Domingo, 04.10.09

Bem protegido, o sem-garagem

Na rua, em São Paulo

 

 

 

Mário Castello - Sem-garagem - Fotografia (São Paulo SP Brasil), 2009

publicado por ardotempo às 13:35 | Comentar | Adicionar

"Deitado em berço esplêndido"

Monumento à desigualdade
 
Ivan Lessa
 
De vez em quando, vindo para o trabalho ou voltando para casa, nos arredores do metrô, eu vejo um pobre. Os pobres são fáceis de se reconhecer. Vestem-se mal, quando se vestem, suas roupas são uns trapos, e muitos deles se aproximam de nós, remediados, e pedem uma ajudinha para comer qualquer coisa.
 
Estou me referindo aos pobres mesmo. Aqueles pobres de doer. Há os outros pobres, aqueles que moram mal, falam um inglês esfarrapado e fazem questão de ter pregados na parede, em pleno voo, aqueles três patinhos de cerâmica, cada um deles em um plano diferente.
 
Esses são motivos de chalaça entre nós, remediados, ricos ou muito ricos. São eles protagonistas de várias “comediotas” de meia hora na televisão e de várias piadas de mau gosto mas muito engraçadas. Esse tipo de pobre não leva muita noção de sua pobreza, se orgulha de sua condição e, tendo filhos, querem uma vida melhorzinha para eles. Essas manias todas que os pobres têm.
 
Vejo muita televisão. Tenho, pois, um contato platônico com os pobres de outros países. Pelo que depreendo desses documentários, há pobre que não acaba mais neste mundo de Deus, que, por falar Nele, parece que se esqueceu deles. Prometeu o Reino dos Céus, mas isso é muito vago para quem lê tabloide só para saber detalhes de crimes hediondos e entrevistas com violentos jogadores de futebol.
 
Os pobres na televisão primam por sua sem-graceza. Por sua feiura, também. Volta e meia, lá estão os indianos, que os britânicos são saudosistas do império que se foi. Os africanos e suas tribos também vivem batendo ponto. Em suma, a miséria dá um tremendo Ibope em telonas de plasma e alta definição. As contribuições para as entidades beneficentes, a cada exibição de um filme sobre pobre – sejamos francos: sobre a miséria humana – aumentam em mais de 25% da caridade habitual. Eles, os destituídos (sejamos docemente eufemísticos), merecem de nós uma solidariedade mais concreta do que um simples mal-estar à noitinha, depois do lauto jantar.
 
Aqui em Londres, onde volta e meia dou com um pobre, ou miserável, há estátua que não acaba mais. São os britânicos chegados a uma estátua. De preferência não-equestre, pois têm bom gosto, além de um dinheirinho guardado para as férias no Continente e uma eventualidade qualquer.
 
No Brasil, os pobres, os miseráveis, eram – e ao que parece continuam a ser – de altíssima visibilidade. Lembro-me particularmente de um, sempre sentado no chão, perto da bilheteria do cine Copacabana, ali perto da Constante Ramos, exibindo sua perna esquerda muito rubra e coberta de chagas, um caso típico de elefantíase, com um jornal do lado e empregando o bordão clássico, “Uma esmolinha, pelo amor de Deus”. Tinha gente que dava, incentivando assim o descaso das devidas autoridades encarregadas da distribuição de nossas riquezas.
 
Aí chego à notícia que eu queria chegar. Deu semana passada num jornal brasileiro e eu pesquei na internet. Os ricos brasileiros – que correspondem a 1% da população do país – gastam em três dias o mesmo que os pobres em um ano. Informação fidedigna: o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com base numa Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE. Isso é relativo ao ano passado. Não creio que as benesses do pré-sal tenham melhorado ou venham a melhorar a situação. Segundo um pesquisador do Ipea, Sergei Soares, “o Brasil ainda é um monumento à desigualdade”. O instituto constatou ainda que a renda obtida por meio do trabalho voltou a ser a principal responsável pela queda na diferença social.
 
