu que isso era bom e logo se declarou o maior ateísta vivo.
Em suas peregrinações, Richard Dawkins, além de professor para a Compreensão Pública da Ciência, na Universidade de Oxford, tornou-se afamado etologista, biólogo evolucionário e divulgador científico, além de ser tido como um dos mais importantes acadêmicos britânicos. Dawkins insiste no fato de que religião, criacionismo e tudo aquilo que se assemelhe a uma ou outra coisa é pura “pseudociência”. Seu livro, A Ilusão de Deus, vendeu milhões de exemplares e qualquer coisa que tenha uma “inteligência superior” a designar e criar nossos destinos é prontamente atacada por ele em texto mais que virulento.
Richard Dawkins agora está nas primeiras páginas dos jornais, pois se há uma coisa em que ele acredita piamente, se assim se pode dizer, é no poder da imprensa. Juntamente com o jornalista britânico expatriado para os Estados Unidos Christopher Hitchens, Dawkins veio a público – mas muito público mesmo – para anunciar que, no decorrer da já marcada visita do papa Bento 16 às cidades de Glasgow e Cantuária, nestas ilhas, em setembro próximo, o Sumo Pontífice receberá voz de prisão, conforme divulgou o advogado de ambos os ateístas, Mark Stephens.
“Teje preso, seu papa!”, dirá Dawkins? Que argumentou ainda que, do ponto de vista jurídico, o papa não tem direito à proteção oferecida a outros soberanos em visita a este país, uma vez que a estada papal é classificada como estatal e o papa não é um chefe de estado reconhecido pelas Nações Unidas. Trata-se do mesmo raciocínio e princípio legal que levou o ex-ditador chileno Augusto Pinochet a ser preso quando de sua passagem pelo Reino Unido em 1998.
Causa da prisão, segundo a dupla e seu advogado: o papa teria acobertado os crimes de abuso sexual ocorridos dentro da Igreja Católica. Pedofilia desenfreada, para tratar do assunto, digamos assim, sem papas na língua.
No fim de semana que passou, o Papa se viu envolvido em nova controvérsia em vista da divulgação de uma carta, por ele assinada, em que, no ano de 1985, manifestava-se contra a excomunhão de um padre norte-americano que teria cometido violências sexuais contra dois meninos. À época, o papa estava encarregado da Congregação para a Doutrina da Fé (que já teve, há um bom tempo, o nome de Suprema e Sacra Consagração da Inquisição Universal), que, justamente, lida com casos de abusos sexuais.
Christopher Hitchens, autor de um livro muito popular intitulado Deus Não é Grande, declarou que o Papa “não se encontra nem acima nem fora do alcance da lei. A supressão institucionalizada de estupro infantil é um crime diante de qualquer lei e exige algo mais que uma cerimônia pública de arrependimento ou pagamentos financiados pela Igreja: exige justiça e punição.”
Acrescentou ainda Mark Stephens, o advogado de ambos ativistas ateus: “Os tribunais examinarão as reivindicações de imunidade. No meu entender, no entanto, acredito que um tribunal inglês as rejeitará.”
Richard Dawkins, no domingo passado, lá estava na primeira página de mais de um jornal: “Eu vou prender o papa”.
O Vaticano, até o momento em que estas linhas foram batidas, não respondera e a visita continua de pé.
