Summertime
José Mário Silva
Summertime é o livro com que Coetzee fecha a sua trilogia de memórias ficcionadas, iniciada com Boyhood (1997) – sobre a infância na Cidade do Cabo, no final dos anos 40 e início dos 50 – e Youth (2002), que descreve a sua vida em Londres, no início da década de 60, e as suas primeiras tentativas poéticas. Nessas duas obras, Coetzee fala de si mesmo na terceira pessoa e esse distanciamento reflecte o extremo cuidado com que o escritor sul-africano, conhecido pelo zelo posto na protecção da sua privacidade, aborda os materiais biográficos no processo de os transformar em literatura. Mesmo quando os factos são reais, o protagonista nunca é o verdadeiro Coetzee mas uma personagem em tudo semelhante, o seu reflexo no espelho da ficção.
Em Summertime, esta ambiguidade é levada ao extremo, pelo recurso a uma estrutura narrativa fragmentada e potenciadora das incertezas meta-literárias que Coetzee tanto aprecia. Em vez de uma história linear, o que o livro nos oferece é um conjunto de materiais que o biógrafo de Coetzee, um tal Mr. Vincent, reúne após a sua morte, tentando fixar uma certa época (os anos de 1972 a 1977), quando o escritor, então com trinta e poucos anos, ainda não era o escritor que veio a ser mas para lá caminhava. Vincent transcreve entrevistas com várias pessoas que terão conhecido Coetzee na altura (uma amante, uma prima, a mãe brasileira de uma das suas alunas, colegas do meio académico), além de excertos dos seus cadernos de notas. O retrato que emerge destes depoimentos em bruto – cheios de incongruências, animosidades, contradições – é de uma crueza devastadora.
Coetzee surge-nos como um homem emocionalmente opaco, incapaz de se relacionar com os outros, um corpo estranho fechado sobre si mesmo (a amante acusa-o de autismo sexual), um feixe de ideias confusas à deriva numa África do Sul em pleno apogeu do apartheid. O Coetzee de hoje não doura a pílula ao Coetzee trintão, nunca contemporiza com as suas fragilidades e falhanços. Mas, paradoxalmente, isso só o torna mais humano.
O resto é a arte da linguagem. Ou seja, o esplendor da língua inglesa, elevada aos céus por um dos seus melhores cultores.
José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel
Imagem: Edward Hooper - Pintura, Óleo sobre tela - 1960