Quarta-feira, 17.03.10

Conto inédito de Mariana Ianelli

O rabo da Salamandra
 
Mariana Ianelli
 
 
Já estivemos entre os primeiros da fila, pelo menos, é o que consta nos registros. Havia muito o que perder naquele tempo, mas quem sabia disso? Ninguém sabia. Naquele tempo é o que dizemos quando a simples tarefa de atravessar a rua se tornou um verdadeiro sacrifício, ou quando o espelho do banheiro converteu-se na vitrine de um museu pessoal de arqueologias.
 
Continuamos na fila depois de dar a meia-volta e lentamente vamos chegando à outra ponta, vencidos por um par de sapatos velhos, uma cirrose e o espanto de uma agenda telefônica cada vez mais defasada e fictícia. Nossos antigos colegas de classe bem poderiam ter permanecido naqueles bancos caquéticos, decorando o teorema de Tales, o futuro do pretérito, a Questão das Investiduras ou a estrutura molecular dos polímeros. Mas não. Existe sempre um mensageiro do sinistro que vem, não se sabe de onde, só para dizer que Ana, vocês se lembram de Ana, a campeã dos torneios de basquete?, pois então, nas últimas férias de julho ela voltava de uma viagem com a família, à noite, pela via expressa, quando um caminhão desgovernado simplesmente; e o Gordo, vocês se lembram dele?, pois não foi que o coitado teve um surto, sozinho num sítio lá onde o mundo faz a curva e, sabem como é, de repente o desespero, o vazio por todo lado, a ronda do caipora, as ratazanas, as serpentes, o mato gritando noite adentro e aquela irresistível espingarda na parede. De quando em quando também chegam notícias dos que deram certo e conservaram os dentes fortes, a cabeça razoavelmente lúcida e o sangue, apesar dos pesares, limpo. Entre eles, o Toninho, que nós já desconfiávamos, finalmente ali, na capa de uma revista, com seu rosto lânguido de Psiquê enrolado num manto de caxemira; ou ainda, as famosas pernas do colégio, que de um dia para o outro começaram a desfilar pelos corredores de uma clínica de estética, atendendo a madames e falsas atrizes.
 
Assim vamos passando, nós, montículos de areia no funil de uma ampulheta depois de amanhã mais cheia embaixo do que em cima. Com os pés enfiados nos chinelos, vamos até a mesa da cozinha e invadimos as novas páginas da História para ver quem são agora os vanguardistas, os milhões de meninos e meninas se acotovelando no início da fila. São eles que nos empurram adiante, que sacodem o rabo da salamandra, estas crianças de mãozinhas estendidas, cheias de barro e de fuligem, estas caras alarmadas, esculpidas pela fome e estas patas mansas de filhotes instruídos pela hedionda estupidez televisiva. E nós amamos, nós aprendemos a amar uma geração nascida da loucura e do sublime, que ainda insiste na esperança, quem sabe se por ignorância ou por delírio, e que oferece à roleta do jogo a própria vida, como antes nós arriscamos e perdemos a nossa aposta em um Deus impossível.

 

© Mariana Ianelli 

publicado por ardotempo às 11:52 | Comentar | Adicionar

Gato, aranha e formigas

Os habitantes da casa
 
Ferreira Gullar
 
Uma casa tem diferentes dimensões. Não estou me referindo à pluridimensionalidade do espaço, à relação espaço-tempo ou coisas de que só físico-matemático entende. Estou falando do tamanho dos diversos tipos de seres vivos que a habitam. Eu, por exemplo, ao que tudo indica, sou o maior habitante da casa, onde já houve gente de maior porte, com meus dois filhos homens, com dois palmos a mais de altura que eu e mais carne e músculos, mas que já se foram. Agora, sou o bicho maior da casa; um metro e 70 centímetros, 56 quilos. Maria, a empregada, tem um pouco menos de altura, mas pesa muito mais. Só que não mora aqui. Moro sozinho, logo sou o maior habitante da casa.
 
