Segunda-feira, 04.01.10

Uma das listas de José Mário Silva - Bibliotecário de Babel

Listas

 

José Mário Silva, atento e informado sobre o que acontece na literatura e na poesia dos países dos oceanos, lusófonos, publica suas listas de eleições no ano de 2009, no blog Bibliotecário de Babel:

 

 

LITERATURA LUSÓFONA (BRASIL E PALOP)

  • Leite Derramado, de Chico Buarque, Dom Quixote
  • Cinemateca, de Eucanaã Ferraz, Quasi
  • O Mago, de Fernando Morais, Planeta
  • Pequena Enciclopédia da Noite, de Carlos Nejar, Quasi
  • Os limites do impossível, de Aldyr Garcia Schlee, ardotempo
  • O Poema, a Viagem, o Sonho, de Arménio Vieira, Caminho
  • O Dia Mastroianni, de João Paulo Cuenca, Caminho
  • Jonas, o Copromanta, de Patrícia Melo, Campo das Letras
  • Pneuma, de Luís Carlos Patraquim, Caminho
  • Telefunken, de Luis Maffei, Deriva

 

Aldyr Garcia Schlee, autor de Os limites do impossível

 

 

Veja as listas completas no blogBibliotecário de Babel

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publicado por ardotempo às 20:31 | Comentar | Adicionar

O imitador de vozes

Literatura além da morte
 
Mariana Ianelli
 
Em conversa com o jornalista Kurt Hoffman pouco antes de sua morte, Thomas Bernhard comentava que “a vida é um sucessão de disparates, coisas com pouco sentido, mas quase só disparates”. Essa constatação do absurdo, que a nenhum destino conduz senão ao fim, marcou tanto a linguagem como a existência deste escritor considerado um dos mais polêmicos e inovadores da literatura austríaca moderna. 
 
Convém lembrar a epígrafe de Pascal que o autor escolheu para encabeçar seu relato “A respiração”, publicado em 1978: “Incapazes de superar a morte, a miséria e a ignorância, os homens, para serem felizes, concordam em não pensar no assunto”. O texto, autobiográfico, narra a experiência assombrosa de Bernhard aos 18 anos, hospitalizado por conta de uma doença grave nos pulmões que o levou a receber a extrema-unção. Tendo, portanto, sobrevivido à própria morte, Bernhard pôde, desde muito jovem, enfrentar o assunto em sua obra literária com legítima intimidade e ironia.
 
Datam da mesma época de “A respiração” as histórias do livro “O imitador de vozes”, lançado apenas agora no Brasil. Ali se concentram alguns dos temas mais caros a Thomas Bernhard, como suicídios e catástrofes, em cenários igualmente familiares ao escritor, como manicômios e asilos. Conhecido por sua linguagem copiosa e estilo musical, Bernhard, neste livro, de fase anterior aos seus romances mais célebres, investe em relatos breves, num tom de impessoalidade jornalística, exibindo a miséria e a loucura que, para além do ramerrão dos acontecimentos, fazem do absurdo o melhor sinônimo da vida. 
 
Os personagens dessas histórias são filósofos, professores, atores, funcionários públicos, camponeses, lenhadores, todos náufragos de um organismo político e social que os asfixia a ponto de um colapso repentino. A reincidência temática de eventos trágicos encontra seu paralelo sintático na repetição de frases tão peculiar à escrita de Thomas Bernhard. Os relatos têm quase sempre como paisagem de fundo a neve dos Alpes, e a Áustria, que viria a ser o alvo das arremetidas do escritor em “Extinção”, já se mostra ali seu foco predileto de denúncia ao desprezo das instituições por intelectuais e artistas.
 
