Quinta-feira, 15.10.09

caim, de josé saramago - 1º parágrafo

 

"Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de rugidos e mugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo do violento empurrão dado pelo senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos para a cama."

 

[in Caim, Caminho, 2009]

 

Publicado por José Mário Silva - BlogBibliotecário de Babel

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publicado por ardotempo às 21:40 | Comentar | Adicionar

O anarco-criador

Morrer como Corbière
 
Emmanuel Tugny
 
 
Romance
 
Jim Morrison não conheceu Tristan Corbière, que pena! O leitor brasileiro conhecerá o maldito da poesia que se perdeu ainda tão jovem através do texto de Emmanuel Tugny.
 
Morrer como Corbière nasceu sob o signo da poesia maldita, como diria Octavio Paz sobre os poetas malditos, “são frutos de uma sociedade que expulsa aquilo que não pode assimilar”. A vida tem em comum ao Morrison e a Corbière, talvez uma morte prematura. Corbière impressiona Tugny não por seu único livro, Os amores amarelos, mas pelo encanto da vida na literatura.
 
A obra única do Corbière teve a tradução no Brasil no final dos anos 90 do século passado. Não é fácil encontrar escritores assim por esse país, Corbière, Tugny, este que vem do seu criador, um anarco-criador, no texto e na música que faz sua obra sob a égide da linguagem, dos nomes, das formas, da cores em notas e que ainda escreve à mão pelos dedos de Emmanuel Tugny. Nada melhor do que o Tugny homenagear a vida deste outro poeta que veio ao conhecimento do público através de Verlaine, em 1884, com Les Poètes maudits.
 
Morrer como Corbière é um romance que fragmenta a vida do escritor nas partes que compõem o texto, a forma vem como um barco que traz o alimento com a linguagem em direção as areias. O leitor se sentirá nesse barco, esse marinheiro ao encontro da terra. E nada melhor que conhecer o texto de Emmanuel Tugny nesse sonho de Tristan Corbière em Morlaix.
 
Emmanuel Tugny nasceu em Rennes, 1968. Foi professor, diplomata na Itália e atualmente está trabalhando no Brasil como adido cultural em Porto Alegre. Publicou seus primeiros livros nos anos 80. Desde então, tem mais de 20 livros editados – romances, ensaios e poemas. Ganhou o prêmio do Museu de Arte Moderna de Paris em 1995, do CNL em 1997, e o Prix de Flore B da blogosfera em 2007. 
 
Capa: Letícia Lampert
Tradução: Luciano Loprete
ISBN: 978-85-205-0534-2
Editora Sulina/Sul Editores
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publicado por ardotempo às 21:24 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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