Janeiro
António Lobo Antunes
Que mês de janeiro tão comprido, que lentidão nas horas. Dia 7 fazia anos a minha outra avó: já ninguém se lembra dela, morreu completamente. O problema, depois de desaparecermos, será não ser esquecido ou não ser suficientemente esquecido? O que é um nome, a memória de um nome? Às vezes pode ficar-se vivo por uma frase só. Por exemplo a rapariga, na Índia, de quem Camões dizia que chiava como água num pucarinho novo. Dessa recordo-me sem nunca a ter visto. Ou de D. João de Castro a comentar, acerca de um homem de barba branca e cabelo preto
- Pensa mais com os queixos do que com a cabeça.
As coisas que me ficam na ideia, meu Deus, que armazém os meus miolos. Os vencedores da volta a França quase todos, por exemplo, desde 1930. Gangsters de há mais de 60 anos, Baby Face Nelson, Machine Gun Kelly, Legs Diamond, o grande Dillinger. Pugilistas: Carl Bobo Olsen que tinha Mama no braço tatuado, Ray Sugar Robinson, o imenso Georges Carpentier que se finou antes de eu ter nascido e usava risca ao meio. Tive uma fotografia dele, elegantíssimo, as orelhas um bocado em couve flor, é claro, o nariz um bocado amassado, é evidente, mas elegantíssimo, de boquilha e polainas. No princípio do século 20 houve um combate em 112 assaltos. Gosto de ciclismo, de gangsters, de boxe. De certas respostas. Uma senhora que detestava Churchill a declarar-lhe
- Se eu fosse sua mulher envenenava-lhe o chá.
e a resposta de Churchill
- E se eu fosse seu marido, minha senhora, bebia-o.
Um primo do meu pai ao apresentarem-lhe o rei Humberto de Itália
- Tem graça, é a primeira vez que vejo um rei fora do baralho e me ficou para sempre porque não concebo reis fora do baralho a menos que Baby Face Nelson fosse imperador de Portugal. E janeiro não acaba. Também porque carga de água havia de acabar?
Leio livros maus uns atrás dos outros: a quantidade de tralha que se imprime deixa-me de boca aberta. O que pensarão os autores destas coisas das bodegas que fizeram? Se calhar andam felizes, como eu quando vi Oscar de la Hoya combater. Sabará, Maneca, Vavá, Pinga e Parodi, a linha avançada do Vasco quando tinha 6 anos: tudo se me pega à memória, que maçada. Criaturas a tocarem piano. Cromos de actrizes de cinema que sorriam, em fato de banho, no papel, e eu seguro que era para mim que sorriam. Uma ocasião, no eléctrico para o liceu, uma mulher da idade da minha mãe encostou-se a mim: a primeira grande perturbação, um pânico feliz. O peito a roçar-me na cara, os dedos na pega sobre os meus e eu muito quietinho, extasiado, cheio de durezas inesperadas, porções que cresciam, agarrado a ela num desespero de náufrago. A certa altura desprendeu-se de repente e foi-se embora. Agarrado a ela num desespero de náufrago aprendi nos livros maus. Nunca mais a encontrei e se a achasse de novo, mesmo hoje, agradecia-lhe. Se calhar passa as tardes na pastelaria, viúva, diante de um café vazio, com o guarda-chuva nas costas da cadeira e uma reformazinha aflita, a água do reumático a assobiar nos ossos.
As cabeleireiras do Salão Pereira, perto da casa da minha infância, ainda hoje me fazem sonhar. E aquelas que arranjavam as unhas aos homens na barbearia do meu avô. O senhor Melo, que me cortava o cabelo, parecia um arquiduque.
- O menino nunca vai ficar careca.
anunciava ele com pompa. Enganou-se um bocado, e a toalha cheia de madeixas loiras que às vezes se metiam no colarinho e me faziam cócegas pelas costas abaixo. Torcia-me e o senhor Melo
- Ainda lhe corto uma orelha se continua assim.
e que mês de janeiro tão comprido, que lentidão nas horas. Ontem estive no hospital: desgraças e desgraças, os olhos das pessoas. Cá fora sol. A paragem do autocarro cheia de gente séria que nem sabe como a minha outra avó foi. Falava pouco. Tinha olhos azuis. Era feia. Pareço-me com o irmão dela, com a família dela. Nem sonhava quem era Machine Gun Kelly. É horrível confessar isto, avó, mas penso mais em Ray Sugar Robinson do que em si.
António Lobo Antunes