Nascido na Holanda mas criado na Áustria, especialmente pelo avô materno, escritor, que o iniciou no “grande gosto pelo pensamento anarquista” e que o “salvou do embotamento”, como diz sobre sua infância, no livro “Origem”, Thomas Bernhard aprendeu desde cedo a odiar o Estado, a Igreja Católica, a escola, a burguesia, tudo o que, segundo os ensinamentos do avô, colabora para a aniquilação do ser humano. Filho ilegítimo, educado em um internato nacional-socialista, doente dos pulmões, Bernhard parece sempre ter se havido com sua condição de deslocado, inclusive do próprio meio literário, cujas rivalidades e oportunismos o horrorizavam. Uma espécie de compensação, o suicídio era uma possibilidade permanentemente disponível de se livrar do mundo caso necessário, e esse pensamento, tão natural ao escritor, entre outras lições incutidas pelo avô, jamais o abandonou.
 
Na galeria de personagens de “O imitador de vozes” sobejam, pois, os suicidas, dos bem-sucedidos aos fracassados, aqueles que desistem de si mesmos e continuam vivendo como fantasmas. Em “Alheamento”, um marceneiro que escreve poemas afoga-se “motivado pelo desespero com a falta de reconhecimento”; em “Dois bilhetes”, um bibliotecário da Universidade de Salzburgo enforca-se deixando em um bilhete a explicação de que “não aguentava mais ordenar e emprestar livros que só haviam sido escritos para causar desgraça”. Isso apenas para citar dois dentre vários relatos do livro que abordam o tema, cada um com requinte próprio. 
 
Vale destacar ainda o relato “O príncipe”, em que Bernhard conta a história do tio suicida de uma princesa, morto no dia de seu quinquagésimo primeiro aniversário, por “ser da opinião de que precisar viver cinquenta anos neste mundo, sem, em última instância, ter sido consultado, era mais que suficiente para um ser pensante. Quem seguia vivendo além disso demonstrava deficiência ou da mente ou do caráter”. O escritor retomará adiante sua “teoria dos cinquenta” no romance “O Náufrago”, na voz do personagem Wertheimer. Curiosamente, embora tenha escapado ao suicídio, Thomas Bernhard morreu três dias após completar 58 anos de idade.
 
Outro aspecto interessante em “O imitador de vozes” é a tênue linha entre o absurdo e o fantástico, como na história da ossada de um homem de dois metros e setenta e quatro centímetros de altura, encontrada em um cemitério de Elixhausen, ou de gritos que se ouvem em um desfiladeiro, de escolares que ali despencaram há quinze anos. Desolação e morbidez se condensam neste livro, e toda ruína ou sentimento de abandono assume aqui proporções descomunais, à semelhança do gigante de Elixhausen. É o caso do relato intitulado “O agricultor aposentado”, em que o personagem, um velho solitário e inválido, em pleno inverno na Alta Áustria, queima sua perna de pau na lareira para tentar esquentar-se.
 
Como dizia Bernhard a Kurt Hoffman, podem-se fazer “dúzias de Bernhards. Pode-se fazer um dramático, um trágico, um mentiroso, um asqueroso, um divertido, como se quiser”, a partir de uma só entrevista. O mesmo acontece a partir de um texto crítico. Exemplo disso é que, embora exista um Bernhard sem dúvida sombrio e corrosivo em “O imitador de vozes”, também ali há um Bernhard sensível aos talentos massacrados de sua época, cúmplice da grande arte e zeloso da amizade, igual àquele que homenageou seu amigo Paul em “O sobrinho de Wittgenstein”. Este é o Bernhard que aparece em um dos últimos relatos do livro, “Em Roma”, um elogio do escritor à poeta austríaca Ingeborg Bachmann, que, como ele, “encontrou muito cedo a entrada para o inferno e nele penetrou sob pena de, nesse inferno, perecer cedo demais”. 
 
Se, entre a vida e a morte, o jovem Bernhard escolheu a vida, diante da possibilidade de silêncio em resposta ao desprezo alheio, sua opção foi pela escrita. Hoje, sua obra literária revida à indiferença e ao abandono exatamente como canta a poesia de Ingeborg Bachmann: “Com o soluço impuro, / com o desespero / (e eu desespero ainda com o desespero) / por tanta miséria, / pelo estado do doente, pelo custo de vida, / sobreviverei”.
 
