Domingo, 28.03.10

Clássico contemporâneo

Gravura

 


 

Andy Warhol - Marilyn Monroe (Azul Turquesa) - Serigrafia sobre papel, 1964

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publicado por ardotempo às 22:38 | Comentar | Adicionar

Um dia, a verdade

 

A cara do cara

Ferreira Gullar

Devo admitir que, de algum tempo para cá, a personalidade de Lula tornou-se, para mim, motivo de surpresa e indagação. Trata-se, sem dúvida, de um personagem inusitado na história política do país. Contribui, para isso, obviamente, sua origem social, a condição de líder operário que, embora pouco afeito aos estudos e à leitura, chegou à mais alta posição que alguém pode alcançar no Estado brasileiro.
A trajetória que ele percorreu é, no entanto, compreensível, se se levam em conta os fatores que determinaram o processo político brasileiro durante os anos do regime militar. A repressão que a ditadura exerceu sobre os trabalhadores organizados, alijando dos sindicatos às lideranças surgidas do getulismo e do janguismo, propiciou o surgimento de uma liderança sindical, desvinculada tanto do peleguismo quanto dos comunistas que, por isso mesmo, prometia uma nova era na luta dos trabalhadores.
A figura principal desse movimento era Luiz Inácio Lula da Silva que, envolto nessa aura, fez renascer a esperança de velhos militantes incompatibilizados com o comunismo soviético, como também o entusiasmo de uma nova geração que se inspirava na Revolução Cubana. Não por acaso, Lula passou a usar a mesma barba que caracterizava as figuras de Fidel e Guevara.
Enquanto durou a ditadura militar, ele e seu partido, o PT, mantiveram-se na luta pela restauração da democracia, ao lado do partido de oposição e de outras forças de esquerda. Finda a ditadura, Lula e seu grupo começaram a mostrar sua verdadeira face: tornaram-se adversários de todos os governos que se formaram, a partir de então. A própria Constituição de 1988 não contou com seu apoio, pois se negou a assiná-la.
De 1990 a 98, Lula fracassou em três tentativas de eleger-se presidente da República. Em 2002, deu um ultimato ao PT: para perder de novo, não se candidataria e, com isso, o partido abriu mão da postura radical, permitindo a Lula, inclusive, adotar como vice um empresário e comprometer-se com a política econômica de FHC, que haviam combatido ferozmente. Eleito, Lula repeliu a aliança com o PMDB e aliou-se a partidos menores, que seriam comprados com o mensalão. Quando o escândalo estourou, disse que não sabia de nada e obrigou seus auxiliares mais próximos a assumirem a culpa. Depois, os absolveu e, recentemente, afirmou que o mensalão foi fruto de uma conspiração contra seu governo. Não houve.
A coragem de fazer tal afirmação, quando a denúncia daquelas falcatruas foi feita pelo procurador-geral da República e aceita pelo Supremo Tribunal Federal, é quase inconcebível em alguém que ocupa a Presidência da República. Mas esse é o Lula que, após assumir o governo, afirmou nunca ter sido de esquerda e, enquanto abre o cofre do BNDES à grandes empresas, alia-se ao antiamericanismo de Chávez e Ahmadinejad e abraça-se a Bush, a Fidel e Sarkozy. Dá seu apoio às eleições corruptas do Irã e se nega a reconhecer o presidente legitimamente eleito de Honduras.
Mas nada chocou tanto a opinião pública, dentro e fora do Brasil, quanto sua afirmação de que é inaceitável que alguém se deixe morrer numa greve de fome. E, como se não bastasse, comparou os prisioneiros políticos, condenados por delito de opinião, aos criminosos comuns, presos por roubar ou matar. O ministro Amorim tentou defendê-lo, dizendo que Lula, por já ter feito greve de fome, estava agora fazendo uma autocrítica. Na verdade, Lula fingiu fazer greve de fome, em 1980, pois, como se sabe, comia escondido. Não se trata, pois, de autocrítica, mas da tentativa de desqualificar quem demonstrou a grandeza moral que ele não teve. Teríamos que vê-lo, não como o estadista, que pretende ser, e, sim, com um espertalhão, capaz de qualquer coisa que sirva a seus objetivos?
Seria, talvez, simples demais afirmar que sim. No entanto, como entender sua atitude, na visita recente ao Oriente Médio, quando se ofereceu, publicamente, para mediar o conflito entre judeus e palestinos, tarefa já entregue a um "quarteto" de alto nível composto pelos EUA, a comunidade europeia, a Rússia e a ONU? Como era de esperar, o oferecimento foi rejeitado pelos dois lados.
Lula certamente não contava com isso, mas, esperto como é, tampouco se julgaria capaz de resolver tão complexo problema. O que lhe interessava era posar de estadista preocupado com as grandes questões mundiais. É o mesmo cara que inaugura obras não concluídas e acha que só um retardado mental faz greve de fome para valer.
Teme a era pós-Lula.
Ferreira Gullar - Pubicado na Folha de São Paulo / UOL
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publicado por ardotempo às 19:29 | Comentar | Adicionar