Tudo isso me deixa meio zonzo. Em que é que ricos gastam em três dias e os pobres em um ano? E que história é essa de pobre trabalhando ser motivo de diferença social? Os pobres que se me ocorrem estão todos desempregados. A não ser que passaram a contar aquele cara com elefantíase perto do cinema.
 
De qualquer forma, há boa notícia embutida aí: temos aí mais um monumento, a se juntar aos do Zózimo, Drummond, Ibrahim Sued e tantos, tantos outros na Cidade Maravilhosa, que é o Rio.
 

© Ivan Lessa - Publicado no blog BBC Brasil 

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publicado por ardotempo às 13:29 | Comentar | Adicionar

Falso,cruel e belo...

Me senté y lloré
 
Enrique Vila-Matas
 
Me preguntaron si era fácil distinguir entre una buena novela y una que no lo era, y dije que bastaba con examinar cuáles eran sus relaciones con las altas ventanas de la  poesía.
 
Precisé que hablaba de sutiles conexiones con la poesía y en ningún caso de lo antagónico: novelas escritas por poetas a base de prosa poética, algo absolutamente a evitar cuando se trata de una novela.
 
Querido Friedrich, el mundo todavía es falso, cruel y bello...”, escribe Charles Simic, escritor yugoslavo de Nueva York que enlaza con originalidad el surrealismo, la metafísica y los mitos primitivos. Para él, la imaginación no es un alejamiento de la realidad, sino la llave idónea para acceder al mapa de estrellas de nuestras paredes interiores.
 
Hablé ese día de la filosofía poética de Simic y de la necesidad de que la novela no pierda las sutiles conexiones con la alta poesía. Y, muy poco después, sentí deseos de convertirme allí mismo en el título de una novela de Elizabeth Smart, En Grand Central Station me senté y lloré. Siempre quise ser o escenificar ese título, y aquella era toda una oportunidad para hacerlo, pues a fin de cuentas me encontraba en Nueva York y estaba justo en aquel momento en Park Avenue, a dos pasos de  Grand Central Station.
 
Me dije que, aparte del título, aquel libro de Elizabeth Smart (novela autobiográfica que narra la pasión de la autora por el poeta George Barker, un hombre casado del que se enamoró incluso antes de conocerlo: libro de una bella intensidad, extrema y rara)  fue siempre una obra maestra gracias a su capacidad de diálogo con la tradición poética y a su elegante inspiración surrealista. De hecho, aquel mismo libro era un perfecto ejemplo de novela en comunicación con el gran espectro poético. Y es más, tenía el encanto de haber sido pionero en un  procedimiento que aprecio y que consiste en convertir el texto en una máquina de citas literarias que ayudan a crear sentidos diferentes.
 
Me acuerdo muy bien de cómo era, aquel día, la novela de mi vida. Parecía que el surrealismo de Simic estuviera por todas partes, porque vi en el pasillo de entrada al gran vestíbulo de la estación a un negro con la cabeza rapada, sin zapatos, poniendo a un limpiabotas y a Dios por testigos. ¿Por testigos de qué? Tras contestar a cómo se distinguía entre una buena novela y una que no lo era, empezó a cumplirse uno de mis más antiguos deseos cuando, al adentrarme en el gran vestíbulo, avancé hipnotizado hacia el célebre reloj de cuatro caras, y fui pasando repentina revista a lo que habían sido las ventanas ciegas de mi vida: iba como hechizado y como si tuviera luz para descifrar el mapa de las estrellas en los futuros interiores de las novelas. Y así fui avanzando y buscando un lugar solitario, hasta que lo hallé y, contemplando en una de las ventanas altas los movimientos del sol como quien mira el de las hormigas, pensé en un poema de Simic que habla de una azotea y de un agujero en unas medias negras y de una  bella muchacha de Nueva York de la que estaban todos enamorados, y entonces sí, entonces, tal como venía previendo, como si uno pudiera ser el título de una novela dentro de una poesía secreta, casi desmoronándome, dando bandazos con mi suerte más ciega, en Grand Central Station me senté y lloré.
 
 

 

© Enrique Vila-Matas

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publicado por ardotempo às 03:01 | Comentar | Adicionar

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