 
 © Mariana Ianelli  (São Paulo) 2009
publicado por ardotempo às 10:25 | Comentar | Adicionar
Domingo, 03.01.10

A sombra borgesiana

El viaje alrededor
 
Enrique Vila-Matas 
  
El invierno pasado, iba caminando con paso rápido bajo los animados pórticos de la Vía Po de la ciudad de Turín. Hacía frío y buscaba refugiarme en algún café cuando alguien me dijo que en una habitación de aquella vieja calle, en el invierno de 1794, Xavier de Maistre había escrito Viaje alrededor de mi habitación.
 
No lo dudemos más. Desde nuestro cuarto, nos ha sido dado el don de ver la esfera que permite ver el universo
 
Encontré raro que existiera un lugar físico en el que se hubiera escrito un libro que siempre había considerado exclusivamente un viaje mental. Nunca imaginé que podía existir una habitación de verdad en Viaje alrededor de mi habitación. Y, además, había olvidado que había sido escrito en Turín. Hacía ya muchos años que había perdido mi ejemplar de la colección Austral (recuperado hace unos meses) y la obra del conde de Maistre era para mí más un título sugerente que una obra.
 
Aquel día, me chocó enormemente que la habitación de Viaje alrededor de mi habitación pudiera convertirse en mi circunstancial refugio del frío. Era como si me invitaran a repetir el viaje del exterior al interior que en su momento realizó Xavier de Maistre cuando, por haberse batido en duelo, se vio castigado y confinado por las autoridades militares a permanecer cuarenta y dos días en la distinguida serenidad de aquel cuarto, hoy ya mítico en la historia de la literatura. Mítico, en parte, por Borges, que para estas cosas casi nunca falla. ¿O no nos ocurre con frecuencia que, al cruzar por un mito literario, descubrimos que ya pasó antes por allí la sombra borgiana y le dio un último toque de gracia?
 
En su cuento El Aleph, Borges hace que el libro del conde de Maistre aparezca de una forma lateral, pero suficiente, porque colabora en la comprensión del relato de esa experiencia mística (la revelación de una totalidad fantástica) que ofrece al lector dos modos de referir el asombro de ver más. Por un lado, Carlos Argentino Daneri, una especie de Dante venido a menos, ha estado utilizando el Aleph (pequeña esfera tornasolada que permite ver la simultaneidad del universo) para escribir un monstruoso poema en el que menciona, con patoso esnobismo francés, Voyage autour de ma chambre. Por otro lado, el personaje llamado Borges dice que, al ver el Aleph, temió que en el mundo no le quedara ya una sola cosa más capaz de sorprenderle tanto. Carlos Argentino y Borges parecen una copia de la Bestia y el Alma que, antes de la invención del psicoanálisis, creó el conde de Maistre para que combatieran a brazo partido en su cuarto turinés: "El gran arte de un hombre de genio es saber educar bien a su bestia para que pueda ir sola, mientras que el alma liberada de esta penosa relación, puede elevarse hasta el cielo".
 
En el capítulo treinta y siete del libro de Xavier de Maistre encontramos precisamente un tímido Aleph que pudo preceder al de Borges: "Desde la última estrella situada más allá de la Vía Láctea, hasta los confines del Universo, hasta las puertas del caos, he aquí el vasto campo por donde paseo a lo largo y ancho, y con toda tranquilidad, pues carezco por igual de tiempo y de espacio".
 
