Domingo, 17.01.10

Pactos

Deus e o Diabo no Haiti
 
Luis Fernando Verissimo
 
O evangélico Pat Robertson, um dos líderes da direita religiosa americana, tem uma explicação para as desgraças do Haiti que culminaram com esse terremoto demolidor.
 
Um dos países mais miseráveis do mundo, com uma história ininterrupta de privações, violência e instabilidade política, o Haiti estaria pagando por um pacto que fez com o Diabo em 1804, quando pediu sua ajuda para expulsar os colonizadores franceses e tornar-se uma república.
 
Desde então, os haitianos viveriam sob uma maldição. O terremoto, segundo Pat Robertson, é apenas o castigo mais recente. Mas o religioso pediu a seus fiéis que rezassem pelos haitianos. E, presumivelmente, pedissem a Deus que esquecesse velhos ressentimentos e lhes desse uma folga.
 
Se o Diabo ajudou mesmo os haitianos contra os franceses foi por uma causa nobre. O Haiti foi o primeiro país do mundo a abolir a escravidão, dando um exemplo que custou a ser seguido pelos outros.
 
A república, também inédita, fundada depois da expulsão dos franceses era de ex-escravos, e acolhia escravos fugidos ou alforriados de outros países. E se Deus os castigou por esta audácia, não foi o único.
 
A França exigiu e recebeu reparação pela colônia perdida, o que aleijou a economia da nova república por muito tempo. A vizinhança com os Estados Unidos também não ajudou. Os americanos chegaram a ocupar o Haiti durante vinte anos, sem muito proveito para o país.
 
Grandes negócios foram feitos na época dos ditadores Papa Doc e Baby Doc Duvalier, também sem muito proveito para o país.
 
Nos últimos tempos, apoiando e desapoiando líderes mais ou menos populares, os americanos têm tentado manter no Haiti uma democracia representativa mas não representativa demais, a ponto de armar politicamente uma massa de desesperançados, com o risco de eles também convocarem o Diabo.
 
Agora não se sabe o que vai surgir dos escombros da tragédia.
 
Outro
 
O Deus vingativo de Pat Robertson certamente não era o Deus de Zilda Arns, que morreu no Haiti trabalhando pela causa da sua vida, a ajuda aos pobres e, principalmente, às crianças. O seu era um Deus solidário. Infelizmente, pouca gente no mundo está disposta a fazer um pacto como o que Zilda Arns fez com este outro Deus. Ela sobreviverá como um exemplo e uma inspiração.
 
© Luis Fernando Verissimo

 

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publicado por ardotempo às 21:28 | Comentar | Adicionar

Chuva

Caminhando na chuva

 

 

Itaci Batista - A chuva - Fotografia (São Paulo SP Brasil), 2010 

publicado por ardotempo às 18:03 | Comentar | Adicionar

A soma de todas as determinações

Dois mais dois: cinco
 
Ferreira Gullar
 
João Cabral de Melo Neto nasceu no dia 9 de janeiro, e Oswald de Andrade, no dia 11; este, que é de 1890, completaria neste mês 130 anos, e aquele, 90. Não sei se você acredita em horóscopo, mas pertencerem esses dois ao mesmo signo e terem nascido quase no mesmo dia de janeiro causa espanto, já que são personalidades muito diferentes... A conclusão a tirar daí seria que essa história de que pessoas nascidas sob um mesmo signo do zodíaco têm personalidades afins não merece crédito.
 
Fiz, certa vez, observação semelhante a respeito de Vinicius de Moraes e Fernando Sabino, ambos de Libra, que eram, não obstante, o oposto um do outro. Porém um entendido em astrologia explicou-me que, embora fossem do mesmo signo, tinham ascendentes diversos, e o ascendente é que conta.
 