Ivan Lessa - Publicado no blog BBC Brasil
Crônica de muito amor
António Lobo Antunes
O João trouxe-me um Santo António pequenino de Pádua: comoveu-me que se tivesse lembrado de mim. Na minha família não se fala de mariquices mas, de vez em quando, há gestos destes, de ternura escondida, como quem não quer a coisa. Deve-se gostar das pessoas sem lhes mostrar. Deve-se gostar das pessoas sem lhes mostrar? Pelo menos entre nós é assim: não há elogios, não há censuras, raramente há perguntas. Para quê? Há um estar ali que é já tanto. Diz-se sem as palavras e percebe-se que se diz e o que se diz porque o clima, não sei explicar de outra maneira, se torna diferente. Não falamos do que cada um faz: a gente sabe. Do que cada um sente: a gente sabe. Não se fala do sofrimento, não se fala da alegria: a gente conhece. É melhor desta forma. Uma única ocasião o meu pai fez-me uma confidência, sacudiu-a logo com a mão
- Chega de pieguices
e alegrou-me que se penitenciasse por transgredir as regras. Não há efusões, não há gestos e, no entanto, as efusões e os gestos estão lá. Quem souber ver que veja, quem não souber é porque não pertence à tribo. Não há lamentos: porque é que hei-de lamentar a minha sorte, interrogava o grego. Não há censuras, não há críticas, salvo em ocasiões muito, mas mesmo muito, especiais. O Zé Cardoso Pires percebia isto
- Vocês estão muito ligados
disse-me um dia, e mudou logo de paleio.
- Nenhum escritor gosta de falar do que escreve
afirmava ele. E, realmente, nunca falámos um ao outro do que escrevíamos. Quase todos os dias conversávamos mas não se tocava nesse assunto. Quando muito
- Estás a trabalhar?
e acabou-se. Ou
- Não estou a trabalhar
e acabou-se. Uma tarde telefonou-me
- É para te dar os parabéns porque ganhei um prémio
desviou logo o assunto e isto é o cúmulo da amizade. Foram os parabéns que, até hoje, mais prazer me deram. Até as nossas dedicatórias mútuas eram secas: Para o António do Zé, Para o Zé do António e um rectângulo à volta, a cercar as palavras, a fechá-las lá dentro. O rectângulo, claro, era o mais importante, e o que estava naqueles quatro riscos, meu Deus. Maior elogio mútuo
- Belo livro
maior crítica mútua: silêncio dentro de um soslaio breve. Não, maior elogio:
- Posso ser amigo de um médico, de um engenheiro, de um pedreiro. Para ser amigo de um artista tenho que admirá-lo.
Passeávamos de braço dado na rua. Com o meu irmão Pedro, por exemplo, darmos o braço é fazermos chichi juntos, no escuro, junto à cascata do jardim dos meus pais, com um comentário sobre o jacto respectivo. Depois sacudirmos os pingos ao mesmo tempo porque a pila não sabe fungar. Então abotoamo-nos e cada um vai para o seu lado, em silêncio. Deve ser difícil as mulheres entenderem isto mas, para os homens, fazer chichi lado a lado, ao ar livre, é sinal de amizade, a olharmos para baixo, cheios de duplos queixos. Tanto che che che nesta frase. Fazer chichi na rua é um dos meus prazeres, devo ter sido cachorro noutra encarnação. Detesto urinóis, retretes: haverá alguma coisa que se compare à exaltação de mijar contra uma parede? Às vezes, a seguir ao jantar, digo ao Pedro
- Já mijaste?
sabendo que ele estava à minha espera para essa celebração da cumplicidade. Nem que sejam três gotas faz-se um esforço. Vemos as árvores, vemos o muro, não nos vemos um ao outro mas estamos ali. Nem quero pensar na ideia de fazer chichi sozinho. No fim pergunta-se
- Como é que estás?
sabendo que o parceiro se cala. Depois cada um no seu carro, sem mais palavras. Um atrás do outro e, a certa altura, separamo-nos, com um sentimentozito de despedida que custa. Quer dizer não custa assim tanto, custa um bocadinho e passa. Eu vou fazer redacções, ele vai fazer não sei o quê: pouco importa. Importa que durante uns momentos estivemos juntos. Agora interrompi esta crónica porque fui lá dentro espreitar o Santo António antes de lhe pôr o ponto final. Que pena um ponto final ser tão pequenino.
António Lobo Antunes
Mario Castello - Antes do espetáculo - Fotografia (São Paulo SP Brasil)