No lo dudemos más. Desde nuestro cuarto habitual, sin salir a calle alguna, nos ha sido dado el gran don (que tantas veces olvidamos) de ver la esfera que permite ver la simultaneidad del universo. Ese don contribuyeron a divulgarlo las páginas de ese pionero viaje alrededor de su cuarto que realizó Xavier de Maistre, nacido en Chambéry, y testigo de una época de grandes cambios para su patria saboyana, cambios que llevaron a este noble a ganarse la vida modestamente como pintor de paisajes en San Petersburgo. Xavier fue hermano menor del famoso y temido Joseph de Maistre, reaccionario sin fisuras. El crítico parisiense Sainte-Beuve, gran propagandista del Voyage autour de ma chambre, define a Xavier como un hermano menor contento de serlo y como un hombre, además, de gran ingenuidad y encanto: "El hombre más parecido moralmente a sus obras que imaginar quepa: ingenuo, sorprendido, dulcemente astuto y sonriente, sobre todo bondadoso, agradecido y sensible hasta las lágrimas con en su primer frescor; en definitiva, un autor que se parece tanto más a su libro por cuanto nunca pensó en ser un autor".
 
No pensarse a sí mismo como autor le facilitó el éxito. Y quizás explique en parte la frescura y agilidad que el texto -en la estela shandy de su admirado Laurence Sterne y su celebrado Viaje sentimental- ha conservado. Se da la circunstancia de que este autor, que ignoraba serlo, estuvo en una sola ocasión en París, cuando ya tenía más de setenta años y quedó muy sorprendido al saber que allí era muy famoso y le adoraban. A los parisienses les había hechizado la originalidad de aquel viaje inmóvil y la ligereza cervantina del libro. Y él ni se había enterado.
 
Había vivido años en Rusia sin saber que en Francia había producido estragos su viaje craneal. De hecho, le paraban por las calles de París y le preguntaba la gente de dónde había surgido aquel texto tan sorprendente. De un encierro, decía generalmente el conde, cabizbajo. Pero un día se le iluminó el rostro. El encierro le había conectado con el Universo entero, llegó a confesar.
 
 
Proust, Liz Themerson, Perec, Stevenson (la Bestia y el Alma del cuarto turinés se reflejan en Dr. Jekyll and Mr. Hyde) amaron los resultados literarios de aquella conexión con el espacio universal y parodia inteligente sobre la narrativa de viajes extraordinarios. Escribió el conde aquel libro - obra maestra de la levedad - a la manera de un relato autobiográfico en el que alguien, con la excusa, por ejemplo, de describir su escritorio, cuenta básicamente el asombro de ver más. No se sabía todavía por aquel entonces que todo viaje, por muy innovador que fuera, siempre creaba sus precursores. En el caso de Viaje alrededor, Lao Tse, fundador del moderno viaje interior, sería una de las primeras referencias: "Sin salir de la puerta se conoce el mundo / Sin mirar por la ventana se ven los caminos del cielo. / Cuanto más lejos se sale, menos se aprende". Otro precursor sería el sorprendente Luciano de Samosata, que hace diecinueve siglos escribió que había llegado a la luna en un barco y había sido testigo de una guerra espacial entre el emperador de la luna y el del sol.
 
Que Viaje alrededor posee la misma levedad y frescura que estos dos clásicos se ve perfectamente cuando De Maistre nos dice que no hay nada mejor que seguir la pista a las ideas, "al modo del cazador que persigue la pieza sin seguir un determinado camino". Parecía conocer el vaivén moderno entre automatización, parodia y renovación: "Por eso, cuando viajo por mi cuarto, difícilmente sigo una línea recta". Le movía una poética del vaivén y una natural prevención por si su viaje inmóvil acababa también siendo parodiado. El resultado: una imitación del perpetuo movimiento de la mosca en la habitación, y toda clase de desplazamientos y pensamientos en zigzag. Y un legado no imaginado para el futuro. Sin poder ni sospecharlo, estaba preparando el terreno para que nuestro viaje contemporáneo fuera una sucesión infinita de odiseas de la Vía Po.
 
Imagino al innovador Xavier de Maistre en el momento mismo de terminar su libro y sentirse más que nunca doble, dividido entre la Bestia y el Alma. Un impulso misterioso le dice que necesita del aire y del cielo y decide dar por concluido el viaje: "Heme aquí preparado; mi puerta se abre; deambulo bajo los espaciosos pórticos de la Vía Po; mil fantasmas agradables revolotean ante mis ojos. Sí, aquí está este hotel, esta puerta, esta escalera, me estremezco de antemano".
 