Dei como aceita a explicação, mesmo porque, virginiano que sou, admito ter algumas características atribuídas a esse signo, definido pelo lema "eu analiso". A esse mesmo signo pertencem Goethe e Artaud, ambos atuando na fronteira da lucidez e da loucura, que não é a minha praia. Já Oswald e João Cabral são de Capricórnio, cuja frase definidora é "eu utilizo".
Segundo o horóscopo, os nascidos em Capricórnio são racionais, tímidos e cautelosos, qualidades essas que podem se ajustar a João Cabral mas nunca a Oswald de Andrade, que parecia abusar da lógica e desconhecer a timidez e a cautela. Pelo menos à primeira vista, é difícil encontrar personalidades tão diversas quanto a deles, o que me lembra a frase que ouvi de um sertanejo maranhense, referindo-se a dois conhecidos seus: "Um é alto, o outro é baixo; um é gordo, o outro é magro; um é preto, o outro é branco, e isso é o que há de mais parecido nos dois".
 
Pois é, e foram exatamente Oswald e João Cabral que os poetas concretistas de São Paulo elegeram como ícones e precursores do seu movimento literário. Não é curioso?
 
Não vai nisso nenhum reparo, apenas constato. Muita gente sabe que, numa conversa minha com Augusto de Campos, nos primórdios da poesia concreta, ao citar Oswald como um poeta que deveria ser considerado precursor de uma nova poesia, ouvi dele que Oswald era um esculhambado e irresponsável. Ainda assim, eles reviram esse juízo sobre o poeta e o redescobriram.
 
Na verdade, àquela altura dos anos 50, ninguém mais ligava para Oswald de Andrade, nem se reeditavam seus livros. Os concretistas o resgataram do olvido e o tornaram um nome atual de nossa literatura, muito embora, creio eu, se ele vivo estivesse, dificilmente daria seu aval à poesia deles, que pouco ou nada tinha a ver com a sua, que era voltada para a recuperação da voz genuína da língua.
 
Outras características suas eram a irreverência escrachada e o humor desrespeitoso, qualidades ausentes tanto na poesia concreta quanto em seus autores, mas que, graças a eles, inspirou a geração do mimeógrafo nos anos 70, mais próxima dele, no espírito e na forma.
 
Maior afinidade havia entre os concretistas e João Cabral, que concebia o poema como construção racional, sem derramamentos emocionais e confessionalismos. Por isso mesmo, ele aprovou a poesia concreta, considerando-a, implicitamente, uma consequência de sua poesia construtivista.
 
De fato, não era, e tive oportunidade de dizer isso a ele. A diferença fundamental reside no seguinte: o poema de João Cabral funda-se no discurso, para negá-lo, enquanto a poesia concreta o eliminou. E eu, de certo modo, tenho culpa nisso, porque, em meu livro "A Luta Corporal", desintegrara o discurso, fazendo surgir a necessidade de criar-se uma nova sintaxe, não discursiva.
 
Essa nova sintaxe visual foi concebida pelos concretistas, que, assim, inauguraram um modo novo de construir o poema. Essa diferença é essencial, uma vez que é o discurso que dá concretude à expressão verbal, enfim, ao que é escrito. A mera justaposição de palavras, por proximidade e semelhança fonética, sem o discurso, resulta em expressão abstrata.
 
"Concreto", disse Hegel, "é a soma de todas as determinações". Ou seja, o gato não existe, mas sim este gato que está na poltrona...
 
Mas não foi para falar disso que escrevi esta crônica, e sim para manifestar minha surpresa com tamanha diferença de personalidade entre dois capricornianos, nascidos quase num mesmo dia do mês de janeiro. E, como não bastasse, autores de obra literária tão diversa, terem se tornado patronos de um movimento literário que pouco tinha a ver com o que cada um deles efetivamente era e escreveu. É que, na vida como na arte, frequentemente dois mais dois são cinco. 
 
 
 
© Ferreira Gullar  - Publicado na Folha de São Paulo / UOL
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publicado por ardotempo às 17:57 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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