Conto inédito de Mariana Ianelli

 

O Abutre-do-novo-mundo

Mariana Ianelli

 
Há pessoas que não foram totalmente corrompidas, como se o diabo não tivesse feito o serviço completo. Elas conservam as mãos limpas em troca de um esgar epilético e ninguém neste mundo seria capaz de julgá-las no lugar do seu próprio corpo de vítima e réu. Eu, por exemplo, cumpro a parte que me cabe no desempenho dos meus talentos e não me queixo. A minha pontaria me deu o que de melhor eu tenho: um bom apartamento, boas refeições e um sono tranqüilo. Por regra do ofício, minhas mãos nunca estão limpas. Quanto pesa a consciência? Nada, absolutamente. Para mim, mais vale não ter senso moral do que ter algum. Eu sigo o rabo de fogo do acaso e tudo o que preciso é ver sem ser visto. Chamam-me o Abutre-do-novo-mundo, o que eu considero, modéstia à parte, um dos títulos mais respeitáveis na hierarquia do crime.
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Outubro, quinta-feira, nove e meia da manhã: passo em frente ao 102 e meu alvo acaba de cruzar a rua para entrar no café da esquina. Desde que comecei o trabalho, todo dia eu o vejo praticar maquinalmente a mesma rotina, os mesmos prazeres inofensivos. Não sei por que razão o infeliz me foi encomendado, ou melhor, isso não me interessa. Quero descobri-lo por minha conta, no relatório subliminar das repetições de circuito, da casa para o café, do café para o escritório, do escritório para a cantina, da cantina para casa, ad infinitum.
Cada qual há de ter seus motivos para morrer ou agarrar a vida e são esses motivos íntimos que me interessam, insondáveis quase sempre, que não se explicam nem se substantivam nos casos de adultério, nas dívidas empresariais ou nas intrincadas jogadas políticas. Mesmo no cotidiano mais desordenado existirá sempre algo que se repete, alguma triste mania na qual o homem se enraíza, uma cadeira predileta no fundo de um bar, aos domingos, uma avenida, uma tabacaria, uma prostituta preferida. Nessas escolhas viciadas, a chave que tranca um miserável em seu cubículo dá mais uma volta sobre si mesma e mais outra e mais outra ainda. Só assim, pelo que sei, emparedado dentro dos seus limites, é que o homem se vê convocado a ir além, para alcançar o céu ou o abismo. Quanto ao meu pobre alvo, que nesse momento folheia o jornal do dia, ignorante de que amanhã ele será a notícia, os seus limites só poderiam levá-lo ao fundo do abismo, afinal, para onde mais pode ir um sujeito que veste uma gravata estampada às nove e meia da manhã de uma quinta-feira e que põe as mãos na cintura enquanto espera o seu cappuccino? O coitado me faz pena, esperando como se estivesse vivo. Primeiro quadrante, segundo quadrante, centro. Hora de riscá-lo da lista. Digamos que por causa dessa gravata ridícula.
© Mariana Ianelli

 

publicado por ardotempo às 16:37 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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