Desde mi cuarto le veo salir a la calle. ¿Es el final de su viaje lo que le estremece? ¿Cómo encaja el primer golpe de aire? Lo sepa o no, su parodia de los viajes va a significar un salto mental, un punto de vista inédito que permitirá a los lectores futuros, sin salir de casa, el asombro de ver las puertas del caos y la simultaneidad del universo. El asombro, en definitiva, de ver más.
 
© Enrique Vila-Matas - Publicado em Babelia - El Pais
Imagem: Gilberto Perin - A sombra - Fotografia (Roma Italia), 2005
publicado por ardotempo às 11:55 | Comentar | Adicionar
Sábado, 02.01.10

Poesia

Instalação de Mana Bernardes

 

 

 

 

Mana Bernardes - Poesia -  Instalação em grande formato, dezenas de lâminas de cartão com recorte interno e luz ( Brasilia - Brasil)

 

 

publicado por ardotempo às 22:09 | Comentar | Adicionar

Abstracto

Pintura

 

 

Joaquin Torres Garcia - Pintura - Arte Abstracto - Óleo sobre tela (Montevideo - Uruguay), 1943

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publicado por ardotempo às 21:57 | Comentar | Adicionar

Por cima só os aviões, pelo chão basta o comboio

Ó flor pensa com a raiz
 
António Lobo Antunes
 
Não é uma pessoa, é um monumento: um metro e noventa e quatro de altura, cento e dez quilos de peso, mãos gigantescas, uma força desmesurada, calça quarenta e oito, ocupa uma mesa inteira de garrafa de cerveja na mão, enche o tasco com a voz e ninguém se atreve a interrompê-lo. Não precisa de zangar-se: resolve qualquer problema com uma frase definitiva que me deixa de boca aberta de admiração. Primeiro exemplo: a empregada do tasco não havia maneira de lhe atinar com a conta e ele estimulou-lhe as capacidades mentais com uma ordem definitiva:
 
- Ó flor pensa com a raiz.
 
Segundo exemplo: um fulano entrou no dito tasco com os óculos escuros subidos até ao cabelo e vai ele:
 
- Roubaste os óculos a um gajo mais alto do que tu?
 
Terceiro exemplo: impacientou-se não sei com quem e preveniu
 
- Olha que eu dou-te uma lambada que dás três voltas à cueca sem tocar no elástico.
 
Quarto exemplo: andavam esses sujeitos da Câmara, vestidos de verde, a multar com entusiasmo, uma das minhas filhas hesitava em arrumar o automóvel num lugar proibido e ele sossegou-a, diante dos sujeitos verdes amedrontados:
 
- Ponha-o aí à vontade, menina: por cima de mim só os aviões.
 
E podia multiplicar os exemplos até ao infinito. Ultimamente anda deprimido: a mulher deixou-o e pediu o divórcio por causa de uma discussão sem importância. Não entende que uma discussãozeca acabe com um casamento de dezanove anos. Ainda por cima um problema de caracacá: que culpa tem ele da fragilidade da esposa:
 
- Mal lhe rocei partiu logo os dois braços
 
e isto numa surpresa sincera, a espalmar-se de inocência contra o peito:
 
- Pela felicidade dos meus filhos que mal lhe rocei, senhor doutor.
 
É camionista
 
(se calhar, em vez de conduzir, leva o camião às costas)
 
bruto e sensível ao mesmo tempo, de lágrima tão fácil quanto o murro, pronto a enternecer-se e a zangar-se, imprevisível na violência e na compaixão, orgulhoso e humilde, tão solitário no fundo, de uma agudeza instintiva e certeira que uma matreirice sem maldade acompanha. Quando pega na cerveja a garrafa desaparece-lhe na palma e o balcão cheio de gargalos vazios. Nunca o vi bêbado mas se calhar tão pouco sóbrio, navega numa zona intermédia, de álcool à vista. Agora, sem mulher nem filha
 
- Tem treze anos, um metro e oitenta e dois e calça três números abaixo do meu
 
passeia melancolias nos intervalos das viagens, sempre de fato e gravata, penteado, perfeito. Mostra-me fotografias da filha gigantesca, retiradas com dificuldade da confusão da carteira. Digo-lhe que é bonita, corrige
 
- Um Ferrari
 
e dissolve-se, imóvel, numa saudade comprida. A filha não terá apreciado os braços partidos da mãe, vá-se lá saber porquê, e recusa vê-lo, de modo que lhe ronda a escola à hora da saída, escondido numa árvore do outro lado do passeio. Mal a filha apanha o autocarro, sem dar por ele, volta a pé para o tasco a lutar contra uma humidade ácida que, de repente, lhe incomoda os olhos. No tasco as garrafas de cerveja triplicam e não se torna especialmente aconselhável falar-lhe. Por volta da vigésima oitava pede a conta, a empregada não acerta e lá vem o
 
- Ó flor pensa com a raiz
 
mas sem alma, cansado. Levanta-se devagar, vai-se embora sem cumprimentar ninguém e apesar de por cima dele só os aviões ei-lo indefeso e minúsculo, um trapinho à deriva que qualquer sopro empurra. Uma ocasião anunciou-me
 
- A vida não é fácil, senhor doutor
 
deu-me uma palmada nas costas que ele julgava cúmplice e me desarrumou os órgãos todos e sumiu-se deixando-me de fígado no peito e coração no umbigo: quase dei três voltas à cueca sem tocar no elástico. Nas últimas semanas não o tenho visto. Contaram-me que foi com o camião para o estrangeiro, o Luxemburgo ou assim, e esses trabalhos demoram muito tempo. Fingi que acreditei. Fingi tanto que acreditei de facto embora sabendo, no interior da alma, que era mentira. Ontem tive no jornal a prova disso ou pode ser que o jornal se referisse a outra pessoa. Vinha lá escrito que um camionista deixou o volante à beira de uma linha férrea, marchou uma centena de metros ao longo das calhas e abraçou-se
 
(como quem abraça uma filha?)
 
ao primeiro comboio que apareceu. O retrato no jornal é o dele mas talvez eu esteja enganado. De certeza que estou enganado: parecemo-nos tanto uns com os outros, não é?
 
© António Lobo Antunes
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publicado por ardotempo às 16:11 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 01.01.10

2010

 

 

- Novo cavalete de pintura  -  OK

- 20 telas pequenos formatos 30 cm x 40 cm (série mão quebrada) -  OK

- Pintar

- 100 folhas de papel de gravura 100% algodão alta gramatura para desenhos a tinta china e aguadas (série mão quebrada) - OK

- Desenhar

 

- Escrever - A Paleta de Vidro

- Novo i-book Mac

- Blog ARdoTEmpo

- Ausência total de carne vermelha

- Escolha: peixes e peixes sashimi

- Ler em quantidade e qualidade similar a 2009

- Edição Televisionários

- Edição 12 títulos primeira classe ARdoTEmpo - livros em papel

- Cama futon

 

- Casa japonesa

- Tapetes persas

- Catalogação da biblioteca

- Mostra de pintura (mão quebrada) - Porto Alegre

- Mostra de pintura (Apenas Pintura)

- Mostra de pintura (Apenas Pintura)  / Paris

- Viagem a São Paulo

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- Organização de mostra de fotografia - Pelotas

- Organização de mostra de fotografia - Porto Alegre

- Organização mostra AVE, FLOR - Pelotas

- Organização mostra TELEVISIONÁRIOS - Porto Alegre

- Noite Branca II - Pelotas

- Encontro e conversa de escritores e poetas - Pelotas

 

publicado por ardotempo às 17:33 | Comentar | Adicionar

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