Fora os filhos - que eram maiores, e a filha e a Thereza, que eram menores e que também se foram - havia o gato, bem menor que todos nós e mais silencioso também. Fora um ou outro miado, reclamando de alguma coisa, ele era só silêncio, especialmente ao caminhar sobre suas patinhas macias. 
 
Houve presenças eventuais, de visitantes, diria, como a de um pequenino rato que foi abocanhado pelo Gatinho, na área de serviço. A empregada gritou, eu corri até lá e tentei forçá-lo a soltar o rato, mas ele não concordou. Teve que fazê-lo, quando o peguei pelo cangote e Maria lhe apertou as mandíbulas. Não tenho simpatia por ratos; meu temor era que ele o comesse; temor bobo, porque, como vim a saber depois, o gato, nesses casos, quer apenas se divertir.
 
Outros desses visitantes foi um passarinho, pelo qual nada pude fazer, além de recolher os restos de asas e plumas que dele restaram junto ao janelão da sala. Bem menores que os passarinhos são os insetos, que eventualmente invadem a casa e depois ficam se esbatendo contra o vidro das janelas, sem conseguir sair. Com algum cuidado os ajudo a escapar, menos por solidariedade do que por não me agradar semelhante convívio.
 
Já as baratas miúdas, essas, para azar meu, nada tinham de serem visitantes esporádicas: ocupavam os armários da cozinha e do banheiro. Até que surgiu um inseticida, que deu fim a elas. Verdadeiro milagre, de que me lembro com alívio, já que nunca mais nenhuma daquelas baratinhas voltou a aparecer por aqui. Em caráter eventual, aparecem às vezes baratas cascudas, que surgem inesperadamente no banheiro ou na área de serviço, como uma má notícia. Corro a pegar o spray e dou cabo delas, cheio de remorso. Sou, confesso, um baraticida.
 
Mas não é propriamente disso que desejo falar, e, sim, de outros bichinhos, pelos quais tenho simpatia e ternura, como as lagartixas, por exemplo. Não sei onde mora, mas, de repente, me deparo com uma delas colada no alto de uma parede. São branquinhas, quase transparentes. Saem para caçar insetos, creio eu, e, do mesmo modo que surgem, desaparecem.
Atualmente, não me preocupo com elas, uma vez que meu gato, chamado Gatinho, morreu. Porque não distinguia entre ratos e lagartixas, atacava-os com a mesma maldade. Certa vez, obriguei-o a soltar da boca uma delas, que, desavisada, surgira na sala. Ao fim do embate, perdeu o rabo mas consegui levá-la, ainda que machucada, para a área de serviço, onde a coloquei com todo o cuidado, após trancar o gato na sala. Sobreviveu, porque, no dia seguinte, não estava mais lá.
 
 
Porém o ser mais fascinante que habita minha casa é uma aranha (ou uma família delas) que, vez por outra, surge no meu banheiro. Lá, também, frequentemente, aparecem formigas minúsculas, que estão dentre os seres visíveis, os menores de meu convívio. Não sei onde se escondem, mas, quando surgem, é numa quantidade surpreendente, como na semana passada: ao acender a luz, deparei-me com uma pequena mancha fervilhante sobre o mármore da pia; é que deixara cair um fragmento de comida, que elas decidiram transportar para seu formigueiro. Com surpresa, constatei que dezenas delas subiam e desciam, como um fio vivo que se deslocava formando uma trilha entre os azulejos. Miúdas, ativas, diligentes, conduziam migalhas de alimento para algum lugar secreto no alto da parede ou no teto.
 
Mas, como disse, minha hóspede mais fascinante é uma minúscula aranha, que costuma estender sua teia mínima entre uma das torneiras - a que quase não uso - e a borda do espelho. Suas pernas, incrivelmente finas e ágeis, são pouco mais espessas que os fios de sua teia, quase invisíveis. Não faço ideia do que ela pretende capturar num banheiro onde nunca vi voar qualquer mosquito. Mas quem sou eu para lhe dar conselhos! Tomo todo o cuidado para não incomodá-la e recomendo à faxineira que a deixe em paz. 
 
Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL
Imagem: Salvador Dali, Rosto com formigas - Pintura, óleo sobre tela

 

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publicado por ardotempo às 